UOL

São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Entrevistas apresentam as duas contas sistema previdenciário: a do governo, deficitária, e a dos servidores, sem desequilíbrio

Não há déficit no sistema da Previdência, diz economista

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Para a economista Laura Tavares Soares, o governo apresenta a conta errada para tentar justificar a reforma previdenciária.
Os números conferem, mas ela fala que é um erro isolar o déficit da Previdência, quando essa deveria ser considerada dentro da seguridade social -sistema concebido pela Constituição de 1988, que reúne as contas da Saúde, da Assistência Social e Previdência.
Tomada em seu conjunto, a seguridade é superavitária e estável. Em vez de cortar custos, a reforma deveria, diz Laura, incorporar mais beneficiados. Tal como está, a proposta do governo redundaria no empobrecimento da classe média e no enfraquecimento do Estado, diz a economista.
 

Folha - A sra. defende, contra o argumento do governo de déficit na Previdência, que a seguridade social é superavitária. O que isso quer dizer?
Laura Tavares Soares -
O conceito de déficit está errado. Você pode ter desequilíbrio no regime público, mas o déficit não existe. A partir da Constituição de 88, nós fomos precursores no sentido de bolar um sistema que tivesse um financiamento que fosse além da folha de salários. No mundo inteiro, a Previdência financiada por folha de salário entrou em crise porque o mundo do trabalho entrou em crise. Em 88, ficou claríssimo que essa fonte não era suficiente. Ampliou-se a seguridade social tem que ser financiada por toda a sociedade e por uma multiplicidade de contribuições sociais. Todos os cálculos feitos de déficit são baseados naquilo que os trabalhadores contribuem versus o gasto com aposentadorias. Esse cálculo vai dar desequilíbrio, não porque aumentou o gasto, mas porque diminuiu a receita. No setor privado, porque aumentou o desemprego e a informalidade. No público, porque não se contrata há pelo menos dez anos.

Folha - Mas considerada só contribuição contra gasto previdenciário há déficit.
Laura -
Você não pode chamar isso de déficit. O sistema é financiado por um conjunto de contribuições. Quando pego o sistema da seguridade social, em 2002, toda a receita deu R$ 193,6 bilhões. Se você pegar todos os gastos dos ministérios -e estou incluindo, num conceito amplo, Trabalho, Saúde, Previdência e Assistência Social-, incluindo ativos e inativos, a despesa deu R$ 142 bilhões. Um superávit de R$ 51,6 bilhões.
Com a Desvinculação da Receita da União [DRU], que retira linearmente 20% dos ministérios, ano passado foram desvinculados em torno de R$ 36 bilhões. Mesmo assim, sobram R$ 15 bilhões. O sistema de seguridade social é superavitário. A culpa [do desequilíbrio] não é que a população envelheceu, a culpa é que não temos como incorporar os ativos.

Folha - O dinheiro da desvinculação da receita é retirado para fazer superávit primário?
Laura -
Exatamente.

Folha - Mesmo assim sobra?
Laura -
Sobra. É um sucesso a seguridade social brasileira. Não só porque inclui os que não contribuem e que estão fora do mercado, como também porque é um sucesso do ponto de vista do financiamento. Ela é estável.

Folha - Se é um sucesso, era possível incluir mais gente?
Laura -
Perfeitamente. Faço questão que essa parte entre. Como? Se tirar tudo, ainda sobram R$ 15 bilhões. No projeto original do Fome Zero, de que participei na época que era do Instituto Cidadania, propusemos ampliar para os trabalhadores informais urbanos o que existe para os rurais -que recebessem uma aposentadoria independentemente de sua capacidade contributiva. Tem dinheiro para isso.

Folha - O que mais a sra. acha que há de problemático na reforma?
Laura -
Primeiro, a Previdência complementar. É uma tendência mundial. O mundo está fazendo pressão para ter fundo de pensão.

Folha - E a regra de transição?
Laura -
Outro problema. Mas queria deixar claro que a reforma do Fernando Henrique Cardoso, de 98, foi de uma brutal perversidade contra os trabalhadores do setor privado. Faço questão que isso apareça. Porque ele está posando de bonzinho, dizendo que ele não fez tanta maldade quanto o Lula... Fez! Obrigou os trabalhadores do setor privado a trabalharem mais tempo para receber o mesmo benefício. O que gostaria de lamentar é que essa reforma poderia corrigir isso. Você não pode só pensar no servidor.

Folha - Que a aposentadoria fosse por tempo de contribuição?
Laura -
Isso, sobretudo para os baixos salários. Não dá para ter uma regra linear nesse país para tudo. É preciso uma regra para os baixos salários e até uma regra regional. A reforma atual deixou isso como está e introduziu um cálculo do benefício para o servidor perverso. Exemplo concreto: uma auxiliar de enfermagem que trabalha e que já contribuiu por 30 anos. Vai ter que esperar até os 55 anos e ter a aposentadoria calculada pela média [de todos os salários]. Vai ter uma perda estimada de 30% a 40% da aposentadoria . Pequeno detalhe: essas pessoas não ganham nem R$ 1.000. Disse isso ao relator: se vocês acham que estão fazendo justiça social...

Folha - Esses são os principais problemas?
Laura -
São. A crise da Previdência foi causada pela crise econômica, e não o contrário. Qual é a tese? Se eu não reformar a Previdência, não resolvo o problema econômico do país. É o contrário. Essa reforma não vai resolver o problema fiscal e não vai fazer justiça. E pode botar aí: a professora Laura é contra os privilégios. Como é que eu moralizo o serviço público? Teto salarial. Nenhum servidor pode ganhar mais que o presidente da República.

Folha - Quais são as consequências sociais dessa reforma?
Laura -
Consequências sérias. Vai empobrecer a classe média baixa. E isso é algo que aconteceu em toda a América Latina: perda de renda familiar e desmonte do Estado. As carreiras exclusivas do Estado (Legislativo e Judiciário) vão se preservar, e aqueles que estão ralando, trabalhadores da saúde e educação, vão para o brejo. Somos a minoria -toda hora o [ministro Ricardo] Berzoini diz isso-, mas somos os que atendemos a população pobre.



Texto Anterior: STF sinaliza que não vai derrubar cobrança sobre servidores inativos
Próximo Texto: Superávit
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.