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São Paulo, segunda-feira, 23 de junho de 2003

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CONFLITO AGRÁRIO

Para José de Souza Martins, especialista em questões fundiárias, Lula terá de resolver divergências no governo

Duplo comando trava reforma, diz sociólogo

Matuiti Mayezo - 20.jun.03/Folha Imagem
José de Souza Martins, que é autor de obras sobre reforma agrária e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP


VINICIUS MOTA
DA REPORTAGEM LOCAL

A agenda da reforma agrária não está esgotada nem vai exaurir-se tão cedo no Brasil, na opinião do sociólogo José de Souza Martins, referência obrigatória nos estudos sobre campesinato e questão fundiária no país.
Em entrevista à Folha, ele disse que a reforma deve ser encarada como processo cíclico "que resulta de contínua interferência regulamentadora no regime de propriedade e desconcentradora da propriedade concentrada".
Martins não julga possível, como pretendem algumas organizações -o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) entre eles-, que a política para a reforma agrária caminhe na direção de um processo de assentamentos maciços.
"Anular na lei ou na prática o direito de propriedade e a necessária segurança que ele dá ao empreendedor rural seria tentar fazer uma revolução social sem mandato nem legitimidade", diz.
De acordo com Martins, o fato de Luiz Inácio Lula da Silva ter preenchido de maneira heterogênea os cargos que lidam diretamente com a reforma -contentando setores de sua base que têm visões divergentes sobre o que deve ser a reforma- é uma ameaça de imobilismo. Para ele, Lula "terá que fazer grandes remanejamentos nessa área para pôr esse ministério em movimento".
Não existe, na visão do sociólogo, dicotomia entre a modernização técnica e tecnológica por que passa a agricultura no Brasil e a forma de organização baseada na família camponesa.
Agricultura empresarial e familiar estão, ambas, imersas num processo de modernização que tem um mesmo sentido: a "supressão do latifúndio improdutivo e da especulação imobiliária".
Autor de, entre outros, "Os Camponeses e a Política no Brasil" (Vozes) e "Reforma Agrária - O Impossível Diálogo" (Edusp) e co-autor e organizador do recém-lançado "Travessias - A Vivência da Reforma Agrária nos Assentamentos" (Editora da UFRS), Martins, 64, é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Após 38 anos de docência, deve aposentar-se nesta semana.

Folha - A reforma agrária no Brasil ainda cumpre papel relevante do ponto de vista econômico ou teria apenas a função de ser uma política social compensatória?
José de Souza Martins -
A reforma agrária está sendo feita há anos, com variações de forma, e ganhou especial vigor no governo de Fernando Henrique Cardoso, notadamente com o ministro Raul Jungmann e, na fase final, com o ministro José Abrão.
Na sociedade capitalista, que esta é, a reforma agrária é sempre correção na estrutura da propriedade para desbloquear o fluxo do capital e a produção e reprodução da riqueza. E, claro, constitui um meio de fazer justiça social numa área em que a igualdade de direitos é débil e corre riscos, como tem acontecido no Brasil. Portanto, ela é ao mesmo tempo (e não há como ser de outro modo) uma política social e econômica.

Folha - Mas e quanto aos questionamentos sobre a viabilidade econômica de muitos assentamentos?
Martins -
As áreas de agricultura familiar, reformadas ou não, recentemente ou não, têm em todo o país cumprido uma notável função de abastecimento. Mesmo formas pobres e precárias de posse da terra com base na agricultura familiar, como os posseiros do norte, responderam durante muito tempo e respondem ainda pelo abastecimento alimentar das cidades da região, sobretudo as cidades pequenas. Se a agricultura familiar fosse suprimida hoje no Brasil, provavelmente a maioria dos brasileiros teria que se inscrever no Fome Zero.
Os assentamentos não só são promissores, como, onde se institucionalizaram, são responsáveis pela elevação da renda das famílias rurais e pela melhora significativa de sua condição de vida em relação à época em que eram "sem-terra". Essa melhora afeta positivamente o desenvolvimento econômico e social do país, tem efeitos multiplicadores de renda e emprego nas respectivas regiões e beneficia a sociedade inteira.

