São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

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ELIO GASPARI

FFHH quer blindar o futuro

FFHH cedeu à pior das práticas de fim de governo: o testamento. Está pronta e temperada uma medida provisória com mais de 20 itens reformulando a estrutura da Secretaria da Receita Federal. Seguindo a pior das escritas, essa MP foi cozinhada em segredo de burocracia pelos doutores Pedro Parente e Everardo Maciel. Discuti-la com a choldra, também conhecida como eleitorado, nem pensar. É um verdadeiro saco de oportunidades. Inclui mimos salariais, anestesias judiciais y otras cositas más. Abre o caminho para a autarquização da Receita e pode ser que dê os primeiros passos nesse sentido.
Pelo bem e pelo mal, desde que Fernando Collor sucateou a instituição, essa é a maior reforma estrutural pelo qual ela passa. Se é necessária, e FFHH, Pedro Parente e Everardo Maciel não a fizeram em oito anos, isso só se pode atribuir à inépcia de cada um deles e de todos três. Se é urgente, poderiam colar um selo vermelho na capa do projeto e deixá-lo para o novo presidente. Fazer coisas desse tamanho em fim de governo é falta de modos.
É possível que o melhor futuro para a Receita seja a sua transformação em agência, tornando-a autônoma, com secretário nomeado com mandato. Faz-se isso a sério oferecendo a essa agência uma base sólida de recursos (e não um fundo que o doutor Parente tungou à exaustão). Na correria de fim de governo, o que se consegue é apenas a blindagem do passado e do interesse dos beneficiados. Coisa feia.
Dentro da mesma gaveta de maldades, cozinha-se a transformação do Instituto do Patrimônio Histórico em agência. Novamente, a idéia só ocorreu agora, quando o titular precisará ser confirmado pelo novo governo. Fazendo-se a agência, consegue-se mandato para o feliz escolhido. O Iphan tem 65 anos de idade e 1.600 funcionários. Nunca passou por período tão sonolento. Vale para ele o que vale para a Receita. Se a medida era necessária, os doutores Francisco Weffort e FFHH foram ineptos por não fazê-la em oito anos. Blindar o Iphan em fim de governo é falta de modos.
Argumenta-se em qualquer desses casos que as agências modernizam a administração. Lorota, e da boa. Quando a estrutura de uma agência conflita com os intere$$e$ do andar de cima, o Planalto passa a máquina de terraplenagem em cima da burocracia. Exemplo disso é o que se fez com a Aneel na definição das novas tarifas de energia. Um dos fatores que entram no cálculo dos aumentos é a avaliação do valor dos ativos das empresas. Essa avaliação pode ser feita de mil maneiras. A mais lógica, disseminada e compreensível é a do cálculo do valor de mercado a partir do valor de suas ações. A Aneel foi nessa linha. As empresas argumentavam que desse jeito elas valeriam US$ 7 bilhões a menos do que a soma dos preços mínimos dos leilões da privataria. A novela terminou com a transferência da questão para o Conselho Nacional de Política Energética (leia-se Gabinete Civil da Presidência).
Vai mal a privataria. Na defesa do regime capitalista, privatizaram o patrimônio da Viúva. No seu lugar, colocaram um capitalismo sem risco, com lucros pré-fixados para concessionários de serviços públicos.
Para a patuléia, restam coisas mais triviais: pagar impostos e aumentos da conta de luz, aturar apagão e votar.

Armínio Pires?

Um dos melhores momentos de Tancredo Neves deu-se quando passou ao último ministro do Exército do ciclo militar, general Walter Pires, a impressão de que o manteria no cargo. No mínimo, o mandaria como embaixador a Lisboa. Pires foi para o seu apartamento no Leblon.
O presidente do Banco Central, Armínio Fraga, vem recebendo sinais da nação petista de que, numa eventual vitória de Lula, receberá um convite para continuar onde está ou, pelo menos, ficar por perto.

A linha

Há duas semanas, a linha que demarcava o futuro da candidatura de Ciro Gomes era a marca de Anthony Garotinho nas pesquisas. Acreditava-se que ele renunciaria se passasse ao quarto lugar.
Desmentida essa hipótese, especula-se outra possibilidade. Renunciará se perceber que arrisca perder para os votos nulos, como aconteceu em 1998.

O leitor esclarece

O juiz Ana Maria Cossermelli, presidente do TRT do Rio de Janeiro, esclarece:
O serviço de auto-atendimento de seu tribunal será desativado no fim de outubro, quando vence o contrato da empresa que o mantém. Os interessados em acompanhar o andamento de processos poderão valer-se da internet e de terminais que serão colocados à disposição do público. Pediu mais 24 terminais ao TST.

Um pobre retrato do atraso

A psicóloga Denise Costamillan Andere, de Mogi da Cruzes, leu no jornal que o MEC mandou 60 milhões de livros para 8,5 milhões de alunos da 4ª série de 139 mil escolas públicas. Como tem um filho de dez anos na escola Coronel Almeida e ele não recebeu livro algum, resolveu saber o que aconteceu.
O diretor da escola disse-lhe que jornal mente muito e que não havia livro algum. Ela ligou para a Secretaria de Educação (aquela que convoca professores para homenagear o governador Alckmin). Nunca tinham ouvido falar no programa do MEC. Novamente: imprensa exagera muito.
Quando a cidadã ligou para Brasília, obteve a lista com os títulos dos 196 conjuntos de livros recebidos pela escola. Voltou ao colégio. Disseram-lhe que os livros existiam, mas seriam usados em outro projeto. Ela ameaçou dar queixa ao MEC.
Depois de dois dias de corpo-a-corpo, o coordenador pedagógico da escola decidiu confiar os livros aos pais, para que as crianças não os estragassem. A psicóloga recusou a oferta e exigiu que os volumes de seu filho fossem entregues ao garoto. Essa é a idéia do programa do MEC e assim deveria ser feito. Ganhou a parada.
O diretor e o coordenador pedagógico da escola Coronel Almeida deveriam copiar cem vezes uma magistral confissão do esteta Bernard Berenson: "Não estou mais entendendo os jovens. Devo estar ficando senil".

