São Paulo, domingo, 21 de maio de 2000


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ELIO GASPARI

A História do Brasil está liberada, no exterior

Deve-se ao repórter Márcio Aith a descoberta de um documento da Agência Central de Inteligência que dissocia o governo brasileiro das atividades do Esquadrão da Morte da repressão política das ditaduras sul-americanas dos anos 70. Triste situação. A história do Brasil está sendo escrita com documentos paraguaios e americanos. O "Arquivo do Terror", guardado em Assunção, revela as conexões da ditadura brasileira com suas similares. O da CIA diz que esse envolvimento não chegou ao ponto de o Brasil ter-se envolvido, em 1976, em operações de terrorismo internacional. Em tudo isso, o grande mudo é o próprio Brasil. A política de sigilo que o Estado pratica em relação aos crimes e à política de extermínio que praticou contra as organizações de esquerda entre 1971 e 1974 é antes de tudo inepta. A papelada da Operação Condor mostra que está produzindo um efeito contrário. Transformou suspeita em denúncia, desconfiança em certeza.
Como FFHH gosta de repetir, o problema nacional não é o conservadorismo. É o atraso. Tentar trancar a História é coisa de gente atrasada. Ela não é um processo penal, é uma ferramenta de conhecimento.

O governo pode divulgar pelo menos a versão do CIE

O Estado brasileiro finge que não houve uma guerrilha no Araguaia, na qual, a partir do final de 1973, não se faziam prisioneiros. Atira no próprio pé. Falta pouco para que o governo americano libere as informações que colheu a respeito desse massacre. Nele morreram 58 militantes do PC do B e um número desconhecido (e bem menor) de militares.
Mesmo para quem acredita que os documentos do governo foram queimados, há num cofre de Brasília uma história completa do triste capítulo do combate à esquerda armada (e desarmada). Tem dois volumes. Foi preparada por oficiais do Centro de Informações do Exército e ficou pronta antes de 1998. Pelo pouco que se sabe dela, é bastante documentada. Se o governo quer divulgar documentos, pode começar por esse. Primeiro porque ele existe. Segundo, porque ele não contém a visão da esquerda, mas a do CIE.
Os documentos paraguaios guardam a memória de três coisas distintas. A primeira é a natureza internacional da repressão política durante os anos 60 e 70. A segunda é o projeto de montagem, no Chile, de um banco de dados sobre as atividades de organizações esquerdistas no Cone Sul. A terceira é a formação, em 1976, novamente pelo chilenos, de um esquadrão da morte.
Vale lembrar que era internacional também a atividade da esquerda. Brasileiros receberam treinamento militar na China e em Cuba, por onde passaram pouco mais de cem combatentes. Foi na embaixada da Argélia que se guardou parte dos US$ 2,5 milhões capturados pela VPR no cofre da namorada do ex-governador paulista Adhemar de Barros.

"Melhorou, aqui entre nós, quando nós começamos a matar"