Folha - Mas muitos dizem que, mais cedo ou mais tarde, a opção do Brasil por uma agricultura dinâmica, intensiva em capital, suprimirá, no campo, as formas de organização baseadas na família.
Martins -
A agricultura familiar e a agricultura empresarial têm convivido funcionalmente e essa é a regra na divisão do trabalho própria de uma economia moderna ou que se moderniza.
É perda de tempo imaginar que o país terá que optar por uma ou outra, quando o país já optou pelas duas. As tensões que estamos presenciando não são supressivas. São apenas indicações de uma modernização em curso que atinge sobretudo a agricultura familiar, mas que alcança também a agricultura empresarial. Nos dois casos, o objetivo é efetivamente a supressão do latifúndio improdutivo e da especulação imobiliária que prejudica a sociedade inteira pela pobreza que acentua e as injustiças que difunde.

Folha - Com a política de distribuição de terras levada a termo nos dois governos FHC, o papel histórico de organizações sociais, como o MST, que se formaram levantando a bandeira da reforma agrária, se teria exaurido?
Martins -
A bandeira da reforma agrária não se exauriu nem vai se exaurir tão cedo. O MST e as organizações similares continuam tendo uma função histórica e a terão se compreenderem que a própria reforma que ampliaram e aceleraram muda-lhes as condições de existência, torna-os necessariamente interlocutores do poder e pede-lhes atualização do projeto e da conduta.
O que se exauriu foi a bravata como técnica de ação política, pois agora vitima o beneficiário original dessa prática, que é o partido do governo. O regime de propriedade não foi alterado e mesmo as terras alcançadas pela reforma acabam, mais cedo ou mais tarde, reentrando no circuito da concentração fundiária, sobretudo na passagem de uma geração para outra, através dos mecanismos de herança.
Portanto, é uma enorme bobagem imaginar e querer (como fazem as entidades de mediação da luta pela reforma agrária) que a reforma agrária seja conserto mecânico da estrutura fundiária herdada da colônia e que daqui para a frente o problema da concentração da propriedade da terra será resolvido definitivamente.
A reforma agrária tem que ser pensada como reforma cíclica que resulta de contínua interferência regulamentadora no regime de propriedade e desconcentradora da propriedade concentrada. Isso como norma geral capaz de fazer da possibilidade da agricultura familiar uma possibilidade democrática de desenvolvimento econômico e social, mediante geração de direitos, de dignidade, de renda e emprego.

Folha - Se a reforma, como o sr. diz, já ocorre há muitos anos e ganhou força sob FHC, há algo que ameace a continuidade desse processo no governo Lula?
Martins -
Minha impressão é a de que a linha geral de atuação do novo presidente da República é a de delegar aos ministros a formulação e execução das respectivas políticas setoriais. O presidente Luiz Inácio optou por agir como cobrador de tarefas em nome do povo, uma espécie de "fiscal do Sarney" em tamanho grande, sem interferir diretamente nos rumos e decisões dos ministérios.
É, sem dúvida, uma forma de governar. Ela dá certo quando o ministro não tem que compartilhar decisões com colegiados e subalternos e tem força pessoal suficiente para liderar o respectivo ministério. Não é isso que está acontecendo em alguns ministérios e o caso mais grave é, certamente, o do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que tem um problema crônico no dualismo entre MDA e Incra.
Provavelmente, foi o caso mais complicado que o partido e o presidente enfrentaram. O presidente Luiz Inácio preferiu fazer justiça de Salomão, entregando o ministério às partes em contenda no interior do partido, marginalizando, aliás, o mais provável ministro e o mais indicado, que era José Graziano da Silva, agrônomo, economista e bom conhecedor do problema agrário. Graziano aparentemente não é um nome das simpatias do MST e da Igreja.

Por que Lula teria agido assim?
Martins
De certo modo, o presidente acendeu uma vela para Deus e outra para o diabo. Não quer (e não pode) criar temores quanto à segurança do regime de propriedade. Não pode fazer com a propriedade o mesmo que está fazendo com a Previdência do funcionalismo público, que diz respeito a uma parte frágil da população. A economia e a política brasileira dependem acentuadamente do agronegócio e da grande agricultura moderna.
Anular na lei ou na prática o direito de propriedade e a necessária segurança que ele dá ao empreendedor rural seria tentar fazer uma revolução social sem mandato nem legitimidade.
Dividiu o ministério entre o ministro, que deveria representar a linha mais prática e conciliadora do governo, e o presidente do Incra, que, como foi observado, é o homem que representa as posições e o projeto do MST e da CPT. As desapropriações maciças e rápidas são reivindicadas pela CPT, que secunda e apóia o MST e lhe deu origem.

