São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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NO PLANALTO

Negócios, negócios, negociação política à parte

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Diz-se na cozinha do Planalto que a reforma ministerial demora porque o presidente age com o coração. De fato, Lula dá provas diárias de amor ao caos. E é correspondido.
De Sarney a FHC, os governos demoliram a administração pública. O ex-PT vende os escombro$. A Polícia Federal acaba de concluir inquérito que faz a autópsia de um negócio trançado por trás das ruínas. Folheando o processo, o repórter descobriu o seguinte:
1) a bancada amazonense no Congresso tenta, desde o raiar da gestão Lula, apossar-se da superintendência da Receita Federal na região Norte, sediada em Belém;
2) o deputado Paulo Rocha (PT-PA), hoje líder do PT na Câmara, era em 2003 o filtro dos apadrinhamentos amazônicos. Caiu-lhe nas mãos o currículo de um candidato ao posto: José Lúcio Rosa de Souza, auditor fiscal lotado em Manaus;
3) de longe, o auditor parecia íntimo do petismo. Passeou de lancha com Paulo Rocha nas águas do rio Negro. Foi à festa de aniversário do líder do PT, numa casa chique no Lago Sul, em Brasília. Tirou fotos com o ministro José Dirceu (Casa Civil) e com João Paulo Cunha, à época presidente da Câmara;
4) o auditor passou a voar para a capital com notável regularidade. Visitou gabinetes ilustres, como o de José Sarney. E salas menos eminentes, como a do deputado Carlos Souza (PP-AM);
5) na seqüência de uma das visitas, Carlos Souza foi à tribuna da Câmara para atacar o titular da Superintendência da Receita no Norte, José Tostes. Insinuou que seria desonesto. Cobrou a sua demissão. Parecia ansioso por eliminar óbices à nomeação de José Lúcio;
6) as acusações contrastaram com a biografia de Tostes. Chefia com impessoalidade os escritórios do fisco no Norte. Destacou-se no combate à quadrilha da Sudam. Abateu projeto caro aos Sarney. Impôs a Jader Barbalho autuações de R$ 30 milhões. Inconformado, move, por meio da Advocacia Geral da União, ação judicial contra Carlos Souza;
7) em suas aparições -na lancha, nas fotos e nos gabinetes- o auditor José Lúcio fez-se acompanhar de Sérgio Carlos Nascimento de Andrade. É lobista de Manaus, velho conhecido do ex-governador Gilberto Mestrinho (PMDB-AM);
8) num bilhete a Renan Calheiros, hoje presidente do Senado, Mestrinho anotou: "O José Lúcio foi indicado (...) pela bancada do PT -deputado Paulo Rocha. Soube que o ato está pronto e o Palocci aguarda apenas uma palavra do PMDB (...). Pediria, assim, tua interferência junto ao ministro José Dirceu";
9) súbito, Sérgio Andrade, o lobista, perdeu a invisibilidade. Foi preso, em janeiro de 2004, pela polícia civil de Manaus. O auditor José Lúcio acusara-o de extorsão. Interrogado, disse que fizera lobby em favor da nomeação de José Lúcio. Julgava-se credor de R$ 300 mil. A investigação migrou para a PF;
10) relatório de 24 de fevereiro de 2005, do delegado Sérgio Lúcio Fontes, concluiu pela "(...) existência de tentativa de indicar um servidor público (...) para um dos cargos mais importantes da Receita, mediante lobby realizado com patrocínio indevido de empresas particulares, denegrindo a imagem do superintendente (...) e, supostamente, oferecendo vantagem indevida para quem lograsse obter a indicação";
11) o lobista Sérgio Andrade disse à PF ter sido contratado pelo próprio José Lúcio e por outro auditor fiscal, Francisco Serrão, que almejava a inspetoria do porto de Manaus. Contou que os auditores dispunham de R$ 1,5 milhão para "premiar" o político que obtivesse as nomeações;
12) o lobista fez três dezenas de viagens a Brasília. Em muitas, foi acompanhado do auditor José Lúcio. Serviram-se dos préstimos de uma agência de viagens brasiliense. A mesma que atende à Amazônia Operações Portuárias, arrendatária do Porto de Manaus;
13) a agência se chama Coyote. Informou à PF que, ao contatá-la, o lobista disse que suas despesas seriam pagas pela Amazônia Operações Portuárias. O repórter ouviu Alessandro Bronze Toniza, sócio da firma. "Indiquei o Sérgio para a Coyote. No começo, ele pagou certinho. Depois, deu o cano. Me senti na obrigação de pagar." O empresário julga-se vítima de suposto complô do governo amazonense. "Querem cancelar a concessão do Porto de Manaus", diz. "Bobagem", refuta um assessor do governador amazonense Eduardo Braga;
14) os gastos do auditor José Lúcio com avião e hotel são, segundo a PF, "incompatíveis com o salário de funcionário público". Pagou em grana viva, "provavelmente para não deixar registros (...)". "Desse aí eu não paguei nada", exime-se Alessandro Toniza;
15) envenenada pela prisão de Sérgio Andrade, a nomeação de José Lúcio mixou. Solto, o lobista foi indiciado pela PF ("tráfico de influência"). Indiciaram-se também os auditores José Lúcio e Francisco Serrão ("corrupção passiva") e Alessandro Toniza ("corrupção ativa");
16) os políticos foram isentados. Para a PF, "não existem elementos suficientes para provar" que agiram "em troca de dinheiro". O líder petista Paulo Rocha nega até mesmo que tenha agido. Diz ter sido "ingênuo, inexperiente". Deixou-se "envolver" por Sérgio Andrade. "Sabe como é lobista, né? Grudou no meu gabinete. Quando percebi..." Jura ter informado ao auditor José Lúcio que a Receita estava fora do jogo político. "Um currículo dele chegou no Gabinete Civil. Mas não fui eu que mandei";
17) a Casa Civil diz que por lá não passou currículo nenhum. José Dirceu foi ao aniversário de Paulo Rocha porque é seu "amigo". Tirou fotos, mas "não conhece" os sorrisos que pendem a tiracolo;
18) confrontado com o papelucho que enviou a Renan Calheiros, aquele em que pediu interferência "junto ao ministro José Dirceu", Gilberto Mestrinho disse: "A caligrafia é minha. Mas eu disse depois ao Renan que não desse muita importância ao bilhete";
19) procurado, o deputado Carlos Souza silenciou. Em declaração espontânea ao Ministério Público, admitiu ter assinado "lista de apoiamento" à nomeação do auditor José Lúcio. Um "ato corriqueiro e normal na Câmara". Não recebeu "proposta escusa ou indecente";
20) o auditor José Lúcio pediu transferência para Nova Iguaçu (RJ). Disse à PF que só fala sobre o caso em juízo. Tem agora no seu encalço a corregedoria da Receita Federal;
21) Lula segue costurando a sua reforma ministerial com o coração. Pela lógica, só deveria entregar ministérios aos homens certos. Tudo indica, porém, que irá confiar algumas pastas a certos homens.


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