São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
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JANIO DE FREITAS

O massacre da Justiça


O fato de ser indignante não tira da absolvição dos comandantes do massacre de Eldorado do Carajás a sua alta coerência. Foram respeitadas duas tradições que o Brasil reafirmada dia-a-dia: polícia brasileira, militar ou civil, tem liberdade de matar, e assassinos de lavradores não são condenáveis. Esses ingredientes se juntaram na montagem da peça representada no tribunal do júri de Belém.
Os especialistas acham que a decisão dos jurados foi influenciada por erros técnicos (?) do juiz e irregularidades várias na sessão de julgamento. Como leigo, sugiro outra hipótese, muito menos rara. A indução pode ter chegado a cada integrante do júri pelo telefone ou pessoalmente, com palavras ou com a exibição simples e inequívoca de um revólver. Qualquer desses meios eficientes reforçado pelo contingente de PMs posto dentro e fora do tribunal.
A transferência do julgamento, de Eldorado para Belém, deu-se só por ser de conhecimento amplo que o júri, ali, não teria condições de decidir senão pelo que a PM decidisse. E por que, sendo a mesma PM, com a mesma degenerescência e os mesmos interesses, em Belém deixaria os jurados e todo o tribunal entregues à sua consciência?
Fernando Henrique Cardoso lamentou o resultado, disse a manchete da Folha. Não sei se alguém esperava que festejasse, mas, para dizer que contava com "algum grau de condenação, uma reprimenda moral que seja", outra vez melhor faria se calasse. Contentar-se com reprimenda para o assassinato de 19 pessoas é ainda mais imoral do que a absolvição. Ao contrário desta, reconhece o crime brutal, mas o considera passível de um pito. São lavradores, afinal.
Por seu lado, o secretário de Direitos Humanos, José Gregori, mostrou-se à altura do seu líder. Em nota oficial, quis "registrar que o julgamento foi isento de qualquer irregularidade, atendendo a todos os preceitos da lei". Apesar disso, oferece "todo apoio da Secretaria de Direitos Humanos" para que o julgamento seja anulado. Mas, nesse "julgamento isento de qualquer irregularidade" e respeitoso de "todos os preceitos da lei", os presentes constataram duas irregularidades consideradas graves: a manifestação antecipada de um dos jurados e a formulação de perguntas contraditórias do juiz, para a opinião final dos jurados.
A nota desarranjada não satisfez a lavagem de mãos do secretário. Ao vivo, José Gregori disse que o governo federal nada tinha com o julgamento, mas "fez pressão" para tirá-lo de Eldorado e vê-lo em Belém. A pressão -tenha havido ou seja criação atual do notório mal-estar no governo- só se explica pela percepção, tanto mais a de um advogado experiente, dos numerosos problemas que se contrapunham a um julgamento. Nega que o governo nada tivesse a fazer no caso, sobretudo que não lhe coubesse fazer algo indispensável e não providenciado.
Está certo que, em vista da estima que o povo lhe tem, até para Fernando Henrique passar um sábado na restinga de Marambaia mobilizam-se helicópteros militares, embarcações de vigilância, soldados ou fuzileiros navais, batedores e, como sempre, vários carros com militares e guarda-costas. Para um julgamento extraordinário, pelo qual se interessava o que há de pior na violência policial, era da função e do dever do governo federal providenciar a proteção contra as intimidações e o clima de apreensão.
O que aconteceu sob o nome de julgamento foi um massacre sobre o outro.


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