São Paulo, segunda-feira, 22 de maio de 2006

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Chacinas podem levar à aparição de novos PCCs

LUCIANA CONSTANTINO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Para o titular da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, é preciso que o governo Cláudio Lembo (PFL) em São Paulo freie as mortes, sob risco de "volta de tempos de guerra de quadrilha, de máfia". Leia abaixo trechos da entrevista.
 

FOLHA - Com as mortes registradas em São Paulo, o sr. avalia estar havendo uma revanche da polícia ou uma resposta ao crime organizado?
PAULO DE TARSO VANNUCHI -
A melhor atitude da autoridade pública em casos como esse é a transparência. Ocultar só envolve de mais credibilidade as denúncias que aparecem [de mortes de possíveis inocentes]. O pessoal da área de direitos humanos sabia que um ataque tão violento iria gerar um impulso de revanche. O ser humano tem a tradição condenável da vingança. A autoridade tem de exercer um controle para que isso não aconteça. É preciso corrigir essa falsa noção de que direitos humanos é defesa de bandido. Não é.

FOLHA - Há uma revanche?
VANNUCHI -
Quando o crime organizado ataca pessoas inocentes e como ainda não temos no país uma consciência desenvolvida de cidadania, conhecimento e respeito às leis e aos princípios universais dos direitos humanos, sabemos que sempre existe [impulso de revanche]. Era importante que a autoridade policial saísse à frente, mostrando que o melhor caminho para destruir o PCC é nos mantermos nos marcos estritos no respeito à lei. Novas chacinas poderão gerar novos PCCs. Se houver a noção de que não há um Estado democrático, os bandidos atacam, as polícias contra-atacam, vamos para uma espiral de violência em que o patamar será pior. Se há denúncias sobre violação de direitos humanos -e a imprensa tem apresentado depoimento de familiares mostrando que há vítimas que nada tinham a ver com o crime organizado- é fundamental que a autoridade pública aja para mostrar que não autoriza nenhum ajuste de contas. Há um caldo emocional que permite isso e uma autoridade policial, um secretário consciente, precisa compreender isso, no lugar de se sentir responsável pelo caos que existiu no país e querer autorizar a liberação de rédeas para contra-ataques que recuperem a honra de corporações agredidas. Se não, voltaremos aos tempos de quadrilha, máfia, quando o Estado democrático de Direito é a organização de um sistema racional de ação -o bandido ataca, o Estado reage com serenidade e firmeza. Tem de ir lá, prender, desbaratar, eliminar. Não precisa e não pode ser feito com contra-ataques desordenados, à noite, em que os corpos são apresentados às dezenas na categoria inaceitável de suspeitos.

FOLHA - Há exagero?
VANNUCHI -
Acho que existem denúncias de que há. É cedo para dizer que haja. Se a autoridade estadual não permite nenhuma discussão sobre o assunto, se for verdade que os laudos dos mortos estão sendo recolhidos, isso constitui indício forte de que haja irregularidades. É cedo para uma conclusão. O presidente Lula já disse que, em um episódio dessa importância, não podemos ter atitude de disputa, pois aí Estado e União começarão a trocar acusações, e o cidadão ficará desamparado. É preciso recuperar um ambiente de diálogo.

FOLHA - A Associação de Cabos e Soldados da PM quer apuração sobre a responsabilidade do Estado. Como fica a situação das famílias dos policiais mortos?
VANNUCHI -
Eu me surpreendi com a alegação pública do governador Cláudio Lembo de que o Estado já sabia do que acontecia. Achei um pouco grave pois imaginei que repercutiria nas corporações policiais. Se as associações estão articulando isso, a iniciativa ajudará para que as instituições públicas respondam com precisão o que a lei determina. Direitos humanos neste momento são, em primeiro lugar, a defesa dos policiais, de suas famílias. Num momento seguinte, quando aparecem as alegações de que morreram pessoas apresentadas como suspeitos, com testemunhos de que elas não estão vinculadas ao crime organizado, é igualmente importante trabalhar como preocupação dos direitos humanos.

FOLHA - A onda de violência mostrou que o Estado não protegeu policial nem preso, já que houve mortes em rebeliões. É falência do Estado?
VANNUCHI -
Falência seria um termo exagerado. Há um sistema prisional em São Paulo que esteve próximo a um colapso e isso corresponde a um cenário amplo em todo o Brasil. O país precisa aproveitar o episódio de São Paulo para impulsionar uma discussão de profunda reforma do sistema prisional, debatendo também as penas e a superpopulação.

