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ENTREVISTA DA 2ª
FRANCISCO DE OLIVEIRA
Elite do sindicalismo nacional provocou a aproximação entre o PT e o PSDB e levou ao continuísmo
Nova classe social comanda governo Lula, diz sociólogo
José Nascimento/Folha Imagem
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O sociólogo Francisco de Oliveira fala sobre a reedição de seu livro "Crítica à Razão Dualista', de 73 |
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
A vanguarda do proletariado se
tornou dona da banca.
Pode parecer o resultado de
uma revolução socialista, mas,
para o sociólogo Francisco de Oliveira, é a descrição da recente história do sindicalismo no país e a
explicação para o comportamento conservador do governo Luiz
Inácio Lula da Silva.
A elite do sindicalismo nacional, e por consequência o grupo
dirigente do PT, passou a constituir uma nova classe social, defende o professor emérito de sociologia da USP, ao ocupar posições
nos conselhos de administração
das principais fontes de recursos
para investimentos no país: o
BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e os fundos de pensão das
empresas estatais.
A participação institucional dos
trabalhadores na gestão desses
fundos é anterior a Lula na Presidência. Não podendo ser acusado
de inventar uma espécie de "aparelhamento" financeiro, o governo atual é menos causa que consequência do processo. A tese está
no posfácio inédito à sua "Crítica
à Razão Dualista", obra de 1973
que a Boitempo Editorial reedita
agora (ler texto nesta página). "O
Ornitorrinco" é o título do texto.
Descolando-se da representação dos interesses específicos dos
trabalhadores, esses novos "gestores" também não podem ser caracterizados como empresários.
"Eles não são burgueses propriamente porque eles não têm a
propriedade nem eles são gestores das empresas privadas. Eles
estão no ponto crucial, onde o capital privado busca recursos para
acumular. Esse ponto são os fundos estatais, de um lado, e os fundos institucionais, de outro."
Nova classe, com interesses específicos -a boa gestão financeira é o principal. "Eles foram indicados gestores desses fundos e influenciam o partido. O sr. Luiz
Gushiken [ministro da Comunicação de Governo] é ligado a isso,
como o [Ricardo] Berzoini [ministro da Previdência]."
"Eles estão defendendo interesses que são legítimos do ponto de
vista deles", afirma. "Você vai ver
o sujeito votando no Conselho do
BNDES por um investimento que
vai desempregar também."
Bicho estranho -mamífero,
ovíparo e com bico de pato-, o
ornitorrinco é a alegoria da sociedade brasileira atual, em que setores dinâmicos da economia se alimentam da miséria para funcionar, mas sem capacidade de se reproduzirem de forma ampliada.
A seguir, trechos da entrevista:
Folha - No "Ornitorrinco", o sr.
cria uma teoria para explicar a mudança do PT e o comportamento do
governo Lula. Como é que se dá esse processo?
Oliveira - Isso se deu de forma
bem prática, sem nenhuma teoria
apriorística. Durante a ditadura,
os militares inventaram os fundos
de pensão de cada empresa estatal. Não havia isso antes de 64. Suponho que o Banco do Brasil sempre teve, porque sempre foi uma
corporação muito forte. Depois,
virou regra geral. Todas as empresas estatais constituíram seus fundos de Previdência privada. Pode
pegar todos eles, todos têm origem em empresas estatais: Previ,
Eletros, Petros, Portus, esse da
Caixa Econômica, todos fundos
de Previdência complementar.
Como foi feito? A ditadura fez
assim: o funcionário bota R$ 1 e a
empresa bota R$ 1. Veio a Constituinte de 88, que criou o FAT, o
Fundo de Amparo ao Trabalhador. Esse FAT é a principal fonte
de recursos do BNDES. Então, você tem duas coisas: a principal
fonte de recursos para acumulação de capital a longo prazo no
Brasil é o FAT, via BNDES, e a
principal fonte de recursos para
investimento patrimonial, não
necessariamente investimento de
capital, mas pode ser, é de trabalhadores. É por isso que eu disse:
se um marciano saltar aqui, acha
que este é um país socialista.
Aliás, numa intervenção no Senado, o [senador Aloizio] Mercadante se gaba disso. Diz que a Previ é um enorme sucesso porque os
trabalhadores viraram donos da
Siderúrgica Nacional, da Vale do
Rio Doce e de importantes empreendimentos do país. Essas
duas coisas foram criando uma
casta de administradores que são
funcionários, operários e sindicalistas das grandes empresas e das
grandes centrais.
Folha - Que é a elite do sindicalismo brasileiro?
