|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
HERANÇA MILITAR
País está um pouco atrasado, afirma pesquisador americano
Acesso a arquivo sobre golpe no Brasil é mais fácil nos EUA
Divulgação
![](../images/n2012200401.jpg) |
O pesquisador Peter Kornbluh, que disse que modelo americano pode servir de exemplo ao Brasil |
FABIANO MAISONNAVE
DE WASHINGTON
Enquanto o Brasil discute a liberação de seus documentos sobre a
ditadura militar, na internet já é
possível ouvir o presidente
Lyndon Johnson (1963-69) orientar um assessor "a estar preparado a fazer tudo que precisarmos"
para ajudar os golpistas, em pleno
dia 31 de março de 1964.
Esse e outros documentos sobre
o envolvimento americano no
golpe militar estão disponíveis
para qualquer pessoa por dois
motivos: a existência de uma sólida lei de 1966 regulamentando o
acesso a documentos federais (assinada pelo próprio Johnson) e o
trabalho da ONG The National
Security Archive (NSA), responsável pela liberação e catalogação
de milhões de papéis do governo
federal americano.
Um dos principais analistas do
NSA e especialista em América
Latina, o pesquisador Peter Kornbluh disse, educadamente, que o
Brasil "está um pouco atrasado"
no tema em comparação com vizinhos como Argentina e Equador. Para ele, o modelo norte-americano pode servir de exemplo para o Brasil, mas diz que o
governo George W. Bush tem dificultado cada vez mais a obtenção
de documentos.
Kornbluh, 48, é o autor do livro
"Pinochet: os Arquivos Secretos",
que acaba de ganhar uma versão
espanhol (editora Critica), sobre o
apoio do governo do presidente
Richard Nixon ao golpe que derrubou o presidente Salvador
Allende, em 1973.
O livro esteve no centro da polêmica que envolveu, no início do
ano, o ex-secretário de Estado
americano Henry Kissinger e o
brasilianista Kenneth Maxwell,
que acabou renunciando ao cargo
de diretor de estudos sobre a
América Latina no Council on Foreign Relations.
Leia, a seguir, a entrevista de
Kornbluh concedida à Folha em
seu escritório, em Washington.
Os documentos sobre o Brasil estão no endereço http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB118/index.htm
Folha - O Brasil está atravessando
um intenso debate sobre a liberação de documentos da época da ditadura militar. O país está atrasado
em relação aos vizinhos?
Peter Kornbluh - Há um movimento significativo para o acesso
à informação na América Latina.
Alguns anos atrás, o México aprovou uma consistente lei sobre liberdade de informação. Eles iniciaram agências de monitoramento, há grupos na sociedade civil pressionando o governo para
implementar a lei, é realmente um
modelo para o restante da América Latina. O Peru e o Equador
aprovaram as suas leis; na Argentina, o presidente Néstor Kirchner
tem empurrado a liberdade de informação por decretos presidenciais e apresentou uma legislação
no Congresso.
Pela América Latina, é um grande tema não apenas para países
como o Brasil, que querem examinar o seu passado, mas também trata-se de combater a corrupção e fortalecer a democracia.
O Brasil, que deveria ser um líder
para toda a região, com seu tamanho, modernidade e poder econômico, está um pouco atrasado.
Folha - Os EUA, que têm uma lei
sobre o assunto desde 1966, são
um modelo para o Brasil?
Kornbluh - Os Estados Unidos
têm um forte conjunto de leis, não
apenas a Foia (Lei sobre a Liberdade de Informação). Temos uma
lei que obriga o governo e seus
funcionários a preservar os documentos. Temos a Foia, que dá o
direito a qualquer pessoa de solicitar documentos a agências do
governo, forçando-as a revisar esses documentos para ver se podem ser liberados. Essa lei saiu
fortalecida após o escândalo do
Watergate, em meio à Guerra do
Vietnã. A opinião pública americana ficou cansada das mentiras
do presidente Richard Nixon. A
Foia foi então reescrita em 1974,
depois da renúncia de Nixon. As
mudanças foram vetadas pelo
presidente Gerald
Ford, mas o Congresso reverteu o
veto. Temos também o sistema das
bibliotecas presidenciais, que também preservam
documentos.
Os sistemas que
temos para preservar, catalogar e
eventualmente liberar documentos
são certamente
um modelo para
um país moderno
e grande como o
Brasil. Mas na
América Latina
não há, como
aqui, uma cultura
sobre o direito de
saber.
A sua organização tem criticado o
governo do presidente George W.
Bush por aumentar o número de
documentos sigilosos. É um problema sério neste momento?
