São Paulo, domingo, 21 de junho de 1998

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MIGRAÇÃO
Alagoana que fugiu da seca diz que, às vezes, se sente covarde por ter abandonado a região de Maceió
"Será que estou morta e não estou sabendo?'

especial para a Folha

"Só sobrou estrada para nós." Depois dessa constatação, Conceição Alves dos Santos, 44, o marido, Everaldo João dos Santos, 34, e a filha, Joana D'Arc, 3, viajaram da região de Maceió (AL) durante 25 dias, a pé e pegando carona.
Trabalhavam no plantio de verduras na "terra dos outros". Compraram sementes para pagar depois da colheita. Como a chuva não veio, tiveram de vender os poucos pertences que tinham para pagar a dívida, senão correriam o risco de serem assassinados.
"Com as dificuldades", diz Conceição, "me revoltei, bateu um desespero!" Uma noite acordou o marido decidida a ir para São Paulo. Venderam cinco garrafas de cerveja que tinham e compraram pão para comer na viagem. Quando chegaram, foram para um albergue.
"Era muito ruim", diz Conceição. "Às 4h, acordavam todo mundo. Às 5h, tínhamos de sair. Joana chorava, tinha sono, não queria ir para a rua. Depois vagamos quatro dias pelas ruas, quando soubemos de um prédio que foi sede da Secretaria de Estado da Cultura e, hoje, é ocupado por famílias do Movimento dos Sem Teto. Às vezes me pergunto: "Será que estou morta e não estou nem sabendo?"'
Estão no sexto andar do prédio, numa das salas, com divisória de madeira improvisada. Os três dormem num espaço de pouco mais de 2,5 m x 2,5 m, sem colchões e quase sem cobertas. Everaldo adoeceu. "Estouraram varizes nas pernas." Joana, segundo a mãe, tem sério problema cardíaco.
"No prédio, não tem café da manhã. Dão duas refeições com arroz, feijão e batata. De tarde, a gente faz fila para receber um pão aqui perto."
"A gente tem as raízes da gente", diz Conceição. "É tudo muito diferente daqui. Lá, mesmo passando fome, tem com quem conversar. Eu estava junto com eles." Ela chora ao lembrar da família. "A gente anda, se perde por aí. Everaldo foi juntar lata de cerveja para vender e teve de pedir ajuda para voltar."
Conceição diz que às vezes pede dinheiro perto da igreja. "A gente não está acostumada. Eu sei cozinhar e já trabalhei como manicure. Sei fazer pãozinho, licor, geléia, churrasquinho. Lá, juntava as vizinhas para fazer pão. Cada uma entrava com o que tinha. Se o meu patrão estivesse vivo, as coisas não estariam assim. Era Pedro Collor. Durante seis anos fiz congelados para ele. Ele gostava do rocambole com carne que eu fazia." Depois da morte dele, Conceição diz que perdeu o contato.
Conceição conta que outros retirantes ficaram pelo caminho, entre Alagoas e São Paulo. "A viagem é difícil. Até cobra pegou na perna da menina, enquanto ficávamos debaixo de uma ponte, em Governador Valadares (MG). Em outra cidade, passamos a noite debaixo da ponte também, quando "filhinhos de papai' jogavam garrafas na cabeça da gente."
Quando estava quase chegando a São Paulo, Conceição encostou em um posto de gasolina e cochilou. Aí roubaram sua bolsa, com o pouco que tinham, além de documentos e exames da menina.
Durante a viagem, tinham notícia do que se passava no país. "Quase chegando à Bahia, me disseram: "Não vá para Salvador. O povo está na rua porque morreu o filho do dono da Bahia'. A gente ouvia dizer tudo na estrada: as mortes de Luís Eduardo Magalhães e de Sérgio Motta", recorda.
Por que decidiu vir para São Paulo? "Via tanta coisa bonita na televisão! A gente passou por muito lugar feio. Não queria fica lá, não", disse ela.
Se pudesse, voltava? "Não, quero trabalhar antes de voltar. Assim que ganhar os primeiros R$ 200, mando para minha família." "Às vezes me sinto covarde por ter fugido da minha cidade, deixado os outros. Poderia ter ficado, como eles ficaram. Estou me sentindo egoísta. Lá, eu sofria junto. Mas, se eu trabalhar, acho que pode dar certo. Aqui tem muita gente que fica dormindo, não tem força de vontade. Se lutar, consegue."
Conceição diz que sabe ler. Estudou até a segunda série. O marido não sabe. Ela conta que, aos 16 anos, teve duas gêmeas, com o filho de um patrão. "Ele tinha vergonha da minha cor. Não me queria como mulher, só para servir. Larguei as meninas com ele."
"Everaldo foi criado num orfanato, por isso é quieto assim. Tem um irmão que foi adotado e hoje é advogado, trabalha na Câmara de Recife. Everaldo foi procurá-lo e ele não ajudou."
É realmente impressionante a dignidade daquela mulher e sua autoconfiança diante de situação terrível e dos desafios que lhe estão postos. Tal postura não é comum às pessoas submetidas à situação de miséria e ao assistencialismo e paternalismo com que frequentemente são tratadas.
(LUIZA ERUNDINA)



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