São Paulo, segunda-feira, 21 de novembro de 2005

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ENTREVISTA DA 2ª

JAMES MEREDITH

Americano diz que os luso-brasileiros foram os mais bem-sucedidos em assegurar a supremacia branca

Portugueses deram aula de racismo aos EUA, diz ativista

FABIANO MAISONNAVE
DA REPORTAGEM LOCAL

Enquanto vários líderes negros dos anos 1960 se tornaram conhecidos ao promover grandes marchas e boicotes, James Meredith entrou para a história norte-americana por ter mobilizado uma operação de guerra com 5.500 militares norte-americanos. O motivo: assegurar que, no dia 1º de outubro de 1962, ele se tornasse o primeiro negro a pisar na Universidade do Mississippi como um aluno regular.
Não foi a única vez que esse veterano da Guerra da Coréia provocou polêmica. Em 1989, virou assessor do senador ultraconservador republicano Jesse Helms.


A primeira coisa que os brasileiros têm de entender é que a estrutura do poder branco tem grande interesse em expandir a cidadania, mas não sabe como


Durante o período em que trabalhou com Helms em Washington, Meredith diz ter descoberto que, por trás da estratégia de dissimular o racismo dos republicanos, estavam formuladores de políticas públicas lusófonos. "Descobri que eles eram os mais eficientes e capazes supremacistas brancos do mundo", afirma.
Em sua segunda visita ao Brasil, onde está a convite da ONG Portal Afro, de Atibaia (SP), e com o patrocínio do Consulado dos EUA em São Paulo, Meredith, 72, concedeu na última sexta-feira a seguinte entrevista à Folha:
 

Folha - O seu primeiro dia na Universidade do Mississippi é bastante conhecido, mas como foi nas semanas seguintes?
James Meredith -
É quase impossível para alguém entender. A luta não era sobre educação, não era sobre a Universidade do Mississippi, era contra a supremacia branca. Eu estava atacando a supremacia branca. Fui bem-sucedido ao colocar o governo dos Estados Unidos numa posição na qual eles tiveram de usar sua força militar para assegurar meus direitos. Eles nunca tinham havia usado o poder da América para assegurar os direitos, embora tenham aprovado todo tipo de lei. Na verdade, o dia em que pisei no campus, o objetivo maior tinha terminado. A supremacia branca, como uma existência oficial e legal, foi esmagada. Não havia mais nada a fazer depois disso. Você nem ouviu falar dos negros que vieram depois de mim. Isso não é importante. Mesmo a minha freqüência não foi importante. Foi apenas o meu direito de fazer o que os brancos do Mississippi tinham direito. É disso que se tratava.
Eu consegui que os militares lutassem na minha guerra. A América ocupou o Mississippi da mesma forma que ocupou o Japão depois da Segunda Guerra Mundial.

Folha - A história de Rosa Parks tem sido contada de forma romântica: uma costureira que se recusou a dar o lugar ao branco no ônibus porque estava muito cansada, embora ela tenha sido uma ativista com opiniões fortes. Acontece o mesmo com o sr.?
Meredith -
Eles tentaram fazer isso comigo, mas havia um conflito entre a elite liberal, que é a mesma coisa que o Partido Democrata, a burguesia negra e mim. Eles queriam me transformam neles. Mas estava preocupado em criar uma situação como os judeus os fizeram em Nova York, em que os negros tivessem voz na política. Mas os políticos na América sempre aprisionaram o nosso poder político, primeiro com os republicanos, depois com os democratas.

Folha - As imagens da população negra após a passagem do furacão Katrina chocaram o mundo. O sr. ficou surpreso também?
Meredith -
Não. Enquanto os EUA têm estado há muito tempo no processo de mudanças governamentais, as políticas da supremacia branca ainda são a realidade. Os negros têm uma grande porcentagem de pobres em comparação com qualquer grupo, e o furacão Katrina deixou isso claro. Embora no Mississippi e em Nova Orleans, há mais brancos pobres do que negros pobres em números absolutos, a supremacia branca tomou conta dos brancos. Os negros não tinham ninguém.

Folha - Qual é a imagem que mais se aproxima da realidade dos negros nos EUA: Condoleezza Rice ou as vítimas do Katrina?
Meredith -
As vítimas do Katrina. Condoleezza Rice é o resultado da estratégia dos republicanos do Sul para reconquistar o controle da Presidência e do Congresso dos EUA. Politicamente, Colin Powell, Rice e Clarence Thomas não mudam nada. Eles são boas pessoas, mas são apenas instrumentos, como todos os políticos negros do lado democrata. E todos eles sabem disso, mas querem que tudo fique do jeito que está.