FOLHA - De quem é a culpa?
VANNUCHI -
Nesses casos, não se consegue dizer a culpa é do fulano. Seria mais fácil. O sistema prisional e a segurança pública, na repartição de funções que a Constituição estabelece, são de responsabilidade estadual. Acusar o governo federal de ser responsável por problemas de prisões estaduais [é algo que] não tem alicerce na Constituição. Porém, a União tem instituições que procuram estabelecer convênios com os Estados seguindo um Plano Nacional de Segurança Pública. No início do governo Lula foi implantado o projeto de segurança pública que procura trabalhar com a integração das polícias, e isso está prestes a ser concluído. O país começa a entrar em um novo patamar e, a partir daí, será possível avançar sobre o crime. Nesse sentido, a idéia de culpa é de todos nós.

FOLHA - Mas há medidas a curto prazo a serem adotadas?
VANNUCHI -
Tragédias como essa, depois de toda a dor, sempre permitem aos países aprender e reagir. Estou seguro de que em pouco tempo isso será resolvido pelo governo estadual, em diálogo com o federal. A questão de São Paulo é um problema nacional. Não basta governos federal e estadual chamarem para si a responsabilidade. Só terão êxito se reconhecerem os próprios limites e chamarem a sociedade civil.

FOLHA - Nessa linha, há a declaração do governador Lembo à Folha de que a violência será resolvida quando a "minoria branca" mudar a mentalidade. O sr. concorda?
VANNUCHI -
Fiquei surpreso com a entrevista por não esperar ouvir dele a frase que ouço há tanto tempo do movimento social, de que aqui há sim elitismo, que tem suas raízes no nosso passado colonial escravista. Existe no Brasil toda a simbologia que há no episódio Daslu. Primeiro, aquele monumento faraônico de exaltação de um luxo que funciona como uma espécie de insulto aos miseráveis que vivem do lado e a presença do ex-governador [Geraldo Alckmin] em festas da Daslu. Em seguida, o envolvimento da Daslu em práticas que estão ainda em investigação, mas com fortes indícios de graves sonegações fiscais. Isso é o retrato de uma certa elite brasileira. Não que toda a elite seja assim. Existe uma parcela comprometida com a lei, mas a outra mentalidade é muito forte. A declaração do governador possibilita a discussão, dentro da elite, de qual a disposição dela em aderir plenamente à convivência em República, em aceitar a igualdade de todos perante a lei.

FOLHA - O sr. concorda com a afirmação do governador de que o Brasil está desintegrado e perdeu valores cívicos?
VANNUCHI -
Isso supõe que, em algum momento, ele esteve integrado e respeitou os valores cívicos. Mas quando isso? No regime militar havia unidade e ordem? Havia falsa unidade, falsa ordem, havia um sistema repressivo que escondia a corrupção e a violação aos direitos humanos. Não acho que o país está desintegrado e perdeu valores cívicos. É um processo histórico. A evolução geral é no sentido de avanço. Discordo do governador, acho que não houve esse passado de ouro -é um pensamento conservador.

FOLHA - O presidente Lula tem dito que a violência está ligada à falta de investimento em educação nos últimos 30, 40 anos.
VANNUCHI -
Acerta na mosca.

FOLHA - Mas há críticos dizendo ser uma visão simplista do problema.
VANNUCHI -
Toda frase curta tende a simplificar de alguma maneira. Toda aula que um professor dá precisa de uma diminuída na complexidade para que os alunos entendam. Mas, deixando isso de lado, a questão é central. Segurança pública é intrinsecamente relacionada ao investimento social e educacional. O erro da esquerda até dez anos atrás era discutir segurança pública apenas sob esse ângulo. Nos últimos anos, a construção se dá na idéia de que a segurança pública tem de ter um diagnóstico apontando a falta de oportunidade de escola, trabalho, distribuição de renda e integração familiar. A polícia tem de ser equipada, com bom orçamento e prevalência da inteligência sobre a ação repressiva. Uma polícia, para destruir o PCC, teria de ser capaz de ouvir essas conversas pelo celular e preparar uma operação com inteligência.

FOLHA - O sr. defende a escuta das conversas de presos?
VANNUCHI -
Claro. A polícia capaz de derrotar o PCC será aquela que, ouvindo essas escutas telefônicas autorizadas pela Justiça, consiga montar ações. O crime organizado é que faz operações de inteligência hoje -como foi a corrupção do funcionário terceirizado da Câmara para passar, por R$ 200, a informação que constitui inteligência de primeiro nível para os criminosos-, quando o Estado tem muito mais recursos para surpreender o crime organizado com ações desse tipo.
O que aconteceu mostra que o PCC chegou a patamar equivalente ao dos cartéis de Cali, Medellín, e que o narcotráfico deve ser enquadrado, incluindo, talvez, uma discussão sobre as drogas. A política de repressão e proibição pura e simples das drogas está falida. É preciso repensar isso de modo a tratar o problema do consumo de drogas como de saúde pública.


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