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São Paulo, quinta-feira, 21 de agosto de 2003

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ENTREVISTA

Presidente tacha reeleição de "desastrosa e perniciosa", critica FHC e rebate avaliações de Alencar sobre economia

País não precisa renovar com FMI, diz Lula

ELIANE CANTANHÊDE
DIRETORA DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
KENNEDY ALENCAR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ontem que o Brasil "não precisa" e "não é obrigado" a renovar o acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional) que vence no fim do ano e que permitiu ao país tomar um empréstimo de até US$ 30 bilhões -um terço ainda não foi sacado.
"Pela lógica, o Brasil não precisa renovar o acordo com o FMI. O acordo com o FMI termina e o Brasil não é obrigado. Depende da vontade do governo e de que tipo de acordo", disse Lula, numa conversa de uma hora e 55 minutos com jornalistas no Palácio do Planalto.
Ele deixou clara a intenção de negociar -e não só revalidar burocraticamente- o acordo, selado ainda no governo Fernando Henrique Cardoso: "O governo não vai dizer "fora o FMI", mas não estamos sufocados com isso".
Lula só quebrou o ar descontraído ao criticar Fernando Henrique Cardoso. Fez referências duras ao antecessor e condenou a reeleição, chamada por ele de "desastrosa": "Se não tivesse brigado pela reeleição, ele teria saído como um deus".
Ao se posicionar "filosoficamente" contra a reeleição, defendeu um mandato único de 5 anos. Indagado se isso significava que ele não se recandidataria, saiu pela tangente.
Lula não atacou o seu vice, José Alencar, mas rebateu a avaliação dele de que o ano foi perdido na economia. "Este foi o ano que consertou a economia, arrumou a casa", afirmou o presidente.
Ao explicar por que evitou contatos regulares com a imprensa por quase oito meses, Lula disse que estava aguardando o momento certo.
A entrevista foi na sala de reuniões do presidente, com café da manhã. Lula fumou três cigarrilhas holandesas. De terno novo, explicou que está oito quilos mais magro à custa de exercícios e de uma dieta à base de proteínas.
No início, chamou a primeira-dama para sentar-se a seu lado, brincando: "Marisa, vem pra cá. Fica parecendo aquele casal de papagaio australiano". A primeira-dama, porém, saiu dez minutos depois. Ficaram o ministro Luiz Gushiken (Comunicação de Governo), o porta-voz, André Singer, e o secretário de Imprensa e Divulgação, Ricardo Kotscho.
 

FMI
"Pela lógica, o Brasil não precisa renovar o acordo com o FMI. O acordo com o FMI termina e o Brasil não é obrigado. Depende da vontade do governo e de que tipo de acordo. O governo não vai dizer "fora o FMI", mas não estamos sufocados com isso. Aprendi uma coisa em economia com o Ulysses Guimarães: "Fale o mínimo possível e faça; se falar o máximo, não faz". Tranquilidade e caldo de galinha não fazem mal a ninguém."

REFORMAS
"Entreguei as propostas de reforma no dia 30 de abril, com dois meses de antecedência em relação ao cronograma original. As reformas vão passar. O importante é manter o núcleo."
Lula negou que esse "núcleo", na tributária, seja apenas a prorrogação da CPMF e da DRU, principais interesses do governo.
"O objetivo da reforma é desonerar a produção e as exportações o máximo possível. É também reduzir as alíquotas do imposto estadual para cinco e fazer uma só lei nacional."

REELEIÇÃO
"Com medo de mim em 94, diminuíram o mandato de cinco para quatro anos. Filosoficamente, não concordo com a reeleição."
Não descartou, porém, disputar em 2006: "Não estou dizendo isso [que não disputaria]. Sou um homem que cumpre a legislação".
"Em muitos momentos, [a reeleição] é perniciosa, nos municípios e Estados. É bom vocês irem lá ver o que acontece. Pego sempre o exemplo do Fernando Henrique Cardoso. Se não tivesse brigado pela reeleição, ele teria saído como um deus. Só tem sentido ser reeleito se você vislumbrar que, no segundo mandato, dá para fazer mais do que fez no primeiro. O povo fica mais exigente. Se você fez "a", o povo vai querer "a mais b". O presidente tem que saber se vai ter recursos."
"O segundo mandato é sempre muito ruim. A reeleição [do FHC] foi desastrosa. Mas quatro anos é pouco. Cinco anos, sem reeleição, seria muito melhor. A alternância no poder é positiva para o país, a alternância de pessoas. O povo pode reeleger o partido. Em nenhum momento, 2006 me preocupa. Lá por 2006 mesmo, final de 2005, vou pensar nisso."

MAIS REFORMAS
"Se depender do presidente da República, vamos ter as reformas sindical e trabalhista."

