UOL

São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CAMPO MINADO

Rolf Hackbart diz que não há motivo para substituir um superintendente se ele desempenha bem sua função

Dirigente do Incra não vai rever loteamento

IURI DANTAS
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Em sua primeira entrevista exclusiva desde que assumiu a presidência do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) no mês passado, Rolf Hackbart, 45, disse que não pretende rever o loteamento de cargos feito por seu antecessor, Marcelo Resende, nas superintendências do órgão, que colocou pessoas ligadas ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em cargos no instituto.
Segundo ele, não há motivo para substituir um superintendente se ele está desempenhando bem sua função: "Todo cidadão brasileiro tem uma carteira de identidade. Se está credenciado para o cargo, está no cargo e desempenha bem, não faz diferença se é oriundo de um movimento ou de uma empresa ou de um setor tal, A ou B. Esse não é o critério. O critério é o desempenho na execução da reforma agrária", afirmou.
Hackbart reclama da limitação orçamentária, critica os proprietários rurais por sua visão "segmentada", condena o plantio de transgênicos e promete menos burocracia na disponibilização de crédito para 2004. Sem fixar metas, ele atribui à penúria orçamentária o não-cumprimento da promessa feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em maio, de assentar 60 mil famílias até dezembro. "O principal entrave é o Orçamento da União." Hackbart recebeu a Folha na sexta-feira passada em seu gabinete.
 

Folha - O sr. não fixa metas. É medo de cobrança?
Rolf Hackbart -
A nossa preocupação é com qualidade. Não é nenhum medo em falar em metas. Acho muito bom a sociedade cobrar o maior número de famílias. Só que, para nós, o número vai ser o resultado do processo de desapropriação com qualidade.

Folha - Lula prometeu assentar 60 mil famílias em 2003. Por que o governo não vai cumprir a meta?
Hackbart -
Por várias razões. Assentamos 13.672 famílias e estamos trabalhando com o estoque de mais de 30 mil famílias no processo. Com quantas vamos chegar até o final do ano? Não sei, porque o processo de reforma agrária não casa com o ano civil. Poderemos chegar a um bom número. O principal entrave é o Orçamento da União, a capacidade de recursos para agilizar o número de famílias. Esse é o principal.

Folha - O Plano Nacional de Reforma Agrária sugerido por Plínio de Arruda Sampaio recomenda o assentamento de 1 milhão de famílias até 2006. Até 2004, não há dinheiro para 10% disso. O plano é crível ou é uma carta de intenções?
Hackbart -
O professor Plínio foi muito claro. Botou no papel, com a sua equipe, uma sugestão, uma recomendação para o governo. Agora o governo vai analisar essa sugestão, os números e a capacidade de realização. Aí entra nossa responsabilidade. Nós, sim, temos de dar uma resposta. Há condições para fazer o quê, quando, onde? Em todos os assentamentos por que a equipe do Incra passa é o mesmo. Chega de assentamento malfeito, chega de miséria, de sofrimento. A sociedade também cobra isso. Se quiser uma palavra de ordem, ela é: quantidade com qualidade. Saber combinar isso é nossa responsabilidade.

Folha - Há prazo para assentar as 162 mil famílias acampadas?
Hackbart -
Vamos fazer o maior esforço para assentar o maior número de famílias.

Folha - Nenhuma previsão?
Hackbart -
Não. Vamos trabalhar com o máximo. Estamos realizando concurso, buscando suplementação orçamentária, construindo o Orçamento do ano que vem e dialogando com os movimentos sociais.

Folha - Enquanto não assentam, o que fazer? Não há verba nem para cestas básicas.
Hackbart -
Enquanto isso, vamos assentando. Aquele número divulgado, de 13.672 famílias, com certeza já é maior. A reforma agrária continua. Essa foi minha grande surpresa positiva ao assumir. O processo continua e anda. Não no ritmo que a gente deseja, mas todos aqueles processos, da vistoria, do decreto, da emissão de TDAs, tudo aquilo continua.

Folha - Melhorar a qualidade pode acabar com o abandono da terra por parte do assentado?
Hackbart -
Um dos objetivos da reforma agrária é que as pessoas vivam no meio rural com qualidade, prazer e renda, que seja bom viver lá. Diminui a venda de lotes e o êxodo dos assentamentos.

Folha - Como fazer para o crédito chegar ao assentado?
Hackbart -
Hoje são R$ 5,4 bilhões no Pronaf [fundo para agricultura familiar]. Por um lado, ainda é pouco. Por outro, aplicar bem isso é um grande desafio. A grande forma de acessar o crédito é através do associativismo.

Folha - Por que não acontece?
Hackbart -
Estamos desburocratizando o acesso, incentivando organização das cooperativas, buscando fontes mais baratas e cobrando dos bancos os acordos para que agilizem o acesso.

Folha - Mas o Incra não dispõe de estrutura para tudo isso.
Hackbart -
Hoje não, mas estamos construindo, fazendo convênios com cooperativas, sindicatos, governos estaduais. E um trabalho intenso com os bancos.

Folha - Quando esse trabalho produzirá resultados práticos?
Hackbart -
No próximo plano safra, teremos muitos avanços.

