|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Erundina vira repórter a convite da Folha
MARIA CRISTINA FRIAS
da Equipe de Editorialistas
"É isso que faz a gente querer ter poder! Me sinto tão impotente..." O desabafo da ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, saiu depois de dezenas de entrevistas em bairros que concentram nordestinos na cidade que
ela governou.
A convite da Folha, a paraibana e filha de pais que também
migraram fugindo da seca dedicou-se durante dez dias, de bloco em punho, a traçar um perfil
de pessoas que deixam sua terra
à procura de oportunidades que
a cidade quase não oferece mais.
Em busca desse migrante,
Erundina andou pelas ruas do
Brás, do Glicério, pelos albergues noturnos para desabrigados, circulando entre feirantes e
marreteiros e até em prédio
abandonado pelo Estado e invadido por sem-teto.
Esbarrou na falta de informações. Os governos municipal e
estadual não têm estatísticas
atuais sobre retirantes.
"Estou acostumada com a pobreza, mas cada vez me causa
mais impacto, observou a
ex-prefeita. É muito sofrimento,
miséria e desagregação."
A família de Erundina também
se dispersou. Os irmãos mais velhos ficaram pelas cidades para
onde migraram, ainda no nordeste. Foram duas as secas que,
em 1932 e 1942, expulsaram a família de Erundina de Uiraúna,
cidadezinha do alto sertão paraibano, a quase 500 km de João
Pessoa.
Na primeira, ela ainda não havia nascido. Mas da segunda, se
lembra bem. Tinha então sete
anos e a viagem, conta, foi na
mesma condição em que muitas
pessoas migram hoje.
"Adultos iam a pé e as crianças, em animais, por léguas e léguas antes de pegar o trem. Depois dormiam em pernoites,
pensões muito precárias".
Na chegada a Crato, no Ceará,
o pai procurou um amigo, que
lhe prometera um emprego. O
serviço não saiu, mas Antônio
Evangelista Souza se virou fazendo arreios para cavalos e outros trabalhos com couro, a
mesma atividade de outros nordestinos que ela encontrou em
São Paulo.
Depois de mais de dois anos no
Ceará, uma nova separação. A
mãe, grávida, teve de voltar a Uiraúna para ter o bebê.
Ela só a reencontraria meses
depois, quando o pai decidiu
voltar para casa "porque choveu". A família tinha uma terra
em que, além de plantar para comer, cultivava algodão, cuja
venda permitia a compra de outros alimentos e alguma roupa.
Como também é comum no
Nordeste, mais tarde Erundina
migrou dentro do próprio Estado para estudar. Isso só foi possível porque uma tia, apesar de
muito pobre, se dispôs a recebê-la para que fizesse o ginásio
em Patos.
Sua história se repete de alguma forma em todos os relatos
que ela vai ouvindo. Com a experiência de quem viu esse quadro tantas vezes- como migrante, assistente social e como
prefeita-, a Erundina repórter
faz perguntas pertinentes, insiste no detalhamento e na precisão
das informações. E ouve as respostas com uma atenção algo rara entre políticos.
Tem lá suas técnicas. Frequentemente inicia a abordagem com
um "oi, meu irmão". Aproxima-se do linguajar dos conterrâneos com frases do tipo "foi,
não?".
E até conta uma piada para defender Miguel Arraes, governador de Pernambuco, da acusação de um migrante, para quem
o presidente nacional do PSB
"já morreu". "Ele está vivíssimo", concluiu, rindo.
Algumas vezes, Erundina, que
já foi a "xiita do PT", deixou a
reportagem de lado para aconselhar: "Regularize a situação, pague impostos", disse ao proprietário de um ônibus clandestino.
"Você não pode desanimar,
você tem uma filha", consola
uma retirante que chora, por
não ter onde morar ou o que comer. Abre a carteira e dá um dinheiro à mulher, apesar de não
querer que confundam gestos
como esse "com o clientelismo
e a demagogia que a gente tanto
critica".
Em alguns momentos, ressurge o discurso de outros tempos.
"Tem que resistir, meu irmão,
senão, como é que fica?", pergunta a um marreteiro, que comenta a decisão do prefeito de
São Paulo, Celso Pitta, de remover ambulantes do Brás. "Ele
(Pitta) não gosta de pobre", dispara.
Com um outro eleitor que, como muitos outros, reclama da
sua ausência no comando da cidade, Erundina se empolga.
"Em 2002, eu tento a prefeitura!", é a resposta que, mais tarde, a candidata a deputada federal pelo PSB não confirma à reportagem da Folha.
"A gente fica impressionada
como esses governos não se tocam", comenta, sobre a insensibilidade de políticos em relação
à seca e à miséria. Ela acredita
que não tem telhado de vidro.
"Não são de responsabilidade
da prefeitura".
Durante a sua gestão, afirma,
teve "uma ação preventiva para
garantir atendimento escolar,
além da criação de cooperativas
para geração de renda".
À construção de casas populares, uma prioridade no início do
seu governo, Erundina destinou
3,3% do Orçamento. "Além das
dívidas de outras gestões, não
conseguimos financiamento",
lembra.
Ao longo de toda a apuração,
uma única vez a prefeita-repórter deixou vir à tona lembranças
do tempo em que chegou a São
Paulo, já adulta. Foi ao ver uma
migrante com lágrimas nos
olhos que Erundina se abriu.
"Eu também chorei, me arrependi de ter vindo. Você ainda
vai voltar para lá."
RAIO X
Nome: Luiza Erundina de Souza
Idade: 63 anos
Formação: Serviço social,
mestrado em ciências sociais
Cargos: Prefeita de São Paulo (89 a
92); vice-presidente nacional do PSB
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|