São Paulo, Terça-feira, 23 de Fevereiro de 1999
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LEIA A ÍNTEGRA DA MENSAGEM DE FHC NA POSSE DO CONGRESSO
Senhores Membros do Congresso Nacional:
Governar é enfrentar desafios, muito mais que lidar com problemas de rotina. Temos diante de nós um desses desafios que marca a diferença entre o papel do governante e o do mero administrador rotineiro.
Cabe-nos neste momento -aos senhores Congressistas e ao presidente da República, na esfera das nossas respectivas atribuições- a responsabilidade de conduzir o Brasil a um destino seguro através da turbulência desencadeada pela crise financeira internacional. A missão é desafiadora em vista do ineditismo da crise -a primeira a propagar suas ondas de choque ao redor do planeta instantaneamente, na velocidade da informação "em tempo real", testando duramente a capacidade de reação dos Estados nacionais e expondo a insuficiência de mecanismos multilaterais de regulação, criados numa outra época, anterior à globalização dos mercados. Nossa responsabilidade é grave pelo que está em jogo nesse desafio: não apenas o valor da moeda e a estabilidade da economia, mas as perspectivas de desenvolvimento do Brasil e de realização das aspirações de bem-estar do nosso povo na era da globalização.
A ocasião é, portanto, de regozijo pela vitalidade das nossas instituições representativas, cujo ciclo de renovação eleitoral se completa com o inicio dos trabalhos desta 51ª legislatura. Mas é principalmente de reafirmação do nosso compromisso com os objetivos fundamentais do país e de reflexão sobre as decisões a tomar para que continuemos avançando no rumo desses objetivos.
Desde a eclosão da crise financeira no Sudeste Asiático, em meados de 1997, o Brasil luta para manter uma trajetória de crescimento com estabilidade sob condições externas adversas.
As perdas sofridas por investidores europeus e norte-americanos nas Bolsas asiáticas geraram um clima de desconfiança em relação aos mercados emergentes em geral. A ansiedade foi ao máximo em agosto de 1998, quando a Rússia declarou moratória da sua divida externa e desvalorizou o rublo, impondo perdas ainda mais pesadas aos investidores. A corrida para cobrir perdas e trocar posições nos mercados emergentes por ativos mais seguros fez cair muito a cotação dos títulos da divida externa brasileira. Criou-se assim a impressão de que a situação do Brasil seria tão ruim quanto a da Rússia.
Nos mercados globalizados, a velocidade da informação excede em muito a capacidade de interpretação dos agentes econômicos. O Brasil foi, em alguma medida, vítima desse descompasso. Premidos pelas expectativas de curtíssimo prazo, os investidores ignoraram características que diferenciam positivamente o Brasil de outros mercados emergentes. O vigor da nossa democracia, a condução da política econômica pautada pela transparência da informação e pelo respeito às relações contratuais, o avanço consistente das reformas econômicas, a solidez do sistema financeiro -tudo isso se perdeu de vista no clima de pânico instaurado a partir da moratória russa. Em conseqüência, intensificaram-se as saídas de capital do país, forçando o Banco Central a elevar a taxa de juros e a vender reservas cambiais para defender o Real.
Apontar a irracionalidade das reações defensivas dos investidores não implica, contudo, negar qualquer fundamento objetivo para a deterioração das expectativas sobre o Brasil. Tal fundamento reside, como sabemos, no desequilíbrio persistente das nossas contas públicas. Em setembro de 1998, às vésperas da eleição presidencial, falei disso mais uma vez ao país, alertando para a dureza do ajuste interno que deveríamos proceder a fim de superar decididamente a turbulência externa. Disse naquela ocasião:
"Há anos o Brasil luta contra o déficit público, mas apenas no período recente conseguimos progredir a ponto de vencer a inflação, que mascarava o real significado do déficit. Para consolidar a estabilidade e retomar o desenvolvimento, é preciso avançar mais, e a crise internacional apenas fez com que a necessidade do equilíbrio nas nossas contas públicas se tornasse mais urgente".
"Eu tenho a convicção de que nenhuma crise externa será capaz de nos derrotar. Nosso destino esta em nossas mãos, como sempre esteve".
"O principal problema é simples: o Estado não tem sido capaz de viver no limite de seus próprios meios. E por isso não cumpre o seu papei no processo de desenvolvimento brasileiro e fragiliza a nossa economia".