Oliveira - Que é a elite do sindicalismo brasileiro. Quer dizer, o
FAT é administrado pelo BNDES,
existe um representante das centrais sindicais que se senta no
Conselho do BNDES para poder
dar palpite sobre o FAT. Foi se
criando uma elite de sindicalistas,
de operários, de funcionários, que
são os gestores desses fundos.
Folha - Que o sr. defende serem
uma nova classe social?
Oliveira - É, é uma nova classe
social.
Folha - Que não é nem burguesia,
nem trabalhadores.
Oliveira - Não, eles não são burgueses propriamente porque eles
não têm a propriedade nem eles são
gestores das empresas privadas.
Eles estão no ponto
crucial, onde o capital privado busca
recursos para acumular. Esse ponto
crucial são os fundos estatais, de um
lado, e os fundos
institucionais, de
outro. Eles viraram
administradores de
fundos, eles são
uma nova classe.
Folha - E dá para
dizer que é natural
esperar que essa elite fosse a mesma elite do PT, quer dizer,
fossem os dirigentes
do partido também?
Oliveira - É natural devido à origem desses fundos. Eles são todos fundos de empresas. E de outro lado a Constituinte deu às centrais sindicais a
representação na administração
do FAT, na administração do
Conselho de Administração do
BNDES. É natural desse ponto de
vista. Não é ideologicamente natural, mas era de se esperar que,
como a CUT e as formações ligadas ao PT são a força principal,
eles estivessem lá. Mas daria no
mesmo se fosse a Força Sindical.
No caso aí, o hábito faz o monge.
Eu desloco a discussão para
além de coisas como traição ou o
que quer que seja. Quero saber
quais são os mecanismos estruturais que criam esses processos.
Folha - E como é que na prática isso explica o comportamento do governo, suas prioridades?
Oliveira - Porque são interesses
poderosos. Quando perguntaram
ao primeiro-ministro da Inglaterra depois da Segunda Guerra
-que era um trabalhista mesmo,
não era nada nobre- o que ele ia
fazer sobre o processo de descolonização, ele respondeu que não tinha sido eleito para liquidar o império. É mais ou menos essa a situação. Eles chegam lá e viram administradores de fundos e vão estar interessados em que esses fundos dêem certo, em
que eles tenham
rentabilidade, porque, como é fácil de
explicar, o que está
em jogo é a aposentadoria deles, essa
aposentadoria
complementar. Então, eles estão interessados em investir nos empreendimentos capitalistas
mais importantes.
Como é que isso
passou para o PT? O
PT historicamente
vem de três forças,
uma das quais foi o
sindicalismo, a outra foram bases da
igreja e a terceira os
deserdados da esquerda que se juntaram cá no PT.
Ora, a esquerda vinda da Igreja Católica está grandemente liquidada
dentro do PT. Não tem mais nenhuma expressão, foi posta de lado, mesmo os evangélicos, de entrada mais recente, também estão
sendo postos de lado. Os que não
concordam são postos de lado. A
fração sindicalista ganhou predominância dentro do PT e fundiu-se com a fração chamada de origem política propriamente.
Fundiu-se por quê? Fundiu-se
pelo velho interesse burocrático,
sem sentido pejorativo. O PT é
hoje, e já há algum tempo, a maior
máquina partidária deste país. Dizendo em jargão mais banal: tem
interesses a defender.
Eles foram indicados gestores
desses fundos e influenciam o
partido. O conhecido sr. Luiz
Gushiken é ligado a isso, como o
Berzoini. Eles estão defendendo
interesses que são legítimos do
ponto de vista deles. Não vão fazer nada além do que a representação que os trabalhadores lhes
deram, obrigam-nos a fazer. Só
que aí eles se descolam. Você vai
ver o sujeito votando no Conselho
do BNDES por um investimento
que vai desempregar também.
Então, o argumento do Mercadante, numa intervenção que ele
fez no Senado, de que isso modifica a relação de capital e trabalho...
Ou esse senador não aprendeu
nada e precisa voltar à escola ou
ele está mistificando. Não muda a
relação capital-trabalho coisíssima nenhuma. Os novos proprietários tornam-se capitalistas e vão
empregar de novo trabalhadores,
mesma relação. Mas isso mudou
o caráter ideológico porque há interesses concretos a defender.
Folha - Sobre esse caráter ideológico, o sr. faz um paralelo entre
PSDB e PT e entre as universidades
PUC-Rio e FGV de São Paulo. Qual é
a relação?
Oliveira - O que são os expoentes
maiores do PSDB? De um lado
você encontra concretamente
gente que passou do aparelho de
Estado para o sistema financeiro.