Folha - Como reduzir a violência?
Hackbart -
Todo o governo está empenhado em diminuir a violência no campo. Estou conversando com as pessoas e as entidades para criar uma campanha pela paz no campo. Com conteúdo, medidas concretas. A Polícia Federal está com o mapeamento do Brasil inteiro, de onde está o armamento do latifúndio. E a Ouvidoria do Incra está num esforço enorme para se antecipar e evitar o conflito. Falta mais gente, faltam mais recursos. Sabemos que só vamos evitar conflitos e diminuir as mortes no campo com a ação do governo como um todo. Isso não pode ser função só do Incra.

Folha - Seu antecessor, Marcelo Resende, caiu por ter ligação íntima com o MST. O Incra foi loteado. Isso será revisto?
Hackbart -
O meu critério com os superintendentes é cobrar o desempenho na execução do programa de reforma agrária. E esse é o critério do presidente Lula e do ministro Miguel Rossetto comigo. É o critério fundamental. Temos demandas, planos de trabalho e eles têm que ser executados. Nosso relacionamento se dá com toda a sociedade. Estamos dialogando com todos os movimentos sociais: CUT, MST, Contag e CPT.

Folha - Se estiver trabalhando a contento, não importa ter vindo do MST, uma das partes interessadas?
Hackbart -
Todo cidadão brasileiro tem uma carteira de identidade. Se está credenciado para o cargo, está no cargo e desempenha bem, não faz diferença se é oriundo de um movimento ou de uma empresa ou de um setor tal, A ou B. Esse não é o critério. O critério é o desempenho na execução da reforma agrária.

Folha - Os ruralistas são corporativistas quando dizem que o governo Lula privilegia o MST?
Hackbart -
Pior. Eles têm uma visão muito departamentalizada e segmentada da sociedade. Houve uma vitória eleitoral no ano passado. Uma parte da sociedade aprovou e elegeu o presidente da República. E hoje ele está empenhando toda a sua liderança para que a reforma agrária aconteça. Os critérios de desempenho dos superintendentes do Incra devem ser cobrados pela sociedade.

Folha - O Estado pode expropriar terras usadas para o plantio de psicotrópicos e onde há trabalho escravo. Quando a lei será cumprida?
Hackbart -
Essa legislação precisa ser aprimorada. O que está na Constituição? Não cumprimento da função social é não respeitar o meio ambiente, não ter eficiência econômica e não respeitar a legislação trabalhista. Isso deve ser visto como um todo.

Folha - Precisa mesmo explicitar na lei ou basta negociar uma interpretação com o Judiciário?
Hackbart -
São as duas coisas. A lei precisa ser mais clara, e em vários lugares o Judiciário tem nos ajudado -e muito- na avaliação, levando em conta todos esses aspectos. Se discute muito se a terra é produtiva ou improdutiva, mas se discute muito pouco o cumprimento da legislação ambiental e das relações de trabalho.

Folha - O Incra pretende fazer com que os Estados cumpram os mandados de reintegração?
Hackbart -
Nós conversamos com vários. Estamos iniciando, conforme o Estado, conforme os dados. Estamos conversando.

Folha - Se o sr. fosse proprietário rural e tivesse sua fazenda produtiva invadida, o que faria, já que não adianta recorrer à Justiça?
Hackbart -
Em primeiro lugar, tentaria evitar ao máximo o conflito. Tratar o assunto como uma demanda da sociedade. Segundo, se minha terra fosse produtiva, demonstrar isso para a sociedade, Judiciário e Incra. E terceiro, estão conseguindo muitas reintegrações de posse. Não tem havido dificuldade. Ao contrário.

Folha - O sr. é favorável ao uso de transgênicos nos assentamentos para elevar a produção?
Hackbart -
No Brasil, estou convencido de que cada vez mais a produção, no caso da soja transgênica e do trigo, vai ser uma grande perda, um grande desastre econômico. Não é a toa que o Paraná vai aprovar uma legislação tornando o Estado livre de transgênicos. Porque, com a soja orgânica, estão conseguindo muito mais mercado internacional e conseguindo vender a preço mais alto. O modelo agrícola, o tipo de produção que interessa ao país, aos produtores, do ponto de vista econômico, é o orgânico. Sem falar na parte ambiental e na saúde.

Folha - Lula cometeu um erro ao autorizar o plantio?
Hackbart -
Não tenho nem tempo de analisar isso. Foi uma decisão que o presidente tomou e encaminhou ao Congresso, que vai debatê-la. É fundamental que o consumidor diga "não quero comer isso, quero comer aquilo". Esse está sendo o único lado bom desse debate. As pessoas do Rio Grande do Sul que estão orientando os produtores a produzirem soja transgênica serão responsabilizadas no futuro pelas perdas econômicas e até pela inviabilização de sua comercialização. Eu, que sou do Sul, fico olhando o Paraná, Estado livre de transgênicos, e o Rio Grande liderado por pessoas que não têm responsabilidade econômica. Estão levando os produtores a um desastre logo, logo. Basta a Monsanto querer cobrar os royalties da soja.

Folha - O que o sr. pretende realizar na presidência do Incra?
Hackbart -
Assentar o maior número de famílias possível, com qualidade. Demonstrar que a reforma agrária é importante para o desenvolvimento econômico, principalmente na produção de alimentos. Para que as pessoas se sintam bem, evitando o êxodo.


Texto Anterior: Outro lado: Fichas não são para cadastro, diz organizador
Próximo Texto: Perfil: Presidente do órgão trabalhou com Mercadante
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.