São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
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LANTERNA NA POPA

A prioridade política

ROBERTO CAMPOS

Não é só no Brasil que o público demonstra reduzido interesse em políticos e eleições. Na mais antiga democracia do mundo, os Estados Unidos, o comparecimento às urnas, que é facultativo, raramente alcança 50% do eleitorado. No nosso caso, o ambiente está em deterioração, com uma alta impopularidade do governo recém-eleito, em cima da habitual rejeição aos políticos e ao Congresso. No resto, o que vale é a política estadual, o governador, os grupos de interesses locais ou regionais.
Isso não está necessariamente errado. Afinal, todos querem a normalidade da vida, e a função do Legislativo é representar, não revolucionar. Mas há muito a função representativa e a questão da reforma política pairam no ar. Reforma política presta-se a uma infinidade de coisas, inclusive tapeação e demonstrações de demagogia explícita. É improvável que a maioria das pessoas, embora queira um processo político mais transparente e representativo, tenha idéias definidas sobre o que deva ser feito. E ninguém tem como garantir que, entre os inúmeros matizes de sistemas políticos e formas possíveis de representação, uma fórmula determinada assegure a todos os resultados desejáveis.
Nenhuma forma de votação e representação pode ser matematicamente consistente e perfeita. Todas apresentarão dilemas, com ambiguidades ou contradições. O que não impede que, com bom senso e tolerância em relação as limitações humanas, eventualmente se chegue, na prática, a compromissos aceitáveis. Muitos, no entanto, ainda carregam, sem perceber, restos de uma falácia romântica herdada do século 18, quando Rousseau apareceu com a noção da "vontade do povo". Trata-se de uma dessas generalidades sem conteúdo definível, mas, por isso mesmo, atraente para candidatos a demagogos, aos quais oferecia um substitutivo à idéia da Providência Divina, então comida pelas beiradas pela onda do racionalismo. Não demoraria muito tempo para que Condorcet (ele próprio um autêntico revolucionário de 1789) mostrasse a inconsistência matemática de, pelo voto, se chegar sempre a escolhas majoritárias consistentes. Nos anos 50, Kenneth Arrow, depois Prêmio Nobel, provaria isso com rigor.
Mesmo nas mais sólidas e tradicionalmente estáveis democracias, como a Inglaterra (parlamentarista) e os Estados Unidos (presidencialista), ambas com voto distrital, há sempre grupos propondo a sério mudar o sistema. O parlamentarismo, o presidencialismo, o voto proporcional, distrital, misto, ou qualquer variedade imaginável, têm todos seus defeitos. O voto distrital simples é usado na França, na Inglaterra (que está para realizar um referendo nacional a respeito), nos Estados Unidos, no Canadá, na Índia, no Paquistão e em alguns outros países menores. Formas modificadas, como o distrital misto, são usadas na Alemanha e em vários outros. O voto puramente proporcional pode ser em listas "abertas" dos partidos ou "fechadas", e pode haver exigência de uma proporção mínima para o partido ter representação parlamentar (em geral, 3% a 5%). No Brasil, ainda temos a complicação adicional do voto obrigatório, que as grandes democracias não usam. Para completar, temos uma legislação complicadíssima e continuamente alterada, que serve para os espertos tentarem levar tudo para o "tapetão", por meio de rabulices na Justiça.
Reforma política não é o mesmo que escolher apenas entre as numerosas combinações possíveis do sistema de votação, ou entre formas alternativas de presidencialismo e parlamentarismo. É escolher um caminho sensato, que junte à legitimidade um bom nível de estabilidade, de consistência decisória, de resposta às demandas mais permanentes do eleitorado, e de reação racional aos câmbios do contexto externo.
O argumento contra o sistema distrital puro é que tende a aumentar a força relativa de pequenas maiorias. Contra o proporcional puro, tem-se, na experiência e na teoria, uma tendência excessiva à instabilidade e à perda de representatividade. Em São Paulo, ou no Rio, onde um deputado é eleito em universos, respectivamente, de 70 e de 46 vagas, cada candidato é o primeiro natural adversário dos seus companheiros de partido (salvo dos que "arrastam votos" e geram sobras de legenda). A coesão dos partidos torna-se ficção, basta pensar nas dezenas de mudanças de partido nos primeiros meses da atual legislatura.
Nossa situação está ficando próxima do inviável. No estado atual de desmoralização do Legislativo, o público, induzido pela mídia, está convencido de que nele grassa uma corrupção generalizada. O que há é que o sistema facilita a demagogia e estimula a proliferação de projetos do interesse eleitoreiro de cada parlamentar. E como os partidos não funcionam bem no papel de amortecedores do sistema, perde-se o rumo. Deputados às vezes apresentam projetos de lei estapafúrdios, basicamente para chamar a atenção sobre o seu nome. Nos países sérios, legisla-se pouco. Nos Estados Unidos, o presidente não tem sequer o direito de apresentar diretamente projetos de lei. Precisa valer-se de representantes eleitos. Entre nós, poucos parlamentares podem dar-se ao luxo de tomar posições claras e coerentes com a linha partidária, a qual, por sua vez, na maioria das vezes não passa de figuração ideológica para o público ver. Sem fidelidade partidária, o governo é obrigado a comprar os votos de que necessita para cada projeto. Clientelismo e empreguismo não passam de corolários desse estado de coisas. A culpa não é de ninguém, individualmente, é difusa, do sistema. Mas todos pagam por isso.
Nenhuma reforma elidirá a necessidade de um prolongado processo de amadurecimento institucional e político, que terá inconvenientes e despertará resistências. Minha preferência é pelo voto distrital misto (não obrigatório) num regime parlamentar (no qual, quem faz a lei é quem tem de cumpri-la, o que induz comedimento e responsabilidade). O governo, compreensivelmente inseguro quanto ao que pode ocorrer, teme abrir essa caixa preta. Mas o país tem de decidir se fica atolado na lameira atual, ou prefere funcionalizar nossa débil democracia.


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).


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