São Paulo, segunda-feira, 21 de janeiro de 2002

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ENTREVISTA DA 2ª

Para o presidente da Abong, Sérgio Haddad, aposta política deve ser propositiva, e não apenas de contestação

Fórum Social rejeita "espírito de Seattle"

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Sérgio Haddad, 52, é professor da PUC de São Paulo, presidente da Abong (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais), que reúne cerca de 250 entidades, e um dos integrantes do comitê de organização do Fórum Social Mundial 2002, que se realiza pela segunda vez em Porto Alegre, entre 31 de janeiro e 5 de fevereiro.
O FSM é uma versão paralela e em muitos sentidos oposta ao Fórum Econômico Mundial, que por 31 anos reuniu dirigentes do establishment político e financeiro na cidade suíça de Davos e agora se transfere, em sua 32ª edição, para Nova York.
Haddad qualifica o FSM -com seus esperados 40 mil participantes, conferências, oficinas e atos públicos- como "uma aposta política", capaz de chegar pelo diálogo a propostas de políticas públicas e de ampliação dos direitos dos cidadãos.
Dissocia-se, com isso, do chamado "espírito de Seattle", que se resume a manifestações puramente de protesto contra os efeitos da globalização, como as que ocorreram durante as últimas assembléias do Banco Mundial ou das últimas reuniões do G-8, o grupo de países mais industrializados e poderosos do planeta.
Eis os principais trechos de sua entrevista.

Folha - Se hoje a sociedade fosse estruturada apenas em partidos, sindicatos e associações -como 30 anos atrás-, o Fórum Social Mundial seria algo diferente do que é hoje com as ONGs?
Sérgio Haddad -
As ONGs são um fenômeno recente, que cresceram como um modelo suplementar de organização da sociedade. Elas não pretendem substituir sindicatos ou partidos, mas têm um espaço próprio de intervenção, uma natureza diferente. Uma ONG tem uma estrutura mais fluida, não é representante de ninguém. É um grupo de pessoas que produz certo tipo de conhecimento e ajuda a sociedade civil a produzir novos direitos.

Folha - Pelo fato de serem disseminadas, em nada hierarquizadas, as ONGs não teriam paralelamente o perfil oposto ao de uma suposta conspiração contra o mercado e a sociedade globalizada?
Haddad -
Essas organizações se complementam com outras estruturas, dos partidos e sindicatos à estrutura do próprio Estado. Elas têm em sua cultura a idéia de democracia direta, uma forma menos convencional de atuar junto ao poder público. É uma outra forma de fazer política, ajudando os grupos sociais a se organizarem para que seus direitos sejam reconhecidos. Um exemplo típico disso foi o Estatuto da Criança e do Adolescente, que partiu de ONGs e depois transitou pelos partidos e pelo Congresso para se tornar lei. As ONGs não substituíram a ação partidária ou a ação sindical, mas definiram a necessidade do novo direito.

Folha - As ONGs hoje prioritariamente somam esforços umas com as outras ou disputam espaços comuns de atuação?
Haddad -
Depende. Como são produto da sociedade, elas refletem as posições diversas e até divergentes que existem dentro dessa mesma sociedade.

Folha - Pode-se dizer que as entidades presentes no Fórum Social Mundial têm em comum posturas que são ou paralelas ou em oposição ao que pensa um banco ou uma corretora de títulos que atua no mercado globalizado?
Haddad -
As ONGs que participam do Fórum são aquelas mais identificadas com a criação de direitos e com a atuação das organizações sociais. Elas têm como base de seu funcionamento o fortalecimento da sociedade civil.

Folha - Esse fortalecimento tem como objetivo proteger a sociedade civil contra o quê?
Haddad -
É para que ela, a sociedade, possa ampliar seu espaço de direitos, obter direitos ainda não conquistados ou que se encontrem ameaçados. As ONGs podem até atuar na lógica do esvaziamento do papel do Estado, e há de fato organizações que se pautam dessa maneira. Mas nós, da Abong, achamos que é, ao contrário, o fortalecimento do poder público que pode universalizar direitos na área da saúde, da educação, de projetos de minorias.

