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São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

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NO PLANALTO

Notícia para irritar quem vai pagar IR

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Diz-se que o crime não compensa. Bobagem. Às vezes vale a pena. Só que aí muda de nome. Abaixo, a história de delito que alcançou a graça do rebatismo.
Chamava-se contrabando. O maior já detectado no país. Roça os R$ 200 milhões. Graças ao Judiciário, ganhou outro nome: descuido.
Foi assim, apelidada de desatenção, que uma hiperdelinquência compensou na semana passada. Aos detalhes:
1) a coisa começou com uma carta anônima enviada à PF e à Receita. Denunciava uma cilada contra o erário. À testa, firmas da Zona Franca;
2) seduzidas por vantagens fiscais, deveriam fabricar eletroeletrônicos em Manaus. Trariam peças do exterior, livres de impostos. Em troca, montariam os aparelhos com mão-de-obra amazônica;
3) em vez de peças, importavam equipamentos prontos -de televisores a máquinas fotográficas. Vinham da Ásia com manual em português e selo de origem: "Produzido no pólo industrial de Manaus";
4) a muamba deslizava por entre as pernas da Receita. Fiscais deixavam-se driblar em troca de propinas milionárias;
5) resultado: além de não coletar os tributos, o governo brasileiro bancava a geração de empregos e renda em países asiáticos. Uma lambança;
6) guiando-se pelo texto da carta anônima, a PF grampeou telefones. Bingo. Confiscaram-se em 2002 cerca de R$ 200 milhões em contrabando;
7) a investigação alcançou cinco empresas. Chama-se DM Eletrônica da Amazônia a campeã de fraudes. É fornecedora da gigante CCE. Sozinha, importou cerca de R$ 50 milhões em muambas;
8) pilhados em flagrante, três empregados da DM foram ao xilindró. Junto com eles, dois fiscais da Receita foram sentenciados a penas de 21 a 35 anos de cana;
9) denunciados, executivos das empresas respondem em liberdade. O réu mais notório é Isaac Sverner, presidente da CCE;
10) Sverner alegou que nada tinha a ver com a DM da Amazônia. Descobriu-se que é dono de 30% da DM. Sustentou que, se erros havia, não eram da CCE. Mas parte da muamba asiática trazia a marca CCE grudada à carcaça;
11) em apuros, Sverner contratou advogado de nomeada: Marcio Thomaz Bastos. Feito ministro de Lula, Thomaz Bastos passou a chefiar a mesma PF que ajuntou provas contra o ex-cliente;
12) à margem da guerra penal, abriu-se uma trincheira cível. A DM armou-se de alguma esperteza e muita tecnicalidade jurídica. Disse ter encomendado só componentes eletrônicos. O embarque de aparelhos prontos devia-se a "equívoco" do fornecedor asiático;
13) para corrigir o "erro", a DM reivindicou a liberação da aparelhagem mediante o pagamento dos tributos. A Justiça amazonense disse não. O jogo virou no TRF1, tribunal de Brasília;
14) esgrimindo recursos judiciais que omitiam o logro, a DM convenceu juízes de Brasília de que, pagando os impostos, poderia reaver a muamba;
15) na quarta-feira, premida por ordem judicial, a Receita começou a restituir à DM parte do produto do crime. A devolução prossegue na terça-feira;
16) há mais: pelas contas do Fisco, parte do contrabando liberado pelo TRF1 deveria render R$ 15,8 milhões em tributos. A DM só depositou em juízo R$ 6,2 milhões. Pagou imposto de peças, não de aparelhos acabados;
17) há pior: a decisão do TRF1 manda liberar também equipamentos retidos em Belém (28 contêineres) -cerca de R$ 7 milhões em impostos, dos quais nenhum centavo foi pago;
18) o Ministério Público e a Fazenda tentam derrubar a decisão judicial brasiliense. Pedem a extinção da DM e a perda do contrabando em favor da União;
19) se fracassarem, sobrevirá o paradoxo: cinco pessoas terão sido condenadas por um crime que, aos poucos, se esfuma. Uma delas, Maristela Santos de Araújo, auditora da Receita sentenciada a 35 anos, ganhou liberdade provisória na quarta-feira;
20) vai ao lixo, de resto, a política de incentivos fiscais. Conforme assentado na sentença que levou bagrinhos ao cárcere, a DM é mera "maquiadora de produtos fraudulentamente importados". De centro industrial, a Zona Franca passa a pólo muambeiro.


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