São Paulo, segunda-feira, 22 de julho de 2002

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ENTREVISTA DA 2ª

"Temos de ter o direito da dúvida", afirma presidente do PT

Após turnê nos EUA, Dirceu fala em "trégua" com o FMI

SÉRGIO DÁVILA
DE NOVA YORK

O presidente nacional do PT, deputado federal José Dirceu, 56, passou a última semana entre Wall Street e a Casa Branca tentando convencer investidores, banqueiros e membros do governo Bush que seu partido e o mercado não são inimigos e inclusive dividem alguns interesses.
Em encontros com representantes dos maiores bancos dos EUA e assessores do governo George W. Bush, Dirceu fez questão de dizer que o PT mudou, que os compromissos serão honrados e que Luiz Inácio Lula da Silva governará com os empresários.
Anteontem, cumprida a agenda, o petista recebeu a Folha para uma entrevista exclusiva pouco antes de voltar para o Brasil. Então, o discurso mudou um pouco e ficou mais contundente. "Precisamos de um tempo, de uma trégua. Temos de ter no mínimo o direito da dúvida", afirmou, a respeito da dívida externa.
Leia a seguir os principais trechos da conversa:
 

Folha - O sr. falou muito em honrar compromissos com seus interlocutores. Mas, afinal, o que o Lula pretende fazer com a dívida externa quando assumir?
José Dirceu -
O problema do Brasil não é a dívida externa em si. Quer dizer, é na medida em que ela cobra 20% de juros e a usam para especular e atacar o real. Mas isso é porque o Brasil não tem superávit comercial, tem um déficit na balança de serviços, não está crescendo, gasta 8%, 9% de seu PIB para pagar a dívida interna.
Nós temos US$ 130 bilhões de dívida privada. Não estamos conseguindo renovar esses créditos de 75%, 100%, como seria o ideal, e estamos tendo de colocar recursos próprios, comprar dólar com real, usando as reservas. Exportar, crescer tem de ser o caminho.
Mas precisamos de um tempo, de uma trégua. Temos de ter no mínimo o direito da dúvida. O Brasil não pode ser agora inviabilizado com um corte nas linhas de crédito. Os investimentos não podem ser cortados, porque há grandes interesses externos no Brasil, até pelas privatizações.
O que eu disse a eles foi isso. O problema não é o que nós vamos fazer com a dívida. Ninguém quer suspender o pagamento, porque, se você toma uma decisão como essa, as consequências imediatas para o país são piores.
Existe o caminho do crescimento, que não é só aumentar superávit e ir ao FMI (Fundo Monetário Internacional).

Folha - Mas como funcionaria esta trégua?
Dirceu -
Dar tempo ao Brasil é interesse do próprio governo norte-americano, da própria sociedade norte-americana, dos próprios credores e investidores. Porque, se eles não derem tempo ao Brasil e o país quebrar, as consequências serão trágicas para nós mas serão também uma crise sem volta para a situação das finanças internacionais.
Porque o Brasil não é um pequeno país, nossa dívida não é pequena e os interesses e os investimentos que existem no Brasil não são pequenos. É um erro de percepção achar que não tem importância nenhuma o Brasil entrar num default (moratória) ou o Brasil entrar numa crise.

Folha - Mas o que é exatamente essa trégua?
Dirceu -
Não atacar o Brasil, não cortar os créditos do Brasil, deixar o Brasil escolher o novo presidente. Porque eu tenho certeza de que o Brasil, crescendo, honrará seus compromissos e haverá novas oportunidades de investimento no país. Não a partir de juro alto e de privatização, mas a partir do crescimento da economia e da modernização da infra-estrutura e do mercado interno. Isso que eu disse a eles.

Folha - Sim, mas isso é a trégua do lado deles. E a do PT?
Dirceu -
Escute, se eles querem receber pelos investimentos que fizeram no Brasil, o que é legítimo, e receber os juros da dívida, o país precisa mudar de política econômica e crescer. É o contrário do que eles pensam. Eles querem mais do mesmo. E eu disse a eles que nós precisamos de uma outra política econômica.
Isso não significa não honrar contratos, não manter a inflação sob controle, não manter o superávit primário neste momento, mas significa que há dentro do país políticas a serem adotadas que permitem a retomada do crescimento. Para isso é preciso mudar a política econômica, a equipe econômica e o governo.

Folha - Mas então os pagamentos não serão congelados?
Dirceu -
Hoje, o que está acontecendo é que muitas linhas de crédito não são renovadas para o Brasil e que as reservas do país podem ir diminuindo. Por isso é que muitos interlocutores acham que o governo FHC não terá condições de sustentar isso.

Folha - Se Lula for eleito e não reestruturar a dívida externa, como afirmou, mesmo assim só a eleição dele pode fazer com que o mercado pare de injetar dinheiro no Brasil e a falta de recursos estrangeiros poderia então levá-lo a ter de reestruturar a dívida. Como o PT pretende resolver este paradoxo?
Dirceu -
É o contrário. Qualquer um que for eleito derruba imediatamente o risco-Brasil, porque vão ficar claras as políticas econômicas. Se não mudar a política econômica atual, aí sim que o risco cresce cada vez mais. E eles sabem disso, não falam publicamente mas sabem disso.