"Os governos federal, estaduais e municipais têm tido dificuldades em restringir seus gastos totais ao que as suas receitas lhes permitem. Por isso não atendem apropriadamente a seus cidadãos e sobrecarregam a economia privada".
E adiante, no mesmo discurso:
"Como gastamos mais do que arrecadamos, tomamos emprestada parte da poupança do setor privado, e nem assim foi suficiente para todos os investimentos que fizemos".
"O país teve que recorrer à poupança do exterior. E esta é limitada por dois motivos. Primeiro, porque, se dependemos muito da poupança externa, surgem dúvidas sobre nossa capacidade de geração de recursos em moeda estrangeira suficientes para honrar os compromissos financeiros que assumimos ao utilizar essa poupança. Segundo, porque, dada a gravidade do atual contexto internacional, a disponibilidade de poupança externa será relativamente menor de agora em diante. Para crescermos de forma sustentada, teremos que elevar mais rapidamente nossa capacidade interna de poupar. Isso significa, essencialmente, eliminar a poupança negativa do setor público através de um rápido e decidido ajuste das contas públicas. Qualquer vulnerabilidade que possamos ter a eventos do exterior fica diminuída se o Brasil eleva sua capacidade de poupança. Se aumentarmos nossa capacidade de poupar, aumentaremos os recursos disponíveis para construir nosso futuro".
Em consonância com a visão expressa acima, o governo determinou cortes adicionais de seus gastos de custeio e investimento no último quadrimestre de 1998 e criou uma Comissão de Controle Fiscal, incumbida de assegurar a estrita observância dos limites estabelecidos. Em novembro foi anunciado o Programa de Estabilidade Fiscal para o triênio 1999-2001, com metas de superávit primário destinadas a estancar o crescimento da divida pública em relação ao PIB. Assim, o Brasil atacava incisivamente a principal causa da sua vulnerabilidade à crise externa, desenhando para si mesmo um horizonte claro de estabilidade no médio prazo.
Simultaneamente, negociávamos com o Fundo Monetário Internacional um acordo que nos dana acesso a créditos daquela instituição, do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e dos países do G-7, no montante de US$ 42 bilhões, reforçando nossas reservas cambiais para fazer face à volatilidade dos mercados no curto prazo.
A boa acolhida do programa de ajuste pelo Congresso Nacional e o respaldo internacional ao Brasil tiveram efeito positivo sobre as expectativas. O fluxo de capitais para o país melhorou em outubro e novembro, permitindo um recuo das taxas de juros.
Em dezembro, no entanto, um item do programa de ajuste -a medida provisória referente à contribuição previdenciária dos servidores federais- foi rejeitado pelo Congresso. Somou-se a isso a percepção de que haveria atraso na tramitação de outro projeto fundamental para o ajuste, a prorrogação e aumento de alíquota da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira.
Em janeiro, o Estado de Minas Gerais declarou moratória de noventa dias dos seus compromissos com o governo federal e levantou dúvidas sobre o pagamento, na data contratual, de prestação relativa a empréstimos externos.
Tudo isso gerou incerteza sobre a capacidade do Brasil de assegurar o cumprimento das metas de ajuste fiscal; revertendo as expectativas favoráveis dos investidores nacionais e estrangeiros. Em conseqüência, as saídas de capital tornaram a se intensificar de maneira preocupante.
Os impactos sucessivos das crises asiática e russa, ao restringir o acesso do Brasil a poupança externa, eliminaram a margem para 3 gradualismo na condução da política fiscal, levando-nos a enfrentar os sacrifícios decorrentes de um processo muito mais rápido de ajuste.
A terceira onda de crise, desta vez desencadeada pelos acontecimentos políticos internos, tirou-nos a possibilidade de gradualismo na política cambial.
De fato, a política de desvalorização gradual do real implementada desde 1993 vinha corrigindo paulatinamente o desequilíbrio criado nos primeiros meses do Plano Real. Em 1997 e 1998, a depreciação real da moeda brasileira em relação ao dólar foi de mais de 13%. Combinado aos esforços de redução do "custo Brasil" e de incremento da competitividade da indústria nacional, o realinhamento do câmbio vinha proporcionando, desde o segundo semestre de 1997, uma evolução positiva do comércio exterior brasileiro, com desaceleração das importações e crescimento das exportações. No primeiro semestre de 1998, antes que as repercussões da crise russa revertessem a curva ascendente do comércio mundial, as exportações brasileiras de manufaturados cresceram nada menos que 14%.