Sem muita explicação teórica: Edmar Bacha virou banqueiro, Pérsio Arida virou banqueiro, os
Mendonça de Barros viraram
banqueiros, até João Sayad tinha
sido banqueiro até pouco tempo
atrás. Banqueiro é uma expressão
máxima, mas, todos eles, de alguma maneira entraram para o sistema financeiro.
Por quê? Porque, à semelhança
dos que simetricamente estão do
outro lado, eles conhecem o caminho das pedras também e eles têm
relações profundas com o Estado,
com o governo, têm interesses
mesclados e fazem uma espécie
de outra metade da laranja. Podem pensar que estão ideologicamente opostos, mas, do ponto de
vista real de seus objetivos e interesses claros, são a mesma coisa.
Folha - Os petistas e os tucanos?
Oliveira - É a mesma coisa. Eles
se sentem parte do mesmo jogo.
Eles se sentem fazendo parte dos
mesmos grupos de interesse. É
forte, não é uma coisa banal.
Eu usei no "Ornitorrinco", só
não dei o nome, mas todo mundo
reconhecerá, esse sr. Delúbio Soares [secretário de Finanças do PT,
ex-representante da CUT no conselho de administração do FAT
no BNDES]. Esse rapaz era um
metalúrgico. Foi a Folha que noticiou, e eu tomei a notícia daí, que
o aniversário dele foi comemorado numa fazenda em Goiás, numa festa de arromba, e a reportagem contou 18 jatinhos na tal fazenda. Isso é trabalhador? Ou estamos enganados... Eles se sentem
parte do mesmo grupo social, dos
mesmos interesses e é por isso
que a política brasileira está nesse
impasse. Todo mundo é situação.
Folha - A importância desses sujeitos é que administram esses recursos? São os principais recursos
do país?
Oliveira - São. O FAT, de um lado, na acumulação de capital, no
financiamento da acumulação de
longo prazo, e os fundos de Previdência são os principais investidores
institucionais. Todas as privatizações
feitas desde o [ex-presidente] Fernando Collor foram decididas pela
entrada de um fundo de Previdência
vindo das estatais.
Quando o Fernando Henrique
quis ferrar com o
Antônio Ermírio de
Moraes, por razões
até hoje mal explicadas, na compra
da Vale do Rio Doce, ele e o gordo sinistro, aquele que
morreu [Sérgio
Motta, que foi ministro das Comunicações de FHC], e
outros chamaram a
Previ e mandaram
entrar no outro consórcio.
Folha - Integrantes do PT, gente
dessa elite já participava disso?
Oliveira - Claro, já estavam. Isso
é uma prática que o PT inventou?
Não. Não é uma invenção de maldade do PT nem por cooptação
ideológica. São processos objetivos que a institucionalidade criou
e criou na melhor das intensões.
Não é maldade inventada. Mas isso cria novos interesses, cria nova
consciência social.
Folha - Isso se reflete como na política? A crise na política vai além da
aproximação desses partidos? É
possível esperar novos partidos de
esquerda para defender interesses
que o PT já defendeu?
Oliveira - É difícil. Não é impossível, essas relações não são congeladas, é um processo muito dinâmico, mas eu acho que o ornitorrinco conspira contra isso.
Não é fácil porque as forças históricas que constituíram os partidos de esquerda estão em forte
mudança no mundo todo. Não é
porque a social-democracia corrompeu, e vá lá que corrompeu,
seria impossível não corromper.
Corromper do ponto de vista
mais banal. É uma mudança profunda na relação de forças, na
classe, na sua formação.
Folha - Por quê o ornitorrinco
conspira contra a política?
Oliveira - Porque o ornitorrinco
é essa coisa truncada. Ele produz
esse exército "informal" [de trabalhadores] e não dá para fazer
política assim. Fazer política sem
algo que estruture objetivamente
os interesses é tarefa de missionário. É preciso chamar de novo os
padres Nóbrega e Anchieta para
reevangelizar. Por que esses partidos de classe surgiram na esteira
de sindicatos? Porque é uma estrutura
material de interesse capaz de agregar.
São interesses que
agregam, do lado
dos capitalistas e
dos trabalhadores.
Quando essa estrutura material se
desintegra, fazer
política é coisa de
missionário. As
condições que formaram o PT não
existem mais. Existirão outras certamente, mas quais?
Ninguém sabe. Vai
ser feito por experimentação social. E
pode não dar em
nada. Vamos acabar com essa crença
automática no progresso. Pode não
dar em nada.
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