Folha - O mercado perdeu então o medo de Lula?
Dirceu -
Precisa ver se aumentou o medo que nós temos do mercado... (Risos). É um gravíssimo erro do governo e da sociedade norte-americanos, seja investidor, credor, uma empresa que tem investimentos no Brasil ou um acadêmico tomar o país por este momento e não ver o potencial e nossos interesses comuns.

Folha - Como foram as conversas, de maneira geral?
Dirceu -
Não tive dúvidas de falar com franqueza, ainda que de forma respeitosa, que nós: 1. Não vamos manter o Armínio Fraga na presidência do Banco Central; 2. Não queremos ir ao FMI; e 3. Que essa história de BC independente não necessariamente é a solução para o Brasil.

Folha - Por que não?
Dirceu -
Se eu ponho o banco independente com mandato de quatro anos, dá uma crise internacional, o presidente do BC não muda a política, afunda o país e o governo não tem autoridade sobre ele. O Brasil não é os EUA, não é a Alemanha, não é a França.

Folha - Qual a reação deles?
Dirceu -
Não senti nenhuma surpresa, não ficaram estupefatos nem acharam absurdo. Eles realmente estão ouvindo. Procurei transmitir que nós temos política, segurança no que propomos, que a única saída é crescer.

Folha - Se suas conversas com os investidores foram tão boas, por que as agências classificadoras internacionais continuam jogando o risco do Brasil para cima e atribuindo isso ao crescimento de Lula nas pesquisas?
Dirceu -
Porque eles perderam muito dinheiro na crise da Argentina e querem ganhar no Brasil. Tem muita gente especulando contra o real. O tal "fator Lula" é um dos últimos elementos no aumento deste risco-Brasil. Claro, as eleições aumentam o risco, mas não a esse ponto.

Folha - O PT não iria ao Fundo em hipótese nenhuma?
Dirceu -
Nós faremos tudo o que for possível para não ir. A questão tem opiniões cada vez mais contraditórias. Muitos acham que a experiência da Argentina mostra que ir ao FMI não quer dizer nada. Outros acham que é preciso reestruturar a dívida. Imagine se estivesse na boca de algum candidato brasileiro. (Risos)
Mas alguns falam isso sem vacilar, que não há alternativa para o Brasil a não ser reestruturar a dívida. São vozes isoladas, mas responsáveis e de quem tem muitos interesses e recursos no Brasil. Não foi nenhum acadêmico dizendo isso teoricamente, não.

Folha - E quanto a assinar um acordo entre o FMI e os principais candidatos à presidência?
Dirceu -
Vem cá, essa Anne Krueger [vice-diretora-gerente do FMI" é candidata a presidente da República? O adequado para o Brasil neste momento não é os candidatos assinarem nenhuma carta com o FMI, porque isso inclusive significa... (pausa) Quer dizer, vamos deixar o povo brasileiro escolher o presidente, escolher a próxima política econômica, nós não podemos aceitar isso.
Isso não significa que você não está atento para esta transição, que nós estamos correndo contra o tempo, e que você não tenha de adotar medidas no país para impedir que o país deixe de honrar seus compromissos ou para impedir que os credores cortem as linhas de crédito no Brasil.

Folha - Que medidas?
Dirceu -
Nós fizemos nossa parte. Já votamos a CPMF, o Lula fez a carta-compromisso, eu vim aqui aos Estados Unidos para reiterar, para explicar qual vai ser a nossa política. Não vi nenhum interlocutor comentar: "Mas essa política de vocês é completamente irresponsável, isso aí não vai dar certo." Isso porque eles não têm mais segurança de que o que eles aconselhavam vai dar certo também.

Folha - O sr. falou brincando, mas é uma preocupação presente: passou o medo que o Lula tem do mercado? Se for eleito, ele pretende vir aos EUA?
Dirceu -
Quando o presidente for eleito no Brasil, qualquer um, vai ter de visitar a Argentina primeiro, porque é o país mais importante para nós, estratégico e atualmente em crise. Segundo, precisa visitar os EUA, é evidente. Terceiro, precisa também ir à África do Sul, à China e à Índia, porque são novos mercados, mostram novas sinalizações. E visitar a Europa, no mínimo dialogar com a União Européia.

Folha - Uma economista do banco Bear, Sterns disse na última sexta-feira que nem se o Lula colocasse Alain Greespan como presidente do BC brasileiro ela conseguiria vender o país de novo aos mercados. O sr. concorda?
Dirceu -
Pior para eles. Eles estão errados em relação ao Brasil e é lamentável que ela tenha essa opinião, eu repilo esse tipo de pensamento. Se for verdade o que ela fala do Brasil, então significa que vai haver uma crise internacional sem precedentes.
O Brasil é viável, os investidores e credores devem apostar no país, e o governo norte-americano tem interesse de que o Brasil se viabilize. Eu até entendo que quem perdeu muito dinheiro na Argentina agora queira ganhar no Brasil, mas eu não posso aceitar isso, eu estou aqui para defender os nosso interesses.


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