O fluxo de investimentos diretos, por seu lado, manteve-se firme, mesmo nos momentos mais críticos da crise financeira, fechando o ano de 1998 em US$ 26 bilhões, o valor mais alto da história. Em dezembro de 1998, esses investimentos financiaram 75% do déficit em conta corrente, contra apenas 51% em dezembro de 1997 e 41% em dezembro de 1996. Com isso a necessidade de financiamento externo do Brasil no ano passado ficou em 1,1% do PIB, o nível mais baixo desde agosto de 1996.
Fica claro, desse modo, que o que abala a confiança do mundo na economia brasileira não é basicamente o desequilíbrio externo, já que medidas para solucionar os problemas existentes estavam em curso e os resultados favoráveis começavam a aparecer. O que fragiliza a posição do Brasil aos olhos do mundo -e dos próprios investidores brasileiros- é o desequilíbrio interno representado pelo déficit das contas públicas. Por isso as dúvidas sobre a viabilidade das metas de ajuste fiscal anunciadas pelo governo impactaram tão negativamente as expectativas dos agentes econômicos.
Em dezembro de 1998, US$ 12 bilhões deixaram o Brasil, quase o triplo dos dois meses anteriores. Na primeira semana de janeiro, as saídas chegaram a cerca de US$ 1 bilhão. O mercado voltava a apostar contra o Real, como havia feito no auge da crise russa, em agosto e setembro.
A simples flexibilização da política cambial, com o alargamento da banda de variação definida pelo Banco Central. não foi suficiente para reverter esse movimento. Em três dias, a partir de 12 janeiro, o Brasil perdeu nada menos de US$ 4 bilhões.
Manter o regime de bandas, a essa altura, importaria em continuar vendendo dólares para alimentar uma corrida francamente especulativa, comprometendo o nível mínimo de reservas cambiais necessário para garantir o pagamento das importações e dos compromissos financeiros de médio e longo prazo do país.
Em suma, o mundo não nos dava mais tempo para o gradualismo, nem na política fiscal, nem na política cambial.
Diante disso, no dia 15 de janeiro, o governo optou por liberar o câmbio, de forma a deixar que as forças de mercado atuassem e gerassem, por elas mesmas, um novo preço de equilíbrio. A liberação do câmbio alivia a pressão sobre nossas reservas e deve, num prazo relativamente curto, abrir espaço para a melhora substancial do desempenho das exportações e a redução das taxas de juros. Mas é claro que a mudança da política cambial não tem por si mesma o condão de resolver os problemas econômicos básicos do Brasil. Ao contrário, a cotação do dólar contida dentro do regime de bandas funcionava como um amortecedor para as asperezas do caminho no processo das reformas estruturais do país. Daqui por diante, a livre flutuação do câmbio irá refletir muito mais duramente a volatilidade das expectativas assim como as dificuldades do lado real da nossa economia.
Tanto a defesa do que o Brasil já conquistou -a estabilidade da moeda como a possibilidade de avançar na direção daquilo que almejamos para o país; a aceleração do crescimento com efetiva distribuição de renda- dependerão, na verdade, da nossa disposição de atacar os problemas estruturais frontalmente, incisivamente, com medidas que não apenas apontem na direção correta, mas que tenham resultados imediatos.
Dai minha insistência em acelerar o ajuste fiscal, enfrentando de uma vez por todas as opções e sacrifícios necessários para fazer do Estado brasileiro, não um peso, mas uma alavanca para a sociedade na construção de um país mais próspero e justo.
Apraz-me constatar que essa insistência -reforçada pela percepção generalizada da gravidade da crise- teve eco na sociedade e, como não poderia deixar de ser, em sua representação política, a começar por essa Casa.
Durante a convocação extraordinária de janeiro, o Congresso Nacional retomou a pleno vapor a votação das medidas relativas ao Programa de Estabilidade Fiscal. O Senado Federal aprovou em dois turnos a proposta de emenda constitucional sobre a CPMF. Na Câmara dos Deputados, uma comissão informal designada pelos líderes da maioria reformulou, aprimorando-a, a proposta do governo sobre a contribuição previdenciária dos servidores federais; essa matéria espinhosa pode, assim, voltar ao plenário em condições de ser aprovada, como foi, por ampla maioria. A Comissão de Orçamento, sem abrir mão de sua competência de revisar o projeto do Executivo, submeteu à deliberação final do Congresso uma Lei de Meios que preserva a meta de superávit primário prevista no programa de ajuste para 1999.
