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LANTERNA NA POPA
A prioridade política
ROBERTO CAMPOS
Não é só no Brasil que o público demonstra reduzido interesse
em políticos e eleições. Na mais
antiga democracia do mundo,
os Estados Unidos, o comparecimento às urnas, que é facultativo, raramente alcança 50% do
eleitorado. No nosso caso, o ambiente está em deterioração,
com uma alta impopularidade
do governo recém-eleito, em cima da habitual rejeição aos políticos e ao Congresso. No resto,
o que vale é a política estadual,
o governador, os grupos de interesses locais ou regionais.
Isso não está necessariamente
errado. Afinal, todos querem a
normalidade da vida, e a função do Legislativo é representar,
não revolucionar. Mas há muito a função representativa e a
questão da reforma política pairam no ar. Reforma política
presta-se a uma infinidade de
coisas, inclusive tapeação e demonstrações de demagogia explícita. É improvável que a
maioria das pessoas, embora
queira um processo político
mais transparente e representativo, tenha idéias definidas sobre o que deva ser feito. E ninguém tem como garantir que,
entre os inúmeros matizes de
sistemas políticos e formas possíveis de representação, uma
fórmula determinada assegure
a todos os resultados desejáveis.
Nenhuma forma de votação e
representação pode ser matematicamente consistente e perfeita. Todas apresentarão dilemas, com ambiguidades ou
contradições. O que não impede
que, com bom senso e tolerância
em relação as limitações humanas, eventualmente se chegue,
na prática, a compromissos
aceitáveis. Muitos, no entanto,
ainda carregam, sem perceber,
restos de uma falácia romântica
herdada do século 18, quando
Rousseau apareceu com a noção da "vontade do povo". Trata-se de uma dessas generalidades sem conteúdo definível,
mas, por isso mesmo, atraente
para candidatos a demagogos,
aos quais oferecia um substitutivo à idéia da Providência Divina, então comida pelas beiradas pela onda do racionalismo.
Não demoraria muito tempo
para que Condorcet (ele próprio
um autêntico revolucionário de
1789) mostrasse a inconsistência matemática de, pelo voto, se
chegar sempre a escolhas majoritárias consistentes. Nos anos
50, Kenneth Arrow, depois Prêmio Nobel, provaria isso com rigor.
Mesmo nas mais sólidas e tradicionalmente estáveis democracias, como a Inglaterra (parlamentarista) e os Estados Unidos (presidencialista), ambas
com voto distrital, há sempre
grupos propondo a sério mudar
o sistema. O parlamentarismo,
o presidencialismo, o voto proporcional, distrital, misto, ou
qualquer variedade imaginável, têm todos seus defeitos. O
voto distrital simples é usado na
França, na Inglaterra (que está
para realizar um referendo nacional a respeito), nos Estados
Unidos, no Canadá, na Índia,
no Paquistão e em alguns outros países menores. Formas
modificadas, como o distrital
misto, são usadas na Alemanha
e em vários outros. O voto puramente proporcional pode ser em
listas "abertas" dos partidos ou
"fechadas", e pode haver exigência de uma proporção mínima para o partido ter representação parlamentar (em geral,
3% a 5%). No Brasil, ainda temos a complicação adicional do
voto obrigatório, que as grandes
democracias não usam. Para
completar, temos uma legislação complicadíssima e continuamente alterada, que serve
para os espertos tentarem levar
tudo para o "tapetão", por meio
de rabulices na Justiça.
Reforma política não é o mesmo que escolher apenas entre as
numerosas combinações possíveis do sistema de votação, ou
entre formas alternativas de
presidencialismo e parlamentarismo. É escolher um caminho
sensato, que junte à legitimidade um bom nível de estabilidade, de consistência decisória, de
resposta às demandas mais permanentes do eleitorado, e de
reação racional aos câmbios do
contexto externo.
O argumento contra o sistema
distrital puro é que tende a aumentar a força relativa de pequenas maiorias. Contra o proporcional puro, tem-se, na experiência e na teoria, uma tendência excessiva à instabilidade e à
perda de representatividade.
Em São Paulo, ou no Rio, onde
um deputado é eleito em universos, respectivamente, de 70 e
de 46 vagas, cada candidato é o
primeiro natural adversário dos
seus companheiros de partido
(salvo dos que "arrastam votos"
e geram sobras de legenda). A
coesão dos partidos torna-se ficção, basta pensar nas dezenas
de mudanças de partido nos
primeiros meses da atual legislatura.
Nossa situação está ficando
próxima do inviável. No estado
atual de desmoralização do Legislativo, o público, induzido
pela mídia, está convencido de
que nele grassa uma corrupção
generalizada. O que há é que o
sistema facilita a demagogia e
estimula a proliferação de projetos do interesse eleitoreiro de
cada parlamentar. E como os
partidos não funcionam bem no
papel de amortecedores do sistema, perde-se o rumo. Deputados às vezes apresentam projetos de lei estapafúrdios, basicamente para chamar a atenção
sobre o seu nome. Nos países sérios, legisla-se pouco. Nos Estados Unidos, o presidente não
tem sequer o direito de apresentar diretamente projetos de lei.
Precisa valer-se de representantes eleitos. Entre nós, poucos
parlamentares podem dar-se ao
luxo de tomar posições claras e
coerentes com a linha partidária, a qual, por sua vez, na
maioria das vezes não passa de
figuração ideológica para o público ver. Sem fidelidade partidária, o governo é obrigado a
comprar os votos de que necessita para cada projeto. Clientelismo e empreguismo não passam
de corolários desse estado de
coisas. A culpa não é de ninguém, individualmente, é difusa, do sistema. Mas todos pagam por isso.
Nenhuma reforma elidirá a
necessidade de um prolongado
processo de amadurecimento
institucional e político, que terá
inconvenientes e despertará resistências. Minha preferência é
pelo voto distrital misto (não
obrigatório) num regime parlamentar (no qual, quem faz a lei
é quem tem de cumpri-la, o que
induz comedimento e responsabilidade). O governo, compreensivelmente inseguro quanto ao que pode ocorrer, teme
abrir essa caixa preta. Mas o
país tem de decidir se fica atolado na lameira atual, ou prefere
funcionalizar nossa débil democracia.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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