São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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NO PLANALTO

Filantrópica compra consultoria financeira em casa de ferragens

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Iva Júnior Ltda. é uma microempresa de Campinas (SP). Casa de comércio de arames, canos, enxadas, pás, alicates, serrotes e congêneres. Descolou no Sul um cliente inusitado: Universidade de Passo Fundo (RS) -faturamento anual de R$ 100 milhões, uma das 300 maiores filantrópicas do país.
A escola foi ao varejista porque desejava obter um empréstimo de US$ 20 milhões no exterior. Como dinheiro não é coisa que nasça em meio às ferragens, poder-se-ia imaginar que a universidade gaúcha buscasse em Campinas, digamos, um pé-de-cabra.
Não se encontrou, porém, pista que levasse a um plano de investida impetuosa aos cofres da banca internacional. As notas fiscais levadas aos arquivos da filantrópica informam, de resto, que a entidade comprou da Iva Júnior Ltda. algo impalpável: "consultoria técnica financeira".
Entre viagens ao exterior e supostas cauções bancárias, a transação sorveu dos cofres da universidade R$ 453.755,59. Deu-se entre 1998 e 2000. Não há, por ora, nenhum vestígio do pretendido empréstimo.
Antônio Mendes Vinagre, sócio da Iva Júnior, reconhece que sua firma não opera no ramo financeiro. Num primeiro contato, valeu-se de rara franqueza: "Sei que minha empresa não fica bem, ninguém fica bem". Pediu tempo.
Discou horas depois para o repórter. Disse ter conversado com seus contatos no exterior. Os US$ 20 milhões só não vieram porque a universidade se desinteressou. O nome do banco? Não pode dizer. "Preciso que me autorizem por escrito."
A filantrópica de Passo Fundo serviu-se dos préstimos de outros personagens pouco afeitos ao mundo da alta finança. Entre eles Carlos Roberto Randi, ex-dono de uma escola de artes e música, e seu parceiro Rubens Esteves Martins Novaes, ambos de São Paulo. Foram contratados também para intermediar o empréstimo de US$ 20 milhões no exterior.
O novo esforço custou aos cofres da universidade mais R$ 512.817,00. Desse total, o desembolso mais polpudo sangrou os cofres da escola em 8 de maio de 2000: R$ 400.680,00, o equivalente na época a US$ 200 mil. Serviria como adiantamento da suposta operação de crédito. Em caso de insucesso, seria devolvido em 60 dias. Nem veio o empréstimo nem voltou a grana.
Para comprovar a suposta despesa, espetou-se na contabilidade da escola um recibo da empresa americana Investicorp, Inc, que teria intermediado a operação desde Miami. Assina-o Otto Neustadtl. Está datado de 17 de março de 2000.
O repórter foi à internet. Descobriu que a Investicorp, Inc figura nos arquivos do governo da Flórida como uma firma "inativa" desde 11 de setembro de 1999, seis meses antes da emissão do recibo.
Alcançado pelo celular, Carlos Randi esquivou-se. "Não tenho nada a ver com isso". Apertado, atalhou o diálogo: "Você pode me ligar dentro de 15 minutinhos?" Feita a nova ligação, uma voz diferente veio ao aparelho.
Identificou-se como Rogério Souza, "advogado" de Carlos Randi. Explicou que seu cliente "apenas apresentou Rubens Novaes ao pessoal da universidade". Algo que não condiz com o contrato e os lançamentos associados ao nome de Randi na escrituração da Universidade de Passo Fundo.
Auditoria externa encomendada pela própria filantrópica apresenta Randi e seu parceiro Rubens Novaes como donos de vistosos prontuários. Randi tem seu nome associado a processos por estelionato, contrabando e sonegação fiscal. Novaes, à falsidade ideológica, uso de documento falso e contrabando.
"Cuido das áreas trabalhista e cível. Os processos criminais são com outro advogado", disse Rogério Souza. Chama-se João Carlos Martins Falcato o outro advogado. Disse que só poderia tratar do assunto depois de conversar com Carlos Randi. Rubens Novaes não foi localizado.
Pelo lado da Universidade de Passo Fundo, os entendimentos para a obtenção de crédito no exterior foram conduzidos pelo ex-vice-reitor administrativo Lourivan Fisch de Figueiredo. Deixou a escola faz nove meses. Na quarta-feira, saíra em viagem. Sua secretária ficou de contatá-lo. Não discou de volta.
O vice-reitor Lourivan foi assessorado por José Osmar Teixeira, ainda hoje procurador-geral da escola. "Não tenho nada a dizer sobre esse assunto", limitou-se a declarar.
Outro personagem, Ilmo Santos, reitor da universidade até o mês que vem, assinava os cheques junto com o vice-reitor administrativo. Tudo somado, incluindo viagens a Londres, Canadá, Miami, Uruguai e até ao paraíso de Nassau, gastou-se R$ 1,250 milhão. "Esses assuntos eram conduzidos por ele [Lourivan Figueiredo"", alegou Ilmo. Segundo disse, é preciso levar em conta que "serviços foram efetivamente prestados".
Detalhes da aventura financeira aqui narrada constam de relatório de auditoria encomendado pela Fundação Universidade de Passo Fundo, entidade mantenedora da filantrópica gaúcha. Seu presidente, Paulo Ference, diz estar empenhado em recuperar parte do dinheiro gasto.
Segundo Ference, o conselho da fundação sabia do esforço para obter o empréstimo, mas não conhecia os detalhes das negociações. Feita a auditoria externa, tomaram-se as providências, entre elas uma comunicação ao Ministério Público. Ele classifica o problema como "pontual".
O CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social) começou a analisar na última quinta-feira um pedido de renovação do certificado filantrópico da Universidade de Passo Fundo. O INSS é contra. Acusa a entidade de não aplicar 20% de seu faturamento em benemerência, como determina a legislação que rege as filantrópicas, beneficiadas com isenção de tributos. A escola contesta. Preferiu, neste caso, recorrer a bons advogados, não a vendedores de ferragens.



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