A imagem do plenário da Câmara dos Deputados repleto, perto da meia-noite do último dia da convocação extraordinária, completando a votação de projetos fundamentais para a implementação da reforma administrativa, ficará na memória política do país como uma despedida à altura do formidável saldo de realizações da legislatura anterior. A ela rendo mais uma vez minhas homenagens, na pessoa dos residentes de ambas as Casas ao longo do quadriênio, dos líderes e de todos e cada um dos seus membros.
Senhores congressistas,
A adversidade nos uniu, não dispersou. Reforçou a coesão do Governo e sua base parlamentar, possibilitando a esplendida demonstração de força da maioria na convocação extraordinária. A minoria, de sua parte, deu mostras de compreensão diante da gravidade do momento, exercendo seu papel de crítica e oposição com um comedimento que também não quero deixar de registrar.
A presente legislatura inicia seus trabalhos, assim, sob o signo da apreensão com a conjuntura financeira, mas também da confiança em nossas instituições políticas, que mais uma vez mostraram-se capazes de proporcionar ao Brasil a governabilidade necessária para vencer turbulências passageiras, mesmo que intensas.
Sofremos um abalo, mas não perdemos o rumo nem a capacidade de ajustá-lo aos acidentes do percurso. A democracia nos dá a régua e o compasso. O norte, a bússola é o projeto de país para o qual convergem as aspirações da nossa geração. Mais que nunca, é hora de reafirmar nossa confiança no Brasil e nesse projeto, para que nossa marcha não se acelere apenas pelo temor da crise em nossos calcanhares, e sim pela visão inspiradora do futuro diante de nós.
Queremos um país com moeda estável, não apenas por razões de eficiência econômica, mas como uma afirmação de cidadania e uma expressão da própria soberania nacional. Por isso não admitiremos a volta da espiral inflacionária. Tomaremos todas as medidas necessárias para defender o poder de compra da população. Isso inclui, desde logo, uma política monetária rigorosa até que a cotação do real encontre seu ponto de equilíbrio dentro da nova realidade do câmbio flutuante, e o repúdio decidido a volta de qualquer forma de indexação de preços e salários.
O Congresso Nacional, com as decisões que tomou no final da legislatura passada, deu um passo enorme no sentido de consolidar o fundamento fiscal da estabilidade. Das medidas legislativas previstas no programa de ajuste, falta aprovar apenas a CPMF na Câmara, o que deve ser antecipado graças à autoconvocação do Congresso no mês de fevereiro.
O Executivo. de sua parte, cumpriu rigorosamente as metas de corte de gastos e geração de superávit primário em 1998, e começa a perseguir com o mesmo rigor as metas previstas para o exercício de 1999
Na pauta do Congresso, neste início de sessão legislativa, estão ainda os projetos de regulamentação da reforma administrativa, fundamentais para que os Estados, principalmente, possam dar sua cota de contribuição ao esforço de ajuste do setor público como um todo.
Nunca foi nem é propósito do meu governo alcançar o equilíbrio das contas da União à custa do estrangulamento financeiro dos Estados. Ao contrário, toda a minha ação, desde que ocupei o Ministério da Fazenda e depois, como presidente da República, foi no sentido de aliviar os Estados do peso do endividamento excessivo a que muitos foram levados pela irresponsabilidade fiscal de administrações passadas.
Nesse mesmo espirito, estarei sempre aberto à discussão de alternativas que viabilizem o melhor desempenho dos Estados em beneficio do atendimento da população e do desenvolvimento equilibrado do país. Alternativas que a meu ver não podem deixar de contemplar a redução dos gastos estaduais com servidores ativos e inativos, de acordo com os prazos e limites da Lei Rita Camata.
Com o respaldo do Congresso, o empenho do governo federal, a participação dos Estados e o apoio da opinião pública -cada vez mais atenta aos efeitos perniciosos do descontrole dos gastos nos diferentes níveis de governo- faremos de 1999 o ano da virada no combate ao déficit público e de consolidação definitiva da estabilidade inaugurada pelo Plano Real. Será um ano de fortes restrições econômicas e orçamentárias. Nem por isso deixaremos de trabalhar, desde já, com vistas a outros objetivos fundamentais, além da estabilidade.
