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CONFLITO AGRÁRIO
Para José de Souza Martins, especialista em questões fundiárias, Lula terá de resolver divergências no governo
Duplo comando trava reforma, diz sociólogo
Matuiti Mayezo - 20.jun.03/Folha Imagem
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José de Souza Martins, que é autor de obras sobre reforma agrária e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP |
VINICIUS MOTA
DA REPORTAGEM LOCAL
A agenda da reforma agrária
não está esgotada nem vai exaurir-se tão cedo no Brasil, na opinião do sociólogo José de Souza
Martins, referência obrigatória
nos estudos sobre campesinato e
questão fundiária no país.
Em entrevista à Folha, ele disse
que a reforma deve ser encarada
como processo cíclico "que resulta de contínua interferência regulamentadora no regime de propriedade e desconcentradora da
propriedade concentrada".
Martins não julga possível, como pretendem algumas organizações -o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
e a Comissão Pastoral da Terra
(CPT) entre eles-, que a política
para a reforma agrária caminhe
na direção de um processo de assentamentos maciços.
"Anular na lei ou na prática o
direito de propriedade e a necessária segurança que ele dá ao empreendedor rural seria tentar fazer uma revolução social sem
mandato nem legitimidade", diz.
De acordo com Martins, o fato
de Luiz Inácio Lula da Silva ter
preenchido de maneira heterogênea os cargos que lidam diretamente com a reforma -contentando setores de sua base que têm
visões divergentes sobre o que deve ser a reforma- é uma ameaça
de imobilismo. Para ele, Lula "terá que fazer grandes remanejamentos nessa área para pôr esse
ministério em movimento".
Não existe, na visão do sociólogo, dicotomia entre a modernização técnica e tecnológica por que
passa a agricultura no Brasil e a
forma de organização baseada na
família camponesa.
Agricultura empresarial e familiar estão, ambas, imersas num
processo de modernização que
tem um mesmo sentido: a "supressão do latifúndio improdutivo e da especulação imobiliária".
Autor de, entre outros, "Os
Camponeses e a Política no Brasil" (Vozes) e "Reforma Agrária -
O Impossível Diálogo" (Edusp) e
co-autor e organizador do recém-lançado "Travessias - A Vivência
da Reforma Agrária nos Assentamentos" (Editora da UFRS), Martins, 64, é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP. Após 38 anos de docência,
deve aposentar-se nesta semana.
Folha - A reforma agrária no Brasil
ainda cumpre papel relevante do
ponto de vista econômico ou teria
apenas a função de ser uma política
social compensatória?
José de Souza Martins - A reforma agrária está sendo feita há
anos, com variações de forma, e
ganhou especial vigor no governo
de Fernando Henrique Cardoso,
notadamente com o ministro
Raul Jungmann e, na fase final,
com o ministro José Abrão.
Na sociedade capitalista, que esta é, a reforma agrária é sempre
correção na estrutura da propriedade para desbloquear o fluxo do
capital e a produção e reprodução
da riqueza. E, claro, constitui um
meio de fazer justiça social numa
área em que a igualdade de direitos é débil e corre riscos, como
tem acontecido no Brasil. Portanto, ela é ao mesmo tempo (e não
há como ser de outro modo) uma
política social e econômica.
Folha - Mas e quanto aos questionamentos sobre a viabilidade econômica de muitos assentamentos?
Martins - As áreas de agricultura
familiar, reformadas ou não, recentemente ou não, têm em todo
o país cumprido uma notável função de abastecimento. Mesmo
formas pobres e precárias de posse da terra com base na agricultura familiar, como os posseiros do
norte, responderam durante muito tempo e respondem ainda pelo
abastecimento alimentar das cidades da região, sobretudo as cidades pequenas. Se a agricultura
familiar fosse suprimida hoje no
Brasil, provavelmente a maioria
dos brasileiros teria que se inscrever no Fome Zero.
Os assentamentos não só são
promissores, como, onde se institucionalizaram, são responsáveis
pela elevação da renda das famílias rurais e pela melhora significativa de sua condição de vida em
relação à época em que eram
"sem-terra". Essa melhora afeta
positivamente o desenvolvimento
econômico e social do país, tem
efeitos multiplicadores de renda e
emprego nas respectivas regiões e
beneficia a sociedade inteira.
Folha - Mas muitos dizem que,
mais cedo ou mais tarde, a opção
do Brasil por uma agricultura dinâmica, intensiva em capital, suprimirá, no campo, as formas de organização baseadas na família.
