São Paulo, Terça-feira, 20 de Abril de 1999
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JANIO DE FREITAS

De acusador a réu

Os choques estão se dando em tantas frentes, ao mesmo tempo, que é muito difícil encontrar uma expressão que defina esse quadro de conturbação, no qual uma só expectativa tem nitidez: é impossível uma solução conciliatória, com final satisfatório para todas as partes em choque.
Choque de Fernando Henrique com o Judiciário e, mais intenso ainda, com o Ministério Público. Choque seu com parte do que se chama de bancada governista, acusada de criar com as CPIs uma situação dramaticamente incontrolável pelo governo. Choque forte entre duas correntes dos governistas. Choque das visões publicamente expostas de Mário Covas e Antonio Carlos Magalhães com a de Fernando Henrique. E não estão aí todos os choques em curso. Mas todos os choques estão ligados ao estouro, afinal, da velha inflamação nacional que é o Banco Central conduzido acima das instituições e à margem da moralidade.
Os choques políticos se acomodam, tanto faz se de um ou de outro jeito. Mas a investida de Fernando Henrique contra o Ministério Público e o Judiciário, levando parte dos governistas a acompanhá-lo, tem implicações graves. E, portanto, potencial para produzir consequências não menos graves.
A interpretação de Fernando Henrique para a ida de representantes do Ministério Público e da polícia à casa de Francisco Lopes, aí coletando material a ser investigado, é a de que tal ato representa ""uma volta ao arbítrio". Ou seja, a uma situação em que predomina, sem consideração aos direitos alheios, a vontade de alguns dotados da força de autoridades, ainda que ilegítimas.
Dois dias antes, houve ato idêntico em busca de documentos do banqueiro Salvatore Cacciola, cujo Banco Marka foi beneficiário da venda, pelo Banco Central, de dólares abaixo do valor verdadeiro. A busca foi comentada por Fernando Henrique e por vários governistas, mas sem que fosse dada como ""uma volta ao arbítrio" nem mesmo como ato violento.
Os representantes do Ministério Público cumpriram, nos dois casos, a exigência legal para as buscas: a autorização judicial e a ação nas horas do dia. Para que haja a autorização, é necessária a existência de motivo relevante e objetivo, o que também foi cumprido com documentos ligando as pessoas de Cacciola e Lopes, nas preliminares daqueles favorecimento.
Fernando Henrique talvez não soubesse da correção do Ministério Público. Sabia, porém. Sua interpretação do episódio diz ainda: ""Trata-se de uma ação que extrapolou os limites do bom senso, embora tenha base legal".
Diante disso, uma primeira questão: se teve ""base legal", a ação não poderia representar ""uma volta ao arbítrio", que não é outra coisa senão a falta de base legal.
Segunda questão: se a ação teve ""base legal", como se justificaria a frase fortíssima do seu comentário? ""Espero que a opinião pública repudie a volta do arbítrio no Brasil" é, mais do que a reiteração de uma ilegalidade que o próprio Fernando Henrique negara, uma incitação explícita contra o Ministério Público. E, por decorrência, contra a Constituição que institui o Ministério Público e lhe confere a atribuição e o poder, independente das demais instituições, de representar o Estado nas ações públicas contra quem quer que seja. Inclusive o presidente da República.
Por isso, o potencial de consequências graves, dito lá em cima. A continuarem Fernando Henrique e os governistas a agir para sujeitar o Ministério Público às conveniências do governo, contra investigações sérias dos negócios no Banco Central, é bem capaz de entrar em cena o artigo 85 da Constituição, segundo o qual ""são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra (...) o livre exercício (...) do Ministério Público".
Seria fácil a representantes do Ministério Público apresentar provas de que Fernando Henrique subverteu a verdade dos fatos, contra o Ministério, e com isso, além do mais, praticou ""uma volta ao arbítrio" - outro ato definido como crime de responsabilidade.
Seria fácil, não. Ao que parece, já não é o caso de verbo no condicional. Pode ser no futuro.


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