Queremos um país com níveis de desenvolvimento à altura do seu potencial e das necessidades do nosso povo. As transformações dos últimos quatro anos -as reformas estruturais da economia, incluindo as privatizações, a retomada dos investimentos em infra-estrutura, a recuperação da capacidade de atuação dos bancos federais, o saneamento do sistema bancário privado, os avanços na educação e na qualificação de mão-de-obra- prepararam o Brasil para uma nova arrancada de desenvolvimento. Temos tudo para crescer e vamos voltar a crescer a taxas expressivas, na medida em que a consolidação do ajuste fiscal nos permita superar decididamente a turbulência financeira do momento e reduzir as taxas de juros.
Contido o impacto inflacionário da desvalorização cambial, a nova relação entre preços internos e externos deve, em curto prazo, frear as importações abrir espaço para a aceleração das nossas exportações, com repercussão positiva sabre o nível de emprego doméstico. Vamos ocupar esse espaço contando com os patamares de qualidade e produtividade já alcançados pela indústria nacional -incluindo o agronegócio- e com uma articulação mais eficaz do governo com o setor privado.
Tal será a missão do Ministério do Desenvolvimento, sob cuja coordenação direta ou indireta reuni alguns dos principais instrumentos oficiais de apoio à produção ao comércio. A expressão "política industrial" já foi usada no Brasil como eufemismo para proteção estatal a empresas -grandes empresas, invariavelmente- e setores específicos da economia. Na pauta do Ministério do Desenvolvimento está algo inteiramente diferente disso: a identificação e aproveitamento das oportunidades de emprego dos recursos produtivos nacionais ao longo das cadeias produtivas globalizadas, envolvendo nesse processo desde as pequenas empresas até os grandes conglomerados.
Num mundo em que as cadeias produtivas entrecruzam fronteiras, articulando fornecedores de materiais, componentes e serviços ao redor do planeta, industrialização decididamente não rima com protecionismo. Em contrapartida, política de produção e política de comércio exterior se tornam, nesse novo contexto, faces da mesma moeda. O desafio de tornar o Brasil um dos grandes países exportadores do mundo impõe, por isso, além da elevação dos níveis de qualidade e produtividade da indústria nacional, uma ação agressiva de promoção comercial e de combate às barreiras protecionistas e a práticas desleais de comércio de outros países. A pauta do Ministério do Desenvolvimento inclui uma articulação crescente das iniciativas do governo e do setor privado também nesse plano.
As restrições do momento não nos impedirão de avançar também em relação a outro requisito básico do novo ciclo de desenvolvimento -a reforma tributária, que deve garantir a simplificação e a desoneração da atividade produtiva e das exportações. Reafirmo o interesse do governo em contribuir, junto ao Congresso Nacional, para o equacionamento definitivo dessa questão em 1999.
Desoneração tributária, câmbio mais favorável, uso mais eficaz dos instrumentos oficiais de apoio à produção e uma política comercial mais agressiva farão do setor exportador a ponta-de-lança da retomada do nosso crescimento.
Ainda assim, os próximos meses serão de sacrifício. Ao dizê-lo, tenho plena noção do peso da palavra: sacrifício, não só para o governo e as empresas, mas para as pessoas.
O Brasil que queremos -aquele com cuja construção eu tenho um compromisso de vida- e um país onde estabilidade e crescimento econômico não são fins em si mesmos, mas meios para a melhoria das condições de vida do povo.
Por isso é para mim doloroso -é inaceitável- pensar que o custo da turbulência externa e o do ajuste interno irão pesar de maneira desproporcional sobre os mais pobres, especialmente aqueles que a partir do Plano Real tiveram acesso pela primeira vez aos benefícios mais elementares do desenvolvimento.
Não foi por outra razão que me empenhei obstinadamente a favor de uma medida controvertida, como o aumento da contribuição dos servidores federais ativos e inativos para a sua própria previdência. Foi por estar consciente de que manter intocadas as vantagens de algumas centenas de milhares de aposentados e pensionistas da União acabaria por agravar o sacrifício de 150 milhões de brasileiros que pagam, a maioria sem ao menos saber, o déficit gigantesco desse sistema.
A hora é, mais que nunca, de equidade na distribuição dos custos e benefícios da ação do governo, e de solidariedade para amenizar o impacto da crise sobre as camadas mais indefesas da população.