Folha - Ou seja, fortalecer o poder público contra a globalização?
Haddad -
Fortalecer a sociedade civil como guardiã do Estado, de certa forma, é se opor à globalização, porque esse fortalecimento é indissociável da existência de um Estado que possa universalizar direitos. O Estado precisa ser bem mais que o regulador do mercado, como a globalização o concebe. Nessa concepção, algo como a educação deixa de ser um direito para se tornar mercadoria a ser consumida no mercado.

Folha - A batalha de ONGs como a sua será perdida a longo prazo, e seu esforço consiste apenas em retardar a vitória do mercado?
Haddad -
A lógica de mercado está muito bem implantada. Mas ela demonstra que é insuficiente para acabar com desigualdades ou atender às necessidades básicas da sociedade. Aumentou a concentração de renda, os países estão mais pobres, a África andou para trás, a Argentina surgiu como o grande exemplo negativo do desastre que o mercado globalizado é capaz de provocar num país antes bastante próspero. A lógica de mercado atingiu seu limite. Há equívocos hoje reconhecidos até pelo FMI e pelo Banco Mundial.

Folha - Não haveria hoje um clima desfavorável à contestação das ONGs, já que os atentados de 11 de setembro deram um outro foco às prioridades mundiais?
Haddad -
É natural que tenha havido um esvaziamento dos movimentos de protestos mais gerais. Esses movimentos ficaram acuados por um clima desfavorável. O FSM será de qualquer modo o primeiro grande momento pós-11 de setembro.

Folha - E como fica a contestação barulhenta, o chamado "espírito de Seattle"?
Haddad -
O Fórum tem essa vertente de mobilização, de protesto, mas ele também possui um lado propositivo, de debate de idéias. O que significa fundamentalmente uma aposta na política, contrária a qualquer ato de terrorismo ou ato de guerra dos Estados. O Fórum Social Mundial aposta no diálogo, no debate de idéias, opondo-se aos movimentos baseados apenas na contestação, no atirar pedras, no protesto.

Folha - Essa aposta na política será consensual em Porto Alegre?
Haddad -
Espero que sim. Temos isso claramente fixado pela nossa carta de princípio. Estaremos bastante atentos para não permitir nenhum tipo de violência nos moldes dos protestos de Gênova [em 2001, durante a reunião do G-8". Há sempre esse perigo em reuniões às quais estão presentes muita gente da mídia e tantos convidados estrangeiros de maior visibilidade.

Folha - Seria então uma contestação do establishment, mas bem-comportada?
Haddad -
Depende do que se compreender por bom comportamento. O Fórum é radical no sentido de ir às raízes dos problemas sociais. Mas é também um grande espaço de articulação e mobilização, permitindo que surjam agendas, mobilização.

Folha - O sr. poderia dar um exemplo dessa mobilização?
Haddad -
Um grupo de movimentos sociais que se reuniu em Porto Alegre no ano passado voltou a se reunir no México, dando margem a encontros regionais que unificaram certas ações contra por exemplo a Alca (espaço econômico das Américas, com predominância dos Estados Unidos), ou pela criação de um Tribunal contra a dívida externa.

Folha - Apesar do 11 de setembro, o Fórum Social Mundial tende a crescer este ano, se comparado ao de 2001?
Haddad -
- No ano passado prevíamos 2.500 inscrições e ocorreram 4.000. Este ano abrimos 10 mil e tivemos 15 mil pré-inscrições. Este ano, no acampamento de juventude, já estávamos há uma semana com 9.000 inscrições. É possível que cheguemos, entre delegados inscritos e participantes de eventos abertos, a algo bem superior a 40 mil pessoas.



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