A articulação internacional da ditadura vem das primeiras horas de sua existência. A Agência Central de Inteligência e o SNI formalizaram um acordo verbal de cooperação em meados de 1964. Cinco anos depois, quando um grupo de terroristas matou o capitão americano Charles Chandler, montou-se uma equipe investigadora no Brasil. Chefiava-a Peter Ellena, agente de segurança do programa de ajuda econômica americana. Em dezembro de 1976, depois da vitória do candidato democrata Jimmy Carter, o jogo virou. O cônsul dos Estados Unidos em São Paulo Frederic Chapin tentou impedir o Massacre da Lapa, no qual três dirigentes do PC do B foram assassinados. (Seu antecessor tivera o comandante do DOI em casa, num jantar de muitos convidados.)
Militares brasileiros fizeram cursos nos Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra. Quatro celas de tortura, nas quais os presos ficavam num cubículo onde se alternavam calor e frio, silêncio e ruídos, foram instaladas em 1971 no DOI do Rio, sob a supervisão de pessoas que falavam inglês. Elas foram vistas pela primeira vez na Inglaterra, por bolsistas do CIE. (A professora Maria da Conceição Tavares esteve numa delas.) Até 1970 um americano frequentava desembaraçadamente o DOI paulista. Lia as confissões manuscritas dos presos. Esses papéis não iam para a Justiça Militar.
Com a Argentina e com o Paraguai (mais tarde com o Uruguai e o Chile), a cooperação foi mais funda e operacional. O governo brasileiro informou em pelo menos duas ocasiões ao então ditador Alfredo Stroessner que se armavam um golpe e um atentado contra ele. O professor Martín Almada, descobridor do "Arquivo do Terror", foi torturado ao som de Cidade Maravilhosa. Entre seus interrogadores estava um brasileiro. Militares brasileiros meteram-se com a direita terrorista no Uruguai. Um general comandante do 3º Exército chegou a planejar uma invasão do Uruguai caso a esquerda vencesse a eleição presidencial de 1971. Um avião a serviço do SNI desembarcou armas em Santa Cruz de la Sierra, durante os preparativos do golpe que derrubaria o presidente boliviano Juan Jose Torres, em 1971. Em 1975, o SNI meteu-se até numa conversa de invasão de Portugal com as falanges imaginárias do general Antonio de Spinola. Os subúrbios da repressão brasileira contrabandearam dólares e armas para o Chile ao tempo do governo do presidente Salvador Allende. Policiais brasileiros voaram para Santiago nos dias seguintes ao golpe do general Pinochet, em setembro de 1973. Trouxeram de volta papéis apreendidos na Associação Chileno-Brasileira de Solidariedade, que congregava exilados. Nessa documentação veio um plano, feito por nativos, sobre a organização da oposição junto aos intelectuais.
Num outro patamar de cooperação delinquente, argentinos foram sequestrados no Brasil e brasileiros, na Argentina. O mesmo sucedeu com o Uruguai, até 1978.
A partir do final de 1970 o aparelho repressivo do Estado brasileiro dedicou-se a uma política de extermínio dos militantes da esquerda armada. Em 1971 o surto terrorista já estava contido.
Quem voltava de Cuba, podia passar para a polícia (ou para o Centro de Informações do Exército). Fora disso, morria. Entre 1971 e 1973 mataram 26. O mesmo tratamento se aplicava aos 130 banidos. Pegaram 12, nenhum sobreviveu. É dessa época a montagem da Casa da Morte, em Petrópolis. Nas palavras de um general do serviço ativo, com graduação e biografia capazes de sustentar a autoridade de sua afirmação: "O negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, quando nós começamos a matar. Começamos a matar".
Em 1973 foram capturados em Buenos Aires e executados no Brasil os exilados Joaquim Pires Cerveira e João Batista Ria. O mesmo teria sucedido ao ex-sargento Edmur Péricles Camargo. Segundo um relatório da Marinha, ele foi preso em Buenos Aires "por autoridades brasileiras e argentinas". É certo que a colaboração argentina permitiu o massacre de cinco brasileiros que regressavam clandestinamente ao Brasil em julho de 1974. (Nesse lote morreu um argentino de 18 anos.)
Nada disso era feito à revelia dos generais. Quem propaga essa patranha mente ao público.

