São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
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ELIO GASPARI


A Previdência quer tungar o bolsão da pobreza


A disposição da turma do andar de cima para combater a pobreza nacional é a coisa melhor distribuída do Brasil: todo mundo acha que tem o suficiente.
Deixando-se de lado a esperança de que algum dia o andar de cima esteja efetivamente disposto a trabalhar pelo de baixo, é o caso de tentar evitar que continue tungando-o.
O projeto de mudança do cálculo das aposentadorias das vítimas do INSS (R$ 245 por mês, na média) resultará numa tunga para os trabalhadores que ganham até três salários mínimos. Tungará também aqueles que ganham mais que isso, mas essa é outra discussão.
Admitindo-se que um trabalhador com família e R$ 408 de salário é uma pessoa pobre, vale avisar que estão querendo avançar no bolso desse homem.
Ao exemplo.
Pelo sistema do Brasil Arcaico, esse cidadão podia se aposentar depois de 35 anos de serviço. Admitindo-se que tivesse começado a trabalhar aos 18 anos, aos 53 receberia R$ 408 como aposentado.
Na primeira fase da reforma da Previdência, com o apoio da CUT, o governo acabou com o tempo de serviço, substituindo-o pelo tempo de contribuição.
Supondo que aquele mesmo cidadão tenha entrado numa firma aos 18 anos e, ao longo dos 35 seguintes tenha recebido um salário equivalente a três salários mínimos, era de se supor que pudesse ir para casa, sempre aos 53 anos, com os mesmos R$ 408.
Coisa nenhuma. Pela proposta do governo ele se aposentará com R$ 322. Pretendem tungá-lo em R$ 86 por mês. Querem confiscar-lhe 21% da renda anual. Para conseguir R$ 408, precisará retardar sua aposentadoria em pelo menos três anos. Ou seja, o que o professor Fernando Henrique Cardoso está querendo impor a esse brasileiro é uma condenação a três anos de trabalhos forçados.
O Ministério da Previdência sustenta que sua fórmula destina-se a equilibrar as contas e argumenta que o número de trabalhadores com esse salário que conseguirá se aposentar aos 53 anos é economicamente desprezível.
O governo está cheio de aposentados que forraram a pança com as regras que levaram à quebra da Previdência. Não foram os trabalhadores de três salários mínimos que a quebraram. Pelo contrário. Suas contribuições é que sustentaram a festa.
Proposta: em vez de defender uma fórmula que resulta em furto do dinheiro dos pobres, por que o governo não cria uma barreira de defesa social? Desiste de morder os trabalhadores que ganham menos de três salários mínimos e tenta tungar só os que ganham mais do que isso.
FFHH diz que gostaria de reduzir a pobreza, mas não tem como. O ministro Pedro Malan diz que não se pode abatê-la com uma "canetada".
Não se pede que façam algo novo para diminuir a pobreza.
Pede-se apenas que parem de fabricar novas modalidades de confisco da renda dos pobres.

"Não!"


Na sexta-feira, 13 de agosto, o ministro Clóvis Carvalho, do Desenvolvimento, fez uma incursão ao empresariado. Reuniu-se por mais de duas horas com uma dúzia de industriais, no trapézio da Fiesp.
Usando sua técnica de gerência, pediu a cada um que falasse, para que ao final pudesse dar o seu recado.
Ouviu cobras e lagartos, inclusive a declaração de um empresário de que pretendia vender seu negócio a estrangeiros para viver de renda.
Quando chegou sua vez, ensinou aos interlocutores que a economia vai se recuperar, tudo vai dar certo e não há razão para pessimismo.
(É típico do tucanato: quando uma pessoa diverge do que dizem, explicam de novo, como se estivessem conversando com alunos despreparados.)
Ao final, o doutor Clóvis propôs que o encontro fosse resumido mais ou menos assim: os empresários estavam pessimistas, fizeram suas queixas e ouviram as razões do governo. Depois disso, mudaram de opinião e ficaram esperançosos.
Ouviu de volta um "não".


