São Paulo, domingo, 21 de junho de 1998

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Erundina vira repórter a convite da Folha

MARIA CRISTINA FRIAS
da Equipe de Editorialistas

"É isso que faz a gente querer ter poder! Me sinto tão impotente..." O desabafo da ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, saiu depois de dezenas de entrevistas em bairros que concentram nordestinos na cidade que ela governou.
A convite da Folha, a paraibana e filha de pais que também migraram fugindo da seca dedicou-se durante dez dias, de bloco em punho, a traçar um perfil de pessoas que deixam sua terra à procura de oportunidades que a cidade quase não oferece mais.
Em busca desse migrante, Erundina andou pelas ruas do Brás, do Glicério, pelos albergues noturnos para desabrigados, circulando entre feirantes e marreteiros e até em prédio abandonado pelo Estado e invadido por sem-teto.
Esbarrou na falta de informações. Os governos municipal e estadual não têm estatísticas atuais sobre retirantes.
"Estou acostumada com a pobreza, mas cada vez me causa mais impacto, observou a ex-prefeita. É muito sofrimento, miséria e desagregação."
A família de Erundina também se dispersou. Os irmãos mais velhos ficaram pelas cidades para onde migraram, ainda no nordeste. Foram duas as secas que, em 1932 e 1942, expulsaram a família de Erundina de Uiraúna, cidadezinha do alto sertão paraibano, a quase 500 km de João Pessoa.
Na primeira, ela ainda não havia nascido. Mas da segunda, se lembra bem. Tinha então sete anos e a viagem, conta, foi na mesma condição em que muitas pessoas migram hoje.
"Adultos iam a pé e as crianças, em animais, por léguas e léguas antes de pegar o trem. Depois dormiam em pernoites, pensões muito precárias".
Na chegada a Crato, no Ceará, o pai procurou um amigo, que lhe prometera um emprego. O serviço não saiu, mas Antônio Evangelista Souza se virou fazendo arreios para cavalos e outros trabalhos com couro, a mesma atividade de outros nordestinos que ela encontrou em São Paulo.
Depois de mais de dois anos no Ceará, uma nova separação. A mãe, grávida, teve de voltar a Uiraúna para ter o bebê.
Ela só a reencontraria meses depois, quando o pai decidiu voltar para casa "porque choveu". A família tinha uma terra em que, além de plantar para comer, cultivava algodão, cuja venda permitia a compra de outros alimentos e alguma roupa.
Como também é comum no Nordeste, mais tarde Erundina migrou dentro do próprio Estado para estudar. Isso só foi possível porque uma tia, apesar de muito pobre, se dispôs a recebê-la para que fizesse o ginásio em Patos.
Sua história se repete de alguma forma em todos os relatos que ela vai ouvindo. Com a experiência de quem viu esse quadro tantas vezes- como migrante, assistente social e como prefeita-, a Erundina repórter faz perguntas pertinentes, insiste no detalhamento e na precisão das informações. E ouve as respostas com uma atenção algo rara entre políticos.
Tem lá suas técnicas. Frequentemente inicia a abordagem com um "oi, meu irmão". Aproxima-se do linguajar dos conterrâneos com frases do tipo "foi, não?".
E até conta uma piada para defender Miguel Arraes, governador de Pernambuco, da acusação de um migrante, para quem o presidente nacional do PSB "já morreu". "Ele está vivíssimo", concluiu, rindo.
Algumas vezes, Erundina, que já foi a "xiita do PT", deixou a reportagem de lado para aconselhar: "Regularize a situação, pague impostos", disse ao proprietário de um ônibus clandestino.
"Você não pode desanimar, você tem uma filha", consola uma retirante que chora, por não ter onde morar ou o que comer. Abre a carteira e dá um dinheiro à mulher, apesar de não querer que confundam gestos como esse "com o clientelismo e a demagogia que a gente tanto critica".
Em alguns momentos, ressurge o discurso de outros tempos. "Tem que resistir, meu irmão, senão, como é que fica?", pergunta a um marreteiro, que comenta a decisão do prefeito de São Paulo, Celso Pitta, de remover ambulantes do Brás. "Ele (Pitta) não gosta de pobre", dispara.
Com um outro eleitor que, como muitos outros, reclama da sua ausência no comando da cidade, Erundina se empolga.
"Em 2002, eu tento a prefeitura!", é a resposta que, mais tarde, a candidata a deputada federal pelo PSB não confirma à reportagem da Folha.
"A gente fica impressionada como esses governos não se tocam", comenta, sobre a insensibilidade de políticos em relação à seca e à miséria. Ela acredita que não tem telhado de vidro. "Não são de responsabilidade da prefeitura".
Durante a sua gestão, afirma, teve "uma ação preventiva para garantir atendimento escolar, além da criação de cooperativas para geração de renda".
À construção de casas populares, uma prioridade no início do seu governo, Erundina destinou 3,3% do Orçamento. "Além das dívidas de outras gestões, não conseguimos financiamento", lembra.
Ao longo de toda a apuração, uma única vez a prefeita-repórter deixou vir à tona lembranças do tempo em que chegou a São Paulo, já adulta. Foi ao ver uma migrante com lágrimas nos olhos que Erundina se abriu.
"Eu também chorei, me arrependi de ter vindo. Você ainda vai voltar para lá."

RAIO X

Nome: Luiza Erundina de Souza Idade: 63 anos
Formação: Serviço social, mestrado em ciências sociais Cargos: Prefeita de São Paulo (89 a 92); vice-presidente nacional do PSB



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