Folha - Esta é a segunda vez que o senhor vem ao Brasil, um país que, como os EUA tem uma hierarquia racial. Quais as diferenças na forma como essa hierarquia opera?
Meredith -
Os portugueses - e o mesmo serve para o Brasil- foram os mais eficientes e conhecedores de todos os grupos europeus no sistema estabelecido da supremacia branca. E foram eficientes em fazer parecer que não se tratava disso. Eles venderam a idéia de uma democracia racial. Todo mundo sabia que era uma mentira, mas aí está a inteligência da hierarquia portuguesa.
Na América, mais da metade dos brancos era contra a forma de supremacia branca em 1860. Eles venceram a Guerra Civil, e o Congresso deu direitos cidadãos aos ex-escravos. Até hoje, o Brasil nunca deu direitos cidadãos aos seus ex-escravos. E isso foi feito de forma quase imperceptível.

Folha - O sr. quer dizer que o formalismo da legislação brasileira obstrui o debate?
Meredith -
Absolutamente. Ninguém no Ocidente fala sobre supremacia branca. Fala-se sobre raça, racismo. São termos emotivos. Enquanto as pessoas criarem suas crenças e suas políticas em cima de termos emotivos, nunca lidarão com a realidade. Os portugueses foram os que entenderam isso melhor.

Folha - Por que o sr. decidiu trabalhar com Helms?
Meredith -
Eu me associei a Jesse Helms, considerado o mais poderoso adversário da elite liberal americana, mas não parei por aí: apoiei David Duke [ex-membro da Kun Klux Klan e candidato a governador na Louisiana]. Eu queria criar uma situação na qual poderia falar de forma realista para que os negros entendessem.
Os republicanos usam uma técnica moderna: palavras-código. "Bussing" [programa que leva alunos negros a escola brancas], por exemplo, se tornou uma palavra-código. Quando eles falam que são contrários ao "bussing", significa que querem continuar com a supremacia branca.
E sabe quem deu essas estratégia aos republicanos? Os portugueses. Foi o que mais me surpreendeu quando fui a Washington com Jesse Helms. A única coisa que fazia era ir a todos os "think tanks", que formulam todas as políticas públicas. O que descobri é que todas as pessoas que faziam políticas públicas para os republicanos eram lusófonos! Luso-brasileiros, portugueses ou afro-portugueses. Havia Danish D'Souza [indiano, autor do livro "O Fim do Racismo"] e três ou quatro outros. Não entendi o que significava. Por que essas pessoas estavam formulando políticas para os negros da América? Quando estudei, descobri que eram os mais eficientes e capazes supremacistas brancos do mundo. Eram as pessoas adequadas para ensinar a América sobre como lidar com o negros.
Eu soube que, quando me associei aos dois, isso seria um assunto nos anos seguintes. Mas também sabia que, se eu vivesse o suficiente, teria a chance de levantar novas questões. É melhor ter uma klansman convertido do que ele continuar enforcando negros.

Folha - No Brasil, a Marcha do Zumbi deste ano se dividiu em duas, uma mais próxima e outra mais independente do governo Lula. Nos EUA, havia a divisão entre separatistas integracionistas. Como o sr. compara essas divisões?
Meredith -
É impossível comparar a questão racial nos dois países. Zumbi viveu no século 17, e as celebrações começaram 10, 15 anos atrás. A mudança no status dos descendentes de escravos está apenas começando no Brasil. E a primeira coisa que os brasileiros têm de entender é que a estrutura do poder branco no Brasil tem grande interesse em expandir a cidadania, mas não sabe como fazer. Todos creditam a Martin Luther King, James Meredith e Stokely Carmichael pela mudanças. Essa não é a verdade. As verdadeiras mudanças vieram dos poderosos e seus descendentes. Mississippi se tornou importante porque os brancos de Harvard, Yale, Columbia foram para lá e se colocaram na linha de frente para forçar o governo a mudar suas políticas. Foi isso que provocou as mudanças, e não os negros gritando.
Não estou dizendo que o que os negros e outros não-brancos fazem não é importante, porque é o que dá a desculpa às pessoas com poder real para mudar as coisas.
O que está acontecendo na França é quase idêntico. Na semana passada, o presidente francês admitiu que o verdadeiro problema é a discriminação contra negros e muçulmanos, mas acrescentou algo bem prático. Ele disse que, antes de fizermos algo contra a discriminação, temos de reprimir todos os distúrbios e então pensar sobre fazer algo sobre isso.
No Brasil, muitas corporações não têm um único negro. Nos EUA, isso não pode ocorrer, não por causa das corporações, mas por causa do governo federal, que exige um plano de ação afirmativa. Enquanto não houver isso no Brasil, nada será eficiente.

Folha - Nos EUA, muitos dizem que a ação afirmativa, após mais de 30 anos, não beneficia mais os negros pobres e precisa de mudanças. O sr concorda?
Meredith -
Não apenas concordo como esse era o plano desde o primeiro dia. A ação afirmativa é para a elite liberal branca e a burguesia negra. Eles não querem mudar nada, não ligam a mínima para as pessoas que você viu após o Katrina. A América tem de mudar porque precisa vencer a guerra contra o terror. E a única forma é envolver as pessoas hoje alienadas. Ninguém sabia que o 11 de Setembro ia acontecer. Isso é importante. Os romanos tinham pessoas em todos lugares que lhe diziam tudo que estava para acontecer.


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