Obra de mestre


Saiu um grande livro. É "A Construção da Democracia em Portugal", do professor Kenneth Maxwell, autor do clássico "A Devassa da Devassa", a melhor coisa já escrita sobre a Inconfidência Mineira.
Com 236 páginas, cobre o período da história portuguesa que vai de abril de 1974, quando os militares derrubaram uma ditadura cinquentenária, até 1976, quando o país chegou à legalidade constitucional.
É uma história emocionante, com um golpe militar detonado por uma canção, simbolizado pelos cravos e inicialmente encarnado num general que usava monóculo e capa de duque. Conta um período de anarquia, durante o qual o secretário de Estado Henry Kissinger convenceu-se de que o socialista Mário Soares era um bobo e que Portugal corria o risco de virar um país comunista. Termina com o predomínio de Soares e com o o surgimento de uma facção politicamente moderada e disciplinarmente inflexível nas Forças Armadas.
Pela segurança com que manuseou as fontes, pela serenidade da narrativa e pelo humor na escrita, Maxwell produziu uma obra rara. A crise portuguesa, por velha, tornou-se desinteressante. O livro, pela maestria, é um prazer.

A treva dos fabricantes de lâmpadas



A indústria de lâmpadas está escrevendo uma triste história para o empresariado brasileiro. Quatro empresas internacionais (General Electric, Philips, Sylvania e Osram) meteram-se numa operação que resultou na mudança dos padrões das lâmpadas incandescentes, produziram treva, elevaram o consumo de energia e fizeram-se de desentendidas. Multadas pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), saíram-se com uma lorota.
Quem já passou pelo suplício de ver as lâmpadas de sua casa durarem como velas, terá paciência para aguentar uma recapitulação do que se fez.
Em 1996, os fabricantes propuseram à Associação Brasileira de Normas Técnicas uma mudança nas características de suas lâmpadas. Em vez de trabalharem com uma tensão de 127 volts, passariam a trabalhar com 120. Essa novidade atingiria cerca de 20 milhões de consumidores que vivem sob o regime de 110 volts.
Num exemplo grosseiro, imaginando-se que uma lâmpada seja um pavio de vela, recebendo sempre a mesma quantidade de calor, a mudança diminuiria a espessura do pavio, gerando mais luminosidade. Em contrapartida, duraria menos.
O novo padrão beneficiaria a escumalha. Com mais luz, ela reduziria o número de lâmpadas em suas casas, e o país pouparia energia.
Em 1997, depois de reuniões às quais compareceram todos os fabricantes, decidiu-se que a partir de janeiro de 1998 o padrão das lâmpadas seria trocado.
A troca foi denunciada por técnicos e, sobretudo, pelos professores Cesar Pagan e Gilberto Jannuzzi, da Unicamp. Sustentavam que a história acabaria em mais consumo e mais lâmpadas queimadas.
Qualquer estudante de engenharia que manuseie o livro "Instalações Elétricas", de Hélio Creder, aprende que, baixando-se a voltagem de uma lâmpada, troca-se mais luminosidade por maior consumo de energia e por mais lâmpadas queimadas.
A luminosidade aumentou em 21%. A vida das lâmpadas, quando ligadas a uma corrente com 127 volts de tensão, caiu de 1.000 horas para 480. Aumentou-se em 0,44% o consumo nacional de energia, o equivalente a 35% do abastecimento de Brasília.
Segundo as empresas, elas não têm nada a ver com isso. O problema deriva da má qualidade da energia e, seja qual for a norma, haverá anomalias.
Até aí, nada demais. Visto o problema, elas poderiam ter pulado na frente, discutindo o assunto. Se fosse o caso, admitindo que a norma (proposta por elas) fosse mudada. Nada.
Em fevereiro do ano passado, o deputado Luciano Zica apresentou um projeto de lei fixando novos padrões para as as lâmpadas. Poderiam tê-lo contestado publicamente. Nada. O projeto foi aprovado. Nada. Viram-se processadas no DPDC. Nada. Em janeiro, a Agência Nacional de Energia condenou a mudança. Nada.
Na última quarta-feira, cada uma delas foi condenada a pagar uma multa de R$ 1,95 milhão. Deverão retornar ao padrão antigo em 30 dias. (Elas não conseguem fazer isso em menos de quatro meses, mas não apareceram para negociar um prazo, apesar de já terem começado a projetar a troca de padrão.)
Mesmo que os fabricantes tivessem feito tudo certo, produziram pura treva ao argumentar contra a decisão do DPDC. Saíram-se com uma história segundo a qual não podem ser responsabilizadas por cumprir o que a norma da ABNT determina. Conversa fiada. A norma foi proposta e endossada por elas. Pode ter sido feita com boas intenções, mas elas são responsáveis pelo que aconteceu. Ao dizerem que são vítimas de uma irracionalidade, iludem quem lhes dá crédito.