Martins - A agricultura familiar e
a agricultura empresarial têm
convivido funcionalmente e essa
é a regra na divisão do trabalho
própria de uma economia moderna ou que se moderniza.
É perda de tempo imaginar que
o país terá que optar por uma ou
outra, quando o país já optou pelas duas. As tensões que estamos
presenciando não são supressivas. São apenas indicações de
uma modernização em curso que
atinge sobretudo a agricultura familiar, mas que alcança também a
agricultura empresarial. Nos dois
casos, o objetivo é efetivamente a
supressão do latifúndio improdutivo e da especulação imobiliária
que prejudica a sociedade inteira
pela pobreza que acentua e as injustiças que difunde.
Folha - Com a política de distribuição de terras levada a termo nos
dois governos FHC, o papel histórico de organizações sociais, como o
MST, que se formaram levantando
a bandeira da reforma agrária, se
teria exaurido?
Martins - A bandeira da reforma
agrária não se exauriu nem vai se
exaurir tão cedo. O MST e as organizações similares continuam
tendo uma função histórica e a terão se compreenderem que a própria reforma que ampliaram e
aceleraram muda-lhes as condições de existência, torna-os necessariamente interlocutores do
poder e pede-lhes atualização do
projeto e da conduta.
O que se exauriu foi a bravata
como técnica de ação política,
pois agora vitima o beneficiário
original dessa prática, que é o partido do governo. O regime de propriedade não foi alterado e mesmo as terras alcançadas pela reforma acabam, mais cedo ou mais
tarde, reentrando no circuito da
concentração fundiária, sobretudo na passagem de uma geração
para outra, através dos mecanismos de herança.
Portanto, é uma enorme bobagem imaginar e querer (como fazem as entidades de mediação da
luta pela reforma agrária) que a
reforma agrária seja conserto mecânico da estrutura fundiária herdada da colônia e que daqui para
a frente o problema da concentração da propriedade da terra será
resolvido definitivamente.
A reforma agrária tem que ser
pensada como reforma cíclica
que resulta de contínua interferência regulamentadora no regime de propriedade e desconcentradora da propriedade concentrada. Isso como norma geral capaz de fazer da possibilidade da
agricultura familiar uma possibilidade democrática de desenvolvimento econômico e social, mediante geração de direitos, de dignidade, de renda e emprego.
Folha - Se a reforma, como o sr.
diz, já ocorre há muitos anos e ganhou força sob FHC, há algo que
ameace a continuidade desse processo no governo Lula?
Martins - Minha impressão é a de
que a linha geral de atuação do
novo presidente da República é a
de delegar aos ministros a formulação e execução das respectivas
políticas setoriais. O presidente
Luiz Inácio optou por agir como
cobrador de tarefas em nome do
povo, uma espécie de "fiscal do
Sarney" em tamanho grande, sem
interferir diretamente nos rumos
e decisões dos ministérios.
É, sem dúvida, uma forma de
governar. Ela dá certo quando o
ministro não tem que compartilhar decisões com colegiados e subalternos e tem força pessoal suficiente para liderar o respectivo
ministério. Não é isso que está
acontecendo em alguns ministérios e o caso mais grave é, certamente, o do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que tem um
problema crônico no dualismo
entre MDA e Incra.
Provavelmente, foi o caso mais
complicado que o partido e o presidente enfrentaram. O presidente Luiz Inácio preferiu fazer justiça de Salomão, entregando o ministério às partes em contenda no
interior do partido, marginalizando, aliás, o mais provável ministro
e o mais indicado, que era José
Graziano da Silva, agrônomo,
economista e bom conhecedor do
problema agrário. Graziano aparentemente não é um nome das
simpatias do MST e da Igreja.
Por que Lula teria agido assim?
Martins De certo modo, o presidente acendeu uma vela para
Deus e outra para o diabo. Não
quer (e não pode) criar temores
quanto à segurança do regime de
propriedade. Não pode fazer com
a propriedade o mesmo que está
fazendo com a Previdência do
funcionalismo público, que diz
respeito a uma parte frágil da população. A economia e a política
brasileira dependem acentuadamente do agronegócio e da grande agricultura moderna.
Anular na lei ou na prática o direito de propriedade e a necessária segurança que ele dá ao empreendedor rural seria tentar fazer uma revolução social sem
mandato nem legitimidade.
Dividiu o ministério entre o ministro, que deveria representar a
linha mais prática e conciliadora
do governo, e o presidente do Incra, que, como foi observado, é o
homem que representa as posições e o projeto do MST e da CPT.
As desapropriações maciças e rápidas são reivindicadas pela