ELEIÇÕES MUNICIPAIS
"A eleição de 2004 é muito importante, mas o papel do presidente é mais de magistrado do que de tomar parte. No processo eleitoral, tem uma hora em que você entra no ringue, e eu não vou entrar no ringue. Prefiro ficar como torcedor privilegiado."
Quanto a São Paulo, em que já defendeu publicamente a reeleição da prefeita petista Marta Suplicy, o presidente respondeu: "Todos sabem que pertenço a um partido, apóio um candidato. É diferente de subir em palanque e arregaçar as mangas. Não é uma boa política para um presidente da República. São Paulo é muito importante e nós vamos ganhar. A Marta vai ganhar".

PMDB E GAROTINHO
Quando lhe perguntaram o que mudaria na relação do governo com o PMDB, com a entrada de Garotinho no partido, Lula foi monossilábico: "Nada".
Em seguida, deixou no ar advertência para o partido: "Nós vamos ver se o PMDB muda ou não muda na relação com o governo".
Significa que o PMDB pode perder os dois ministérios prometidos? "Não tem ministério prometido", respondeu.

REFORMA MINISTERIAL
"Vai chegar o momento certo. Todos os ministros sabem que os cargos são meus, sabem que posso manejá-los."

ÁREA SOCIAL
"As coisas vão acontecer. Dona Ruth [Cardoso, mulher de FHC] dizia uma frase [de] que nunca me esqueci: "Para fazer política social, é mais fácil você jogar dinheiro de um helicóptero porque é a forma mais fácil de chegar ao povo". A pressa é inimiga da perfeição. Com o maior critério do mundo, estamos juntando os ministros e aperfeiçoando a unificação dos programas sociais."
O presidente anunciou que haverá uma secretaria executiva comum sob a coordenação de um ministério.

REGRAS DE INVESTIMENTO
"Estamos passando pente-fino para identificar os [investimentos] prioritários. Estou selecionando o miolo da picanha. Muitas coisas não podem ser feitas diretamente. É o projeto que faz o dinheiro, e não o dinheiro que faz o projeto."
Listou várias opções de financiamento, desde o BNDES até concessões à iniciativa privada. "O marco regulatório vai sair neste ano. Pode escrever aí: "Quando setembro vier"."

PRIVATIZAÇÕES
"A garantia não é só para a iniciativa privada, é para o governo também. Se o BNDES tivesse tido garantia, não teria feito as privatizações do setor elétrico."

AGÊNCIAS REGULADORAS
Lula confirmou que autorizou o ministro Miro Teixeira (Comunicações) a lutar com a agência reguladora por um reajuste menor das tarifas de energia elétrica. Os jornalistas ponderaram, então, que, depois, os ministros Antonio Palocci Filho (Fazenda) e José Dirceu (Casa Civil) desautorizaram Miro para desfazer a percepção de quebra de contrato. Lula respondeu: "Não foi desautorizado. É problema superado".
E quando ele conclamou a população a entrar na Justiça contra as novas tarifas? "Justiça é um direito do usuário", defendeu.

SERVIDORES PÚBLICOS
"Os movimentos sociais existiam antes de mim e vão continuar existindo depois de mim. Greve é direito universal. Nunca vão me ouvir falar contra a greve, porque fiz todas as boas greves que poderiam ser feitas.
Mas, no caso de servidor, não é greve, é férias. Se na iniciativa privada fosse assim, a greve de 1980 [dos metalúrgicos do ABC paulista] estaria durando até hoje. Mas a gente perdia dia, férias, 13º, FGTS. Eu reunia 40, 50, 60 mil pessoas no estádio da Vila Euclides e dizia: "Greve é luta brava. Greve envolve direitos e deveres. Greve implica riscos". Noventa dias recebendo salário são férias. O governo está pagando para fazer greve, para parar." Foi uma reclamação da atual greve, contra a reforma da Previdência.
Segundo o presidente, o ministro Ricardo Berzoini (Previdência) pediu desconto dos dias parados, mas "o STF reconhece o direito de pagar os dias": "Vamos estabelecer regras, mas ou faz de forma abrupta uma lei que não pega ou faz uma lei que pega".

REFORMA AGRÁRIA
"Vamos tratar os movimentos sociais com a tolerância que a democracia exige", disse o presidente, quando indagado se o governo não estaria usando "tolerância tática" com seus antigos aliados dos movimentos sociais. A expressão é do ministro Márcio Thomaz Bastos (Justiça). "Houve transferência de miseráveis urbanos para serem miseráveis no campo. Hoje, 80% dos assentamentos precisam de cesta básica. Não tinha um projeto de reforma agrária, mas de acabar com tensões na beira da estrada. Vamos dar assistência técnica para fazer outro tipo de reforma agrária, mas sem nenhum sufoco para colocar gente no campo de forma desordenada". A respeito do aumento da invasões do MST e da acusação de leniência, Lula respondeu: "Não há leniência. O problema hoje não é do MST. Em Pernambuco, há 14 grupos [de organizações] ocupando terra. É um problema político de disputa de liderança".
Negou risco de caos social: "Não tem risco nenhum. No Brasil, nunca faltou quem quisesse fazer terrorismo por pouca coisa".