Curso Madame Natasha de piano e português


Madame Natasha tem horror a música. Ela socorre os desgovernados do idioma e concedeu uma de suas bolsas de estudo aos diretores da montadora General Motors.
A firma, com sede nos Estados Unidos e com um faturamento de US$ 161 bilhões (duas vezes superior ao PIB do Chile), acaba de publicar um anúncio aos seus fregueses.
Nele, pede aos proprietários de carros Astra 99 GLS e GL com coluna de direção regulável, das séries 0XB310 a 343.900 que os levem a uma oficina autorizada para que sejam inspecionados. Por quê? É a seguinte a explicação da GM:
"Esse procedimento é necessário por existir a possibilidade de, em alguns veículos, a junta universal desacoplar-se da árvore de direção, levando à anulação do controle direcional".
Madame Natasha sabe que a GM, escrevendo em gemês, quis dizer o seguinte:
"O carro pode se desgovernar".
O uso da linguagem empolada para esconder o significado do que deve dizer é coisa antiga. No ano passado, por exemplo, o laboratório Schering descobriu que havia na praça cartelas com pílulas de farinha do seu anticoncepcional Microvlar. Recomendou às consumidoras que se cuidassem, usando "métodos de barreira". Não quiseram dizer o que deviam: quem toma anticoncepcional de farinha deve usar camisinha.
A diretoria da GM sabe muito bem que essa conversa de "a junta universal desacoplar-se da árvore de direção" significa que um de seus fregueses pode vir a perder o controle do Astra que dirige, acoplando-se, a 80 quilômetros por hora, ao tronco de uma árvore da calçada.
A enrolação foi deliberada. O que não se consegue entender é o seguinte: se a GM decidiu empulhar os clientes que lêem o seu anúncio, qual o seu nível de responsabilidade se todos os donos de Astras ameaçados forem enrolados? Poderá dizer que eles não sabem ler. Ou que não entendem gemês.

Jogo velho


Estranho partido, o pefelê. Fica na vitrine como campeão da reforma das leis trabalhistas, mas, quando se olha para baixo do balcão, vê-se o seguinte:
1) o deputado Luiz Antonio de Medeiros (PFL-SP) tornou-se relator do projeto que acaba com o imposto sindical. Aceitou a tarefa em março e até hoje não apresentou seu relatório;
2) o deputado Carlos Eduardo Moreira Ferreira (PFL-SP) amarrou a tramitação do projeto que cria as comissões de conciliação nas empresas com mais de 200 empregados. A providência destina-se a dar rapidez aos pleitos e, de tabela, diminui o poder da Justiça do Trabalho. Primeiro ele disse que não aceitava que elas fossem obrigatórias. Foi atendido. Depois, anunciou que não concordava com a estabilidade dos representantes dos empregados. Finalmente, informou que discorda do mérito da proposta.
Jogo velho: apóia-se a idéia e sabota-se a tramitação.

Subcérebros


A burocracia previdenciária produziu uma expressão que retrata a cabeça torta do pernosticismo economicista do governo. Dizem que, depois de se aposentar, o trabalhador tem uma "sobrevida". Noves fora o fato de considerarem a duração dessa "sobrevida" um problema contábil, a expressão é coisa de tunguistas.
As pessoas não têm sobrevida, têm vida. Pode-se dizer que a vítima de uma doença letal dispõe de um tempo de sobrevida, mas isso deriva do fato de os médicos terem a capacidade de estimar quanto tempo de existência lhe resta. Afora isso, vida é vida, e morte é morte.
Quando um burocrata da Previdência fala em "sobrevida" do trabalhador depois da aposentadoria, parte da suposição de que o brasileiro usufrui a dádiva da "vida" enquanto trabalha, contribui para o INSS e lhe paga o salário. Aposentado, atrapalha os mandarins com sua "sobrevida".
Toda vez que um burocrata resolver usar essa expressão, ele deve ter a coragem de dizer também o seguinte:
1) o presidente Fernando Henrique Cardoso, aposentado com vencimentos integrais pela Universidade de São Paulo em 1981, está no seu 18º ano de sobrevida;
2) os pais do burocrata, caso tenham se aposentado, não estão vivos, mas apenas teimando em sobreviver.


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