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ENTREVISTA DA 2ª
Mário Lill, que está com o líder palestino desde o final de março, descreve sua rotina no QG
Sem-terra deixa hoje quartel de Arafat
PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO
O agricultor gaúcho Mário Lill,
36, representante do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra), que está no complexo
presidencial onde o líder palestino Iasser Arafat se encontra confinado, em Ramallah, acredita
que vai conseguir deixar hoje o local com mais cinco estrangeiros.
Ontem, mais 12 pacifistas entraram no complexo, incluindo dois
americanos, dois britânicos, um
dinamarquês e um norueguês. A
maioria pertence ao Grupo de Solidariedade ao Povo Palestino.
Houve muita confusão, segundo
Lill, que conta que tomou dois banhos desde o final de março,
quando entrou no local, e que,
por isso mesmo, é a primeira coisa que pretende fazer ao sair.
Folha - Entraram mais 12 estrangeiros no complexo hoje [ontem".
O que eles fazem e de onde vêm?
Mário Lill - São pacifistas. Dois
americanos, dois britânicos, um
dinamarquês, um norueguês e
outros estrangeiros. A maior parte é do Grupo de Solidariedade ao
Povo Palestino.
Folha - Houve confusão?
Lill - Sim, muita confusão. Eram
umas 40 pessoas. Estavam divididas em dois grupos: um entrou
pelo portão dos fundos, e outro,
pelo da frente. Chegaram ao mesmo tempo e surpreenderam o
Exército israelense. Até o Exército
se dar conta, um grupo conseguiu
entrar. O Exército disparou, houve muitos tiros, bombas de efeito
moral e disparos com as metralhadoras no chão, mas não chegou a atingir ninguém. Os mais
corajosos conseguiram passar.
Folha - Você tem alguma previsão
de quando vai sair?
Lill - Pretendemos sair amanhã
[hoje" da mesma forma que nós
entramos. Vamos levantar a mão,
tranquilos, e vamos embora. Eu
conversei com o embaixador brasileiro e ele disse que não pode fazer nada, que fará o máximo para
chegar perto, mas ele não tem força. É uma ladainha que cansa.
Ele acredita que, no máximo,
vai poder me ver no aeroporto.
Ter embaixador e não ter não faz
diferença.
Folha - Acha que vai ser detido?
Lill - Sim, acho que vão nos pegar e interrogar. Eu não tenho o
que falar para eles, não entendo
nem a língua deles. Se puserem
um tradutor, eu não tenho o que
falar. A única coisa é que estou
aqui em missão de paz. A única
saída para os dois lados é a paz.
Mas nós vamos ver se nós conseguimos driblá-los. Estou aqui a
convite do povo palestino, não fizemos crime algum.
Folha - Quantas pessoas devem
sair? E qual a nacionalidade delas?
Lill - Além de mim, há um basco
e quatro franceses.
Folha - Por que o grupo vai sair?
Lill - Para fortalecer o trabalho
pela causa palestina lá fora.
Folha - Arafat conversou com vocês hoje [ontem"?
Lill - Conversou com o grupo
que chegou. Agradeceu a presença e explicou a situação. Falou
muito da incomunicabilidade
com o seu povo. Faz praticamente
seis meses que ele está preso com
o seu povo, sem viajar [Arafat está
em Ramallah desde o início de dezembro". E ele era alguém que
viajava muito.
Folha - O complexo presidencial
pode ser atacado?
Lill - Após a vinda de Powell
[Colin Powell, secretário de Estado dos EUA", os EUA exigiram
que Israel não nos ataque. Mas
Arafat disse que não tem garantia
de que Sharon [Ariel Sharon, premiê de Israel" não vá fazer isso.
Folha - Houve alguma mudança
na rotina quando Powell conversou com Arafat em Ramallah?
Lill - Os israelenses fizeram uma
faxina na frente do quartel-general porque eles destruíram tudo,
os carros dos civis e outras coisas.
E eles jogaram terra por cima. O
complexo tem vários prédios, e
nós estamos em um só. No resto
estão os israelenses, que forçaram, com armas, um pessoal do
saneamento a ligar a água e a desentupir os esgotos apenas dos
prédios em que eles estão. Pela
força das armas, eles foram forçados a fazer isso.
Folha - Qual a situação atual? Há
água e luz?
Lill - Volta e meia eles cortam a
luz, mas de qualquer forma a gente tem de ficar no escuro por uma
questão de segurança. Os soldados estão sempre próximos. Tem
um buraquinho onde a gente dá
uma espiada, mas é uma situação
perigosa. E falta água.
Folha - Você está sem banho?
Lill - Depois de uma longa fila,
tomei dois banhos. E falta roupa.
Folha - Você está com a mesma
roupa de quando chegou?
Lill - Troquei a camisa e a cueca.
Os palestinos conseguiram uma
cueca.
Folha - Quantos banheiros vocês
têm à disposição?
Lill - Vários, mas só dois deles
têm água neste momento.
Folha - São quantas pessoas?