Entrevista

José Sarney

(72 anos, senador, presidente da República de 1985 a 1990)
-No final do seu governo o café vinha frio?
-Nunca. Isso é folclore. Fim de governo é um período muito tumultuado, pela diversidade das despedidas. Três meses antes de passar a faixa, eu decidi que não assinaria medidas relevantes. Isso me custou até ressentimentos. Há setores da administração que tentam se livrar de esqueletos, assim como é uma época propícia a todas as sugestões reclassificatórias da burocracia. É um tempo em que o presidente é procurado por pessoas que lhe propõem medidas supostamente indispensáveis, imediatas. Eu me orgulho de ter sido o único presidente que deixou ao seu sucessor uma cadeira vaga no Supremo Tribunal Federal e outra no Tribunal de Contas. Hoje é fácil lembrar. Na época, era difícil não encontrar as pessoas que se julgavam qualificadas e desejavam um dos dois lugares. É possível que houvesse até candidato a qualquer um dos dois.
-Esses últimos meses de governo lhe trazem más lembranças?
-Eu não sou uma pessoa de más lembranças. Na manhã da saída do palácio, eu disse a minha família: "Aí fora há dois grupos. Um quer aplaudir o Collor, o outro quer insultá-lo; ambos querem vaiar o Sarney". Quando desci a rampa, puxei o lenço branco e acenei para o povo. Recebi aplausos de volta. O Antonio Carlos Magalhães viu a cena e começou a chorar. Você não precisa se matar, como o doutor Getúlio, mas todo presidente, quando deixa o cargo, entra um pouco para a eternidade. Por isso, eu olho para trás e fico feliz por ter passado os últimos meses no Planalto sem heranças a distribuir nem contas a ajustar.
-Qual o melhor lugar para passar os primeiros dias depois da saída do governo?
-Só posso falar por mim. Melhor que a ilha do Curupu não há. Para depois do governo ou para depois de qualquer coisa.


A cana da Marinha está acima da ignorância dos burocratas

O advogado Geraldo Quintão justificou a sua passagem pelo Ministério da Defesa ao abater em vôo a idéia de trancar Fernandinho Beira-Mar no presídio da Marinha, na ilha das Cobras. A proposta circulou por menos de 24 horas em Brasília, solo fértil para idéias malucas.
O principal ingrediente de maluquice é a transferência para os militares da questão da segurança interna. O militar é treinado para matar, no mínimo tempo necessário, o máximo de inimigos possível. Quartel não tem algema. Basta olhar as fotos de alemães capturados durante a Segunda Guerra. Cadê os prisioneiros algemados? Não tem. Estão presos e quietos, ou mortos.
A maluquice é também desonesta. Pressupõe que os militares sejam bobos. Durante a ditadura, milhares de brasileiros foram torturados e centenas foram assassinados por militares sob o aplauso do empresariado (a inesquecível caixinha da Fiesp, ou o esquecido almoço da banca). Quando a ditadura finou-se, empresários, banqueiros e políticos foram para as passeatas ou para os manifestos e deixaram a conta da repressão para os militares.
A proposta foi também coisa de ignorante. O presídio da Marinha, na ilha das Cobras, pertence muito mais ao patrimônio cultural do Brasil do que ao acervo da segurança pública. Guarda hoje dois oficias e 17 praças, sem muito equipamento carcerário. É a cana mais ilustre de Pindorama. Felizmente, é preservada pela Marinha. Foi aberta em 1736 e seu primeiro hóspede ilustre foi Tiradentes (de 1789 a 1792), cuja cela pode ser visitada pelo público. José Bonifácio encheu-a de oposicionistas e foi parar lá em 1823, junto com os dois irmãos. Na República lá estiveram donos de jornais (Irineu Marinho e Edmundo Bittencourt), um ex-presidente (Artur Bernardes, em 1932) e subversivos como o tenente Juarez Távora (duas vezes), marinheiros, sindicalistas e estudantes de 1964. Na ilha das Cobras, mas não no presídio, Darcy Ribeiro escreveu, em 1969, uma linda página da história nacional. Estava preso num camarote do Batalhão Naval onde dava-se tratamento fidalgo aos presos. Tinha debaixo de sua janela a vista de um velho portão meio estragado. Da prisão, telefonou para o diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e pediu que o restaurasse. Tornou-se assim o único caso conhecido de preso que cuida da conservação da cana que o guarda.
A prisão da ilha das Cobras tem um mistério. Em 1933, um servente consertava uma parede do Hospital da Marinha quando ouviu um barulho diferente, parecendo que batia em algo oco. Enfiou a talhadeira e fez uma fenda. Passou um cabo de vassoura e abriu um buraco. Demoliu-se a parede e apareceu um portal de cantaria que dava para um compartimento escavado na rocha. Nele, um esqueleto que ao ser tocado virava pó. Nenhum grilhão, só alguns patacões de 40 réis. Alguém foi emparedado em vida naquela caverna, possivelmente na primeira metade do século 19. Não seria um Fernandinho Beira-Mar qualquer, pois não estava a ferros. Também não era alguém que se desejasse pura e simplesmente matar.Quase todos esses conhecimentos foram preservados pelo almirante Júlio Greenhalgh, já morto, que escreveu o livro "Presigangas e Calabouços", editado pelo Serviço de Documentação da Marinha em 1998.


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