FHC E DIRCEU
"Não tem nada pior do que um presidente ficar criando uma imagem errada do Brasil, mas o último presidente que renovou a frota [de aviões para transporte de autoridades] foi o [Ernesto] Geisel. Nós vamos renovar a frota." Nesse momento, Lula foi lembrado de que o PT atacou FHC quando o tucano pensou em trocar os aviões que serviam à Presidência. Contrariado, elevando o tom de voz, disse que não era verdade. Os jornalistas insistiram e Lula fez uma revelação: "Em outubro, o Fernando Henrique me disse que, se eu quisesse, ele pediria a renovação da frota para que eu não tivesse problema de desgaste logo no início". Por que o sr. não aceitou? "Se tinha de fazer, a decisão tinha de ser minha."
O momento em que o presidente ficou mais contrariado foi quando indagado dos motivos que levaram o PT a não apoiar a reforma da Previdência de FHC para o funcionalismo: "Não aceito essa acusação. Ele tinha uma base de 400 deputados".
Apesar de só aprovar a reforma da Previdência em primeiro turno na Câmara com votos da oposição, Lula disse, em tom ríspido: "Quantas horas por dia gasto fazendo reuniões com políticos, líderes? Como político, não posso ficar sentado em cima da minha empáfia. Tem de convencer".
FHC não convenceu? "Não convenceu. O fato concreto é que, para ter uma boa relação com o Congresso, você tem de colocar o mestre, um mestre para fazer política, um animal político que vive política 24 horas por dia. Toma café, almoça, janta, tem dor de cabeça pensando em política. O Zé Dirceu [ministro] é o que chamo de animal político. E tem o [José] Genoino, que, embora não seja deputado federal, é o melhor deputado que tenho no Congresso."
"FHC nunca chamou a oposição para conversar." Lembraram que FHC o convidou para conversas. Respondeu que não fora para falar sobre política, mas não revelou sobre o que conversaram.

TUCANOS
Lula reclamou da imprensa. "O que eu imaginava que vocês iriam vender como vitória [aprovação da reforma da Previdência] vocês venderam como "O governo regateou". Colocamos um limite nas superaposentadorias, de R$ 17 mil. Daqui a 10 ou 15 anos serão sentidos de melhor forma os efeitos da reforma." A oposição, segundo ele, votou a favor devido à capacidade de articulação do governo. "Na reforma da Previdência, a reforma era do interesse deles. Se não votassem, iriam prejudicar o Aécio [Neves, governador de MG], o [Geraldo] Alckmin [governador de SP]."

GOVERNADORES E CPMF
"Os governadores são tão inteligentes que sabem que não dá para fazer a recuperação econômica dos Estados via reforma tributária. A recuperação será via crescimento econômico. Os governadores sabem o que a gente pode fazer sem ferir o núcleo da reforma. Sobre a CPMF, o Palocci disse que [a contribuição] já dá mais para os Estados do que os governadores estão pedindo. Mas há gente que continua querendo fazer guerra fiscal. O problema não é entre Estados e União. É entre os próprios Estados e entre municípios. Há uma salada de frutas de interesses. Nós vamos comer a fruta inteira." Diante da insistência para saber se o governo poderá ou não dividir a CPMF com os Estados, declarou: "No quadro de hoje, não tem mudança".

ALENCAR
Enquanto Lula fala no "espetáculo do crescimento", seu vice, José Alencar, diz que o ano está perdido. Lula amenizou: "Não reajo a isso. Tenho muito respeito pelo companheiro José Alencar. É de outro partido, tem outras idéias".
Em seguida, uma defesa da política econômica: "No início do ano, a previsão de todos era de que seria um desastre [na economia]. Aí, vamos dar mérito a uma figura, Antonio Palocci, que não se deixou levar pelo emocional economicista. Falava-se em inflação de 40% ao ano, mas ela não chegará aos 7% nos próximos 12 meses. Os juros começaram a cair. Em junho, começamos a liberar linhas de crédito".
Quanto à avaliação do ano: "Este é o ano em que nós consertamos o país, arrumamos a casa".


Pela lógica, o Brasil não precisa renovar o acordo com o FMI [Fundo Monetário Internacional]. O acordo com o FMI termina e o Brasil não é obrigado. Depende da vontade do governo e de que tipo de acordo. O governo não vai dizer "fora o FMI", mas não estamos sufocados com isso

Em muitos momentos, [a reeleição] é perniciosa, nos municípios e Estados. É bom vocês [jornalistas] irem lá ver o que acontece. Pego sempre o exemplo do Fernando Henrique Cardoso. Se não tivesse brigado pela reeleição, ele teria saído como um deus


LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA


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