Lill - Centenas.
Folha - O que você vê daí?
Lill - Tanques, muitos. Os soldados estão dentro dos prédios, às
vezes a gente os vê. Tem horas em
que não vemos ninguém, só tanques. Os soldados ficam apontando para as janelas como se fossem
disparar. Nos primeiros dias, tínhamos boa comunicação. Agora
bloqueiam as ligações.
Folha - Onde você dorme?
Lill - Nós usamos um colchão de
solteiro, onde dormem três. Ou
usamos tapetes.
Folha - Consegue andar dentro
do prédio?
Lill - A gente circula, mas não
muito porque tem o pessoal de Israel, e a gente evita.
Folha - E a comida?
Lill - A alimentação básica é um
pão, com alguma pasta ou mistura. Às vezes tem pepino e tomate.
Hoje [ontem" tinha arroz e feijão.
Folha - Tem acesso à cozinha?
Lill - Não há cozinha. O Exército
de Israel a destruiu. O cozinheiro
morreu e ficou mais de uma semana lá, até Powell chegar. Tem
um fogãozinho no prédio com
quatro bocas para fazer comida
para centenas. A mistura é pouca.
Folha - O que faz no tempo livre?
Lill - Escrevo, caminho, mas não
dá para fazer muito exercício físico porque senão a gente sua e ninguém aguenta ficar perto. Não tenho muito contato com os palestinos devido à língua. Converso
com o pessoal que fala espanhol.
Folha - O que você vai guardar da
experiência?
Lill - Muitas coisas, mas tem de
ter paciência. Nós, do MST, temos
muita experiência de convívio coletivo, mas é um estilo pobre. O
maior problema é a comunicação.
Os árabes têm um convívio muito
fraterno. Os soldados levam um
fuzil em uma mão e dão a outra a
um amigo, como se eles fossem
namorados. Ou carregam um terço. O que me impressiona é o jeito
simples. Às vezes, à noite, a gente
dorme sem manta, passa um soldado e nos cobre, como minha
mãe fazia.
Folha - Qual sua impressão de
Arafat?
Lill - Ele parece nunca perder o
otimismo. Para mim, é uma surpresa. Tudo parecia andar ao contrário, mas ele permanece otimista. Mas, logo depois da reunião
com o Powell, me pareceu nervoso. À noite já estava melhor.
Folha - Como vocês acompanham
as notícias?
Lill - Temos a CNN, a televisão
francesa, uma suíça e a Al Jazeera,
que é difícil de entender, mas é
mais pelas imagens. Sempre tem
alguém para traduzir. Acompanhamos o que se passa em Jenin e
Belém diariamente. Todo dia tem
gente que perde um irmão, um
amigo, um parente. Isso já é diário. Temos contato direto com Jenin, inclusive com pessoas que estavam aqui nos primeiros dias.
Foi um massacre [o governo israelense nega". Estou seguro disso. O pessoal relatou situações em
que o Exército israelense, não satisfeito em matar, colocou os corpos para os tanques passarem por
cima, esmagando. Isso é um extremismo. Há um piloto de helicóptero que se negou a bombardear um apartamento que teria
cinco pessoas dentro. Ele se negou, recebeu ordem duas vezes, e
esse piloto está desaparecido.
Folha - O que resolveria esse impasse atual, na sua opinião?
Lill - Tem de vir uma força internacional de proteção. A questão
fundamental é o território. O povo palestino se defende com as armas que têm. Por isso que enfrentam um tanque com um fuzil. Eles
utilizam as mais variadas formas
que conhecemos, homens-bomba, os atentados.
Folha - O que você acha dos atentados suicidas?
Lill - Eles nos dizem que não têm
armas para enfrentar o Exército
israelense. "Estamos nos defendendo da invasão, essa é a única
arma. Colocar pessoas enfrentando tanques é tão suicida quanto o
homem-bomba. Não nos agrada
muito fazer, mas...", dizem. Essa é
uma análise fria. Não é a minha
opinião. Acredito, e por isso estou
aqui, que tem de ser pela paz, pela
negociação. Estamos aqui para
evitar que haja um ataque maior.
A minha presença se deve a isto.
Para evitar a morte.
Folha - Há extremistas religiosos
aí dentro?
Lill - Não. Tem o Fatah, que é o
grupo de Arafat. Eles também fazem luta armada, mas não são esses extremistas muçulmanos que
pregam na Palestina um Estado
religioso, islâmico. Arafat defende
um Estado palestino, mas laico. O
Prêmio Nobel da Paz que ele recebeu é mais do que justo.
Folha - O que você pretende fazer
quando sair?
Lill - A primeira coisa é tomar
um bom banho e trocar de roupa.
Quero ver minha família, meu filho, que está chamando pelo pai,
minha esposa, meu povo, meus
companheiros sem-terra e descansar tranquilo. Preciso de uns
dias para respirar ar puro, poder
colocar as idéias em ordem para
fazer uma melhor análise de todo
o processo aqui.
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