Reitero a orientação que transmiti aos meus ministros na primeira reunião deste novo período de governo: gastar menos, dentro das restrições orçamentárias, não quer dizer fazer menos, mas fazer mais com os mesmos recursos.
Existe um enorme espaço para a melhora da eficácia aos gastos, tanto na administração federal como nos Estados e municípios. As reformas constitucionais já aprovadas pelo Congresso permitem corrigir algumas das distorções mais graves que faziam o dinheiro público se esvair pelos ralos da ineficiência, do desperdício e da iniquidade. Cabe agora avançar sobre o terreno aberto, levando a cabo uma verdadeira revolução gerencial nos serviços públicos, notadamente na área social. Esta será a tônica da ação do governo federal nos próximos quatro anos.
Melhora da eficácia do gasto social, num país com as dimensões e a heterogeneidade do Brasil, é sinônimo de descentralização. A Constituição de 1988 avançou consideravelmente na descentralização das receitas, sem no entanto definir com suficiente nitidez a divisão das competências entre os três níveis de governo. Passos importantes foram dados nesse sentido, nos últimos quatro anos, nas áreas de educação -através do fundo de apoio ao ensino fundamental- e da saúde -com uma nova sistemática de repasse das verbas federais aos Estados e municípios.
Uma rediscussão das bases fiscais do pacto federativo me parece oportuna, a esta altura, para que se coloquem em perspectiva os avanços e percalços das duas faces do processo de descentralização -a repartição das receitas e a divisão das competências. Pondo em evidência também, como não poderia deixar de ser, as questões fundamentais relativas a equidade e à qualidade dos gastos em cada unidade da federação, nos diferentes níveis de governo.
Se o vigor da nossa democracia nos permite enfrentar as águas revoltas da crise financeira sem perder de vista nossos objetivos maiores de desenvolvimento e justiça social, fanamos bem em reservar algo das nossas energias, neste ano de 1999, para aprimorar a moldura institucional dessa mesma democracia.
Com efeito, se podemos nos orgulhar da regularidade e transparência das nossas eleições, a porcentagem declinante de votos válidos para deputado é sintoma do anacronismo de um sistema proporcional inaugurado há mais de meio século, para colégios eleitorais que não ultrapassavam, nos maiores Estados, a poucas centenas de milhares de votantes. Se temos uma sociedade crescentemente organizada e participativa e partidos bem estruturados nacionalmente, a coesão partidária é frouxa, fragilizando o processo decisório nas casas legislativas. Se contamos com um Judiciário independente e uma cidadania cada vez mais consciente, a morosidade dos processos congestiona os tribunais e desalenta os que buscam a garantia de seus direitos.
Há remédio para quase todas essas deficiências em projetos já submetidos ao Congresso Nacional. Entendo que não cabe ao presidente da República, em matérias de cunho eminentemente institucional, o mesmo grau de iniciativa que assume usualmente nos campos econômico, fiscal ou de políticas sociais. Isto não me impedirá de encorajar a apreciação desses projetos pelo Legislativo, para que 1999 seja também um ano de avanços significativos nas reformas políticas.
Senhores congressistas,
Um grande país se forja com grandes desafios. O da presente turbulência financeira não e nem de longe o maior que minha geração viu o Brasil enfrentar e vencer. Repito com plena convicção: nosso destino está em nossas mãos, e depende muito mais do encaminhamento político que dermos à solução dos nossos problemas estruturais -que são seculares- do que da variação dos humores do mercado.
Tenho consciência do muito que realizamos até aqui. Não a pessoa do presidente da República, que sozinho pode pouco, mas o conjunto de forças sociais e políticas reunidas em torno de um projeto claro de transformação do nosso país.
Confio na consistência desse projeto e no senso de responsabilidade daqueles que compartilham comigo o encargo de liderar o país no rumo apontado por ele. Confio na garra do nosso povo, que é maior do que todas as crises. Por isso me apresento à luta com todo o meu entusiasmo, certo de que o Brasil sairá desta turbulência mais forte do que entrou, queimando etapas no processo da sua transformação.
Com esse espirito, desejo todo êxito aos senhores congressistas na legislatura que hoje inicia seus trabalhos.
Brasília, 22 de fevereiro de 1999; Fernando Henrique Cardoso; presidente da República


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