Folha - O atendimento a essas reivindicações é social e politicamente possível no Brasil de hoje?
Martins -
Aí há vários problemas. As desapropriações devem, por lei, obedecer a um percurso de segurança institucional, para que o ato seja perfeito, a desapropriação, segura, e o assentamento, promissor. Não há como ignorá-lo sem o risco de perder na Justiça o que foi ganho na política.
Além disso, a desapropriação depende de dinheiro e de títulos da dívida agrária (uma outra forma do dinheiro). Num país que castiga os frágeis sob pretexto de que não tem dinheiro, seria no mínimo espantoso que se cumprisse esse desígnio pela maciça transferência de dinheiro público, sob forma de renda da terra, aos proprietários de latifúndios, numa escala que poderia, no limite, pôr em risco a economia do país.
A pretexto de punir os grandes proprietários de terra com as desapropriações maciças, que é o pressuposto do MST, o governo estaria fazendo o que os proprietários mais gostam: desimobilizando a renda territorial de maneira segura para eles e convertendo-a em capital, sem qualquer mediação reguladora. Nesse caso, o latifúndio teria valido a pena e sua existência estaria sendo legitimada.
A reforma agrária, histórica e teoricamente, tem sua justificativa fundamental no combate à renda da terra, que estaria assim sendo revigorada numa escala anormal. Esse é certamente um dos graves dilemas da reforma agrária, que pode se agravar no governo do PT por razões ideológicas, e não por razões práticas e propriamente políticas.

Folha - Nessa conjugação heterogênea de forças num mesmo governo, MST e CPT têm condições de fazer valer suas bandeiras?
Martins -
Essa posição, que parece radical e revolucionária, mas não é, foi enfraquecida desde que o novo governo tomou posse. Sua principal base de apoio político e extrapartidário é a CPT e a Igreja.
Nas últimas eleições da CNBB, o grupo que na Igreja ampara a CPT e o MST saiu significativamente enfraquecido, o que indica uma mudança de inclinação do episcopado, que vem ocorrendo lentamente já há um bom número de anos. No geral, os bispos têm consciência da importância da separação entre o Estado e a Igreja, marca fundamental do Estado republicano no Brasil.
Um apoio pleno ao MST é problemático também porque sanciona a luta de classes numa perspectiva que não é a da doutrina social da Igreja. Além disso, a CNBB disciplinou recentemente a função dos assessores dos bispos, em geral leigos, de modo a revalorizar a palavra e a função pastoral dos prelados. Isso enfraquece tanto a CPT quanto o MST na medida em que os assessores permanentes são elos fortes na sustentação das pastorais sociais, sobretudo na sua partidarização. O PT é particularmente atingido por essa decisão, pois a maioria dos assessores está ligada ao partido.

Folha - Como fica particularmente o MST nesse contexto?
Martins -
O MST está internamente dividido e em crise. Perdeu importância para a Contag -a qual pretendeu desafiar-, entidade de classe que tem mais legitimidade e tem hoje a direção de mais da metade das ocupações de terras. Tem ainda que dividir o campo da ação com mais de 30 outras organizações de sem-terra que surgiram para questioná-lo.
O quadro, portanto, desfavorece o presidente do Incra, na medida em que enfraquece suas principais bases de apoio. No entanto, o ministro não parece tirar proveito de uma situação que o favorece porque favorece o governo e a linha do que o presidente define como "reforma agrária sem violência", baseada na prudência e na negociação, sem impactos traumatizantes no regime de propriedade e na economia agrícola.
Aparentemente o presidente reluta porque sabe que tem um enorme débito para com o MST e a CPT, por terem colocado o governo anterior na linha de fogo de uma dura e agressiva reivindicação de reforma agrária e de um formidável movimento de anulação da visibilidade da reforma e da política agrária de Fernando Henrique Cardoso.
Não obstante esse débito que virou um fardo, o presidente terá que fazer grandes remanejamentos nessa área para pôr esse ministério em movimento. Ou convencer o ministro a enfrentar e contrariar os aliados de ontem. Não será estranho se Graziano se tornar o ministro, livrando-se ao mesmo tempo do abacaxi desse programa mal parido que é o Fome Zero. Mas isso à custa de um enfrentamento entre o governo e o MST e parte da Igreja.


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