Kornbluh - O governo Bush é
uma administração sigilosa. Eles
foram empossados há quatro
anos determinados a aumentar o
poder do Executivo segurando informações. A primeira coisa que
Bush fez foi um decreto no qual os
papéis presidenciais seriam protegidos por mais alguns anos.
Dessa forma, ele protegeu os documentos de seu
pai e de muitos de
seus assessores
que também haviam trabalhado
no governo dele.
E, certamente, depois do 11 de Setembro, o governo
Bush tem feito
muito mais operações secretas.
O sigilo leva ao
abuso de poder.
Como disse um
famoso juiz, Louis
Brandeis: "A luz
do sol é o melhor
desinfetante". Hoje [sexta], soubemos pelo "Washington Post" que
há um centro de
detenção secreto
em Guantánamo
(Cuba), onde os
prisioneiros são
mantidos sem
ninguém saber
nem sequer quem
são eles.
Isso é o equivalente aos "desaparecidos" na América Latina.
Ao mesmo tempo, devido aos escândalos com relação ao Iraque e
ao 11 de Setembro
e com as investigações e comissões do Senado,
estamos recebendo muito mais informações sobre o
que ocorreu dentro do governo e
tendo acesso a documentos que
nunca teríamos
previsto que veríamos tão cedo
com relação à
Guerra do Iraque
e à luta contra o
terrorismo.
Folha - O sr. tem pesquisado os
documentos americanos sobre o
envolvimento de Washington com
as ditaduras sul-americanas. No caso brasileiro, quais são os documentos que ainda não foram liberados?
Kornbluh - Há dois conjuntos de
documentos que estão faltando. A
CIA [inteligência americana] estava claramente envolvida no
Brasil, em 1964 e no que veio depois. Em alguns casos, sabemos
quem eram os
agentes da CIA.
Eu acredito que a
CIA tenha liberado dinheiro para
pagar alguns generais brasileiros,
esse tipo de coisa.
Mas não temos os
detalhes sobre isso porque a CIA
vem mantendo
essa documentação em segredo
durante todos esses anos. Quase
tudo que sabemos
sobre o envolvimento americano
vem de documentos do Departamento de Estado.
Há outra área
que continua sigilosa, que é como a
CIA e os militares
americanos colaboraram com os
generais durante a
"guerra suja" no Brasil. O Brasil
era um país muito importante em
meados dos anos 1960, e os EUA
queriam assegurar que o poder da
esquerda fosse cortado, reprimido. Eu acho que os EUA colaboraram com os militares brasileiros a
partir da metade dos anos 1960
em diante.
Em 1970, quando Salvador
Allende foi eleito presidente do
Chile, o Brasil foi o primeiro país
que Nixon procurou para dizer:
"Vocês trabalharão conosco para
ajudar a enfraquecer Allende e a
apoiar secretamente os militares
chilenos?". Não sabemos muito
sobre em que medida o Brasil colaborou com os Estados Unidos
nos esforços para enfraquecer a
esquerda pela América Latina.
Folha - O seu livro sobre Pinochet
estava no centro da controvérsia
entre Maxwell, que escreveu uma
resenha favorável a ele, e Kissinger. O que aconteceu?
Kornbluh - É uma história sobre
como antigos formuladores de
políticas, como Kissinger, são capazes de tentar distorcer a história
mantendo em segredo por muitos
anos documentos do governo
com eventos dos quais eles participaram. Kissinger manteve muitos documentos com ele, inclusive transcrições de ligações telefônicas, por quase 25 anos, até a minha organização forçá-lo a devolvê-los para o governo. Esses documentos mostram muitas coisas, inclusive o papel do governo
americano em enfraquecer o governo Allende. A controvérsia envolvendo Maxwell é, no fundo,
uma luta sobre a história, e não
sobre uma resenha de livro.
Folha - Como vocês conseguiram
recuperar os documentos levados
por Kissinger?
Kornbluh - Nós preparamos
uma ação judicial não contra Kissinger, mas contra o Departamento de Estado por ilegalmente
permitir que ele levasse esses documentos do governo. Nós mostramos a ação para os advogados
do Departamento de Estado e do
Arquivo Nacional e dissemos que
entraríamos na Justiça. Eles disseram: "Isso é muito forte, por que
vocês não esperam, nós falaremos
com Kissinger para dizer que seremos condenados, o que seria
muito ruim para ele e para nós".
Eles falaram com o Kissinger, e ele
disse: "Bom, eu deixo vocês fazerem cópias". Eventualmente, conseguimos a liberação desses documentos, que são muito, muito importantes.
Texto Anterior: Painel Próximo Texto: Atraso Índice
|