São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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NO PLANALTO

Prejuízo anual de R$ 15 bilhões ronda o erário

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O brasileiro já se habituou a conviver com o flagelo das leis que, como vacinas mal aplicadas, não pegam. Nascem mortas. Aqui se revelará história diferente. O caso de uma lei que, tendo morrido há duas décadas, continua cheia de vida.
O velório deveria ter ocorrido em 83. Mas vem sendo procrastinado pelo Judiciário. Insepulto, o cadáver legal assedia cotidianamente os cofres de Brasília. Tem potencial para produzir estrago bilionário. Coisa de US$ 5 bilhões por ano. Mais de R$ 15 bilhões, em moeda tapuia.
Estamos falando da lei 491. É de 5 de março de 69. Nasceu de um decreto-lei, como era chamado o avô fardado das atuais medidas provisórias. O texto criou um estímulo financeiro às empresas exportadoras. Chama-se crédito-prêmio de IPI.
O benefício é calculado aplicando-se um percentual (no máximo 15%) sobre o valor das exportações. Para cada US$ 100 em mercadorias vendidas no exterior, o exportador belisca um mimo de US$ 15 do governo.
Na década de 70, os exportadores brasileiros foram acusados de concorrência desleal. Países como os EUA enxergaram no prêmio oficial um subsídio disfarçado.
O Brasil foi denunciado no Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio). É uma espécie de antepassado da OMC (Organização Mundial do Comércio).
Para evitar retaliações, Brasília baixou, em 79, outro decreto-lei (1.658). Marcou para 30 de junho de 83 a morte do crédito-prêmio do IPI.
A concorrência estrangeira não se deu por achada. Os EUA sobretaxaram produtos como calçados e fios de algodão do Brasil. Premido, o governo baixou, em 79 e 81, novos decretos-leis (1.724 e 1.894).
Em essência, delegaram poderes ao ministro da Fazenda para baixar ou elevar o valor do prêmio à exportação. Afeiçoados à vitamina monetária, os exportadores foram à Justiça. O tema subiu ao STF.
Em novembro de 2001, o Supremo decidiu que era inconstitucional a delegação atribuída ao titular da pasta da Fazenda. Os ministros do STF silenciaram sobre o agendamento do velório do crédito prêmio do IPI.
Manteve-se a data do enterro: 30 de junho de 83. Os exportadores, porém, lançaram mão de uma esperteza. Difundiram a tese de que o silêncio do Supremo teria perenizado o prêmio. Brasília não engoliu a astúcia.
Aferrada à letra da lei, a Receita Federal deixou de reconhecer o prêmio aos exportadores desde 83. Instalou-se a confusão jurídica. A Justiça recebeu uma enxurrada de ações.
Reivindicam o pagamento do prêmio defunto. As demandas fazem a festa de bancas de advocacia tributária. Só em Alagoas, o governo amargou derrotas que ultrapassam a casa dos R$ 750 milhões. Num único caso que teve origem em São Paulo, o fisco levou tombo de R$ 900 milhões. Noutra causa, que tramitou em Brasília, perdeu R$ 1 bilhão.
Responsável pela defesa do erário, a Procuradoria da Fazenda Nacional dormiu no ponto. Ao acordar, deu pela existência de um milionário mercado paralelo de prêmios de exportação.
Negociam-se créditos obtidos na Justiça com deságio de até 70%. Comprado a preço de banana por devedores contumazes do fisco, o papelório é usado para abater dívidas tributárias.
Algumas das sentenças desfavoráveis ao governo foram revertidas em tribunais regionais, sediados nos Estados. Mas vêm sendo sistematicamente revitalizadas no STJ (Superior Tribunal de Justiça).
O procurador fazendário Francisco Tadeu Barbosa de Alencar acompanha há anos a sangria silenciosa imposta às arcas do Tesouro. Trabalhava em Recife. Sob Lula, foi transferido para Brasília. Ocupa o cargo de procurador-geral-adjunto da Fazenda Nacional.
Há 15 dias, Tadeu Alencar enviou ao STJ um memorial de 26 páginas. Em esforço quase solitário, tenta convencer o tribunal a estancar a seqüência de decisões em prol dos exportadores. Decisões que, mantidas, virarão jurisprudência (interpretação judicial reiterada).
Tadeu Alencar aproveita-se do julgamento de uma causa movida pela empresa gaúcha Icotron S.A. Exporta componentes eletrônicos.
Em seu memorial, o procurador avisa aos juízes do STJ que, reconhecido o direito ao prêmio à exportação, "os cofres públicos haverão de suportar um prejuízo estimado em US$ 5 bilhões por ano". Em 2002, anotou, as exportações brasileiras somaram US$ 50 bilhões.
Submetida a uma das turmas do STJ, a análise do caso Icotron foi interrompida no instante em que dois juízes votaram contra as pretensões da empresa. Um terceiro juiz pediu vista do processo, adiando o veredicto.
O julgamento deve ser retomado nesta semana. São enormes as chances de derrota do governo.
Insaciável em seu furor arrecadatório, a Fazenda festejou no mês passado recorde histórico de arrecadação de tributos. A coleta rendeu R$ 27,266 bilhões.
Nunca se havia arrecadado tanto num mês de abril. Só o IR das pessoas físicas aumentou 12,08%. Em contraste, a cúpula da Fazenda exibe notável falta de apetite para a cobrança de grandes devedores inadimplentes. Mantém-se alheia a desastres como o do prêmio aos exportadores.
Não é à toa que foi ao lixo o compromisso do ex-PT de não aumentar a carga tributária nacional.


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