Os chilenos queriam criar um Mercoporão

Tudo isso aconteceu no Brasil antes da existência da Operação Condor, numa época em que o Chile era governado pelo socialista Salvador Allende. A ditadura chilena só tentou sistematizar a repressão política no Cone Sul em 1975. Queriam montar algo parecido com uma Interpol antiterrorista, um Mercoporão. Essa iniciativa é conhecida desde 1993 e não há sinal de que o banco de dados tenha existido, nos ambiciosos moldes em que foi projetado.
A Condor foi descoberta pelos americanos e franceses entre agosto e setembro de 1976. Nessa altura, já era um esquadrão. No dia 6 de agosto o secretário de Estado, Henry Kissinger, escreveu aos seus embaixadores em Santiago, Brasília, Buenos Aires, Montevidéu e Assunção dizendo que trocar informações era uma coisa e sair matando gente por aí, bem outra.
Pediu-lhes que dessem o recado aos presidentes dos cinco países. Também pediu que se avisasse à ditadura argentina que ela deveria parar de matar refugiados estrangeiros. Quando o Departamento de Estado expediu esse telegrama, a CIA já dissociara o Brasil do braço armado da Condor. (A propósito, a relação do governo americano com a questão dos direitos humanos na América Latina durante esses anos está magnificamente contada num livro que acaba de ser publicado. É "Estados Unidos: Poder e Submissão - Uma História da Política Norte-Americana em Relação à América Latina", do professor Lars Schoultz. Saiu pela Editora da Universidade do Sagrado Coração.)
Em setembro de 1976, o FBI relatava o que descobrira a respeito da Operação Condor. O documento, revelado pelo repórter Geneton Moraes Neto em 1995, informava o seguinte:
"A fase mais secreta da Operação Condor envolve a formação de equipes especiais dos países membros. (...) Se um terrorista ou quem apóia uma organização terrorista de um dos países da Operação Condor for localizado num país europeu, uma equipe especial da Operação Condor poderá ser enviada para vigiar o alvo. (...) Depois, uma segunda equipe da Operação Condor poderá ser despachada para executar a sanção. Equipes especiais poderão receber documentos falsos dos países membros da Operação Condor." (Uma equipe terrorista chilena deu um tiro no rosto de um exilado democrata-cristão, em Roma.)
Sabe-se de uma denúncia segundo a qual, em 1976, o Serviço de Informações da Marinha chilena pediu à embaixada brasileira dois passaportes frios. A mesma pessoa que denunciou o pedido informa que eles não foram dados.

O segredo produz o mistério. O mistério, a fantasia

Não se conhecem documentos capazes de comprovar que a ditadura brasileira tenha se envolvido com o esquadrão da morte da Operação Condor. Não só pelo que dizem até agora os documentos americanos, mas também por cacos colhidos nas conversas da época. Em janeiro de 1975, o chefe do SNI, general João Baptista Figueiredo, dizia que o presidente Ernesto Geisel não queria que o Serviço se envolvesse com o Chile. Oferecia-lhes ensino, na Escola de Informações. Na segunda metade de 1976, a matança brasileira estava acabando. Geisel já investira contra o porão, demitindo o comandante do 2º Exército depois do assassinato de um operário no DOI de São Paulo. Naquele ano a máquina de repressão matou cinco pessoas (contra algo como 50 por ano, na média, entre 1971 e 1974).
Em 1978 apareceu um lote de documentos que relacionavam o SNI ao serviço chileno. Um deles, o mais cabeludo, mencionava um atentado (sob o disfarce de "acidente") contra o almirante cassado Cândido Aragão. É falso. Grafa SNI como "S.N.I." e qualifica Figueiredo como "Ministro Diretor", quando seu título era de "ministro-chefe", ou simplesmente "chefe".
Não falta quem prefira acreditar que a ditadura brasileira esteve na linha de frente da Condor e que, nela, matou não só o ex-presidente João Goulart, como provocou o acidente em que morreu Juscelino Kubitschek. Por enquanto o que há aí é uma soma de suspeitas com fantasias. Elas são estimuladas pelo legítimo direito de sua família de pedir uma investigação. É o mínimo que se deve a quem teve seu marido e pai perseguido em vida e humilhado até no funeral.
O segredo em que os governos encobriram os crimes praticados em nome do Estado foi armado para protegê-lo e está produzindo o efeito inverso. Enfraquece os governos democráticos. A política de extermínio é tolice. Ela é matematicamente comprovável. As autópsias coletadas pelo projeto Brasil Nunca Mais informam o seguinte: naquele ano, entre 19 mortos em "tiroteios", seis (32%) tinham tiros na cabeça. Marca de campeões olímpicos de pontaria. No ano seguinte, num universo de 22 cadáveres, 15 (68%) tinham balas na cabeça. Deles, sete (32%) tinham duas.



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