São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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Ex-preso passeia em memórias na Deops

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Ex-presos políticos Márcia Mendes de Almeida e Francisco de Oliveira Prado, em cela do prédio projetado por Ramos de Azevedo


Transformado em museu, o antigo prédio da repressão política reencontra sua história nas lembranças de quem passou por lá

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

"Tinha uma passagem para o porão aqui. Fecharam tudo." Falando alto e gesticulando muito, o professor Francisco de Oliveira Prado, 64, começou a esmurrar a parede do antigo prédio no centro da cidade. Tum-tum-tum-pof. O ruído fofo, e Prado abriu o sorriso perfeito (de dentadura): "Tá vendo? Era aqui a entrada do porão onde eles despejavam os corpos de quem morria sob tortura."
Reformado, o edifício projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo em 1914, hoje um museu, parece cenário de minissérie de época. As celas preservadas no andar térreo têm portas de madeira nobre polida. O pátio dos presos, bem pintado, é até aprazível, a grade no teto filtrando o sol forte da última quarta-feira.
Em 1970, não era assim. No prédio reinava o delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais eficientes caçadores de inimigos do regime militar, apontado como chefe e responsável direto por torturas e assassinatos.
"Daqui, a melhor recordação que eu tenho é a do dia do esgoto", diz a jornalista Márcia Mendes de Almeida, 60, ex-detenta na sede da antiga Delegacia Especializada de Ordem Política e Social de São Paulo, a Deops.
"A gente só ouvia a gritaria dos policiais e das pessoas que chegavam assustadas, além dos gemidos dos que voltavam das sessões de tortura. Um dia, estourou o cano de esgoto e os agentes tiveram de colocar todo mundo no pátio. Foi uma confraternização no meio daquela atmosfera nauseante. Nesse dia, pelo menos, a gente ficou sabendo quem estava nas outras celas", lembra.
O professor e a jornalista foram, a convite da Folha, passear pelo que foi um dos mais temidos locais da repressão em São Paulo. Outro foi o Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações e Defesa Interna, o DOI-Codi, no Paraíso.
Depois da cena dos murros na parede, os dois antigos militantes, ele do Partido Comunista Brasileiro; ela, trotsquista, passaram a ser seguidos de perto por três moças da segurança do museu.
O professor fez questão de mostrar, inclusive a elas, a certidão recebida no ano passado. Em papel de alta gramatura, marca d'água com o brasão da República, parece um diploma. "Sou pós-graduado em repressão", e mostra o documento onde se lê:
"Em 17 de agosto de 1970, foi detido quando tecia críticas ao regime político instituído à época, sendo encaminhado ao DOI-Codi, onde prestou declarações, sendo depois encaminhado à Deops. Em 23 de agosto, foi detido durante manifestação estudantil em São Paulo e encaminhado à Deops." Assina: Agência Brasileira de Inteligência.
Prado recebeu o documento 33 anos depois dos fatos narrados. Considera-o uma vitória porque, enfim, reconhece-se a história que ele repisa desde então.
Outro reconhecimento Prado obteve, em março deste ano, quando a Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania admitiu que ele foi torturado em dependências oficiais, concedendo-lhe o direito a uma reparação do valor de R$ 39 mil (ainda não pagos).
"De tanto que me torturaram, acharam que eu estava morto. Jogaram-me na antiga estrada de Santa Inês, em um eucaliptal. Eu tinha as costelas quebradas, a vista direita furada, quebraram meus dentes (por isso a dentadura) e o nariz. Passei meses em cadeira de rodas", lembra.
A jornalista foi presa em maio de 1970. Havia três meses, tinha dado à luz uma menina, Joana. "Fiquei um mês e meio aqui. Então, fui para o presídio Tiradentes: mais seis meses."
Uma semana depois de presa na Deops, a jornalista foi chamada ao quarto andar do prédio. Um delegado de polícia indagou: Você tem uma filha? "Entrei em pânico", lembra. Entre os presos corriam histórias de chantagens com ameaças a familiares. "Não se assuste", disse o delegado. "Você vai ver a sua filha."
"Fui para um salão suntuoso e, de fato, encontrei a minha Joana. O cara se comoveu com ela, tão pequenininha, que tinha sido levada lá por um parente meu", diz. "Era inacreditável. Existia um ser humano no meio de toda aquela coisa horrorosa", lembra. No mesmo quarto andar, hoje, acontecem aulas de arte para professores do ensino médio. "Sssh", uma segurança pede silêncio à narradora. Os dois ex-presos vão embora. Sem atrapalhar.


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