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Algodões entre a cruz e a espada
FREI BETTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Diálogos na Sombra - Bispos e
Militares, Tortura e Justiça Social
na Ditadura", de Kenneth P. Serbin, é uma obra imprescindível
para se compreender melhor a recente história do Brasil, em especial os 21 anos de regime militar.
Baseado em documentos inéditos, como os arquivos do general
Antônio Carlos da Silva Muricy, e
entrevistas com protagonistas, o
autor descreve a série de diálogos
secretos entre oficiais das Forças
Armadas e bispos da Igreja Católica de 1970 a 1974. A mediação
deu-se graças ao empenho de dois
leigos, os professores Candido
Mendes, da Comissão Pontifícia
de Justiça e Paz, e Tarcísio Padilha, da Escola Superior de Guerra.
Consentida pelo general Médici,
a Comissão Bipartite constituía-se do Grupo da Situação, liderado
pelo general Muricy, e do Grupo
Religioso, cuja liderança se dividia entre os bispos e primos Aloísio Lorscheider e Ivo Lorscheiter e
dom Eugenio Sales, arcebispo do
Rio. Como fórum de diálogo em
torno da conjuntura nacional, a
Bipartite evitou o choque frontal
e, talvez, a ruptura entre as duas
instituições mais sólidas do país: a
Igreja Católica e o Exército.
Serbin demonstra, com riqueza
de fatos e documentos, como os
dois grupos souberam valer-se do
"esprit de corps" para perseguir
seus próprios interesses. Os militares tentaram, em vão, neutralizar a ação da igreja em prol dos
direitos humanos e cooptar os
bispos para a sua cruzada anticomunista. Fraudando a confiança
de seus interlocutores, permitiram inclusive que os órgãos de segurança gravassem as reuniões.
Os representantes da igreja buscaram, num primeiro momento,
defender membros da instituição
eclesiástica da sanha repressiva.
Logo passaram à defesa de todos
aqueles que eram atingidos pelo
terror de Estado. Talvez não tenham livrado muitos prisioneiros
da tortura e da morte, mas com
certeza evitaram que a ferocidade
da ditadura se agravasse ainda
mais.
Por que o sigilo das conversações? Capitaneados pelo general
Muricy, os militares não queriam
que a iniciativa abortasse sob
pressão da linha-dura, que repudiava o diálogo com a igreja, considerada por ela um joguete do
movimento comunista internacional. O livro retrata a ambiguidade do general Muricy, que, de
um lado, reafirmava sua fidelidade à igreja, como católico que era,
e, de outro, lavava as mãos diante
de violações dos direitos humanos relatadas pelos bispos, sob o
pretexto de que a cúpula militar
perdera o controle do que se passava nos porões da ditadura, onde
o pau corria solto. Em raras ocasiões o general interveio em favor
das vítimas.
Os bispos concordaram com o
sigilo das conversações, temendo
que gestões tão delicadas viessem
a ser frustradas pela publicidade,
além de contarem com a desconfiança de alguns de seus pares, como dom Pedro Casaldáliga, vítima da repressão. O autor revela,
inclusive, que dom Luciano Cabral Duarte, arcebispo de Aracaju,
era informante das Forças Armadas (pág. 280).
Merece destaque, na exaustiva
pesquisa de Serbin, o resgate de
dom Eugenio Sales, que, ao contrário das aparências, foi tão combativo na defesa dos direitos humanos e das vítimas da ditadura
quanto dom Paulo Evaristo Arns
em São Paulo, embora preferisse
uma atuação mais discreta. E, pela
primeira vez, o público tem a
oportunidade de tomar conhecimento dos detalhes do escabroso
caso de Barra Mansa, onde quatro
soldados, em janeiro de 1972, foram torturados até a morte por
oficiais do Exército. Os criminosos foram condenados em janeiro
de 1973. Como sublinha o autor,
esse foi o único julgamento e a
única condenação de torturadores entre 1964 e o anúncio da anistia de 1979 (pág. 379).
"Diálogo nas Sombras" joga
ainda mais luz sobre as atrocidades perpetradas pelo regime militar devido à supressão da democracia em nosso país. Para nós,
brasileiros, conhecer a própria
história graças ao esforço de mais
um brasilianista norte-americano
é, no mínimo, constrangedor,
pois deixa no ar uma indagação: o
que fazem as nossas universidades e centros de pesquisa? Por que
produzem tão escassa bibliografia
sobre os anos de chumbo?
Talvez quando todos os protagonistas e testemunhas estiverem
mortos a universidade brasileira
venha a se debruçar sobre o tema
com o mesmo empenho com que
hoje se dedica à escravatura. Mas
terá de pagar vergonhoso tributo
à excelência de trabalhos estrangeiros, como essa obra de Kenneth P. Serbin.
Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei
Betto, frade dominicano, é escritor, autor de "Batismo de Sangue" (Casa Amarela), entre outros livros.
DIÁLOGOS NA SOMBRA - BISPOS E
MILITARES, TORTURA E JUSTIÇA
SOCIAL NA DITADURA
Autor: Kenneth P. Serbin
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 632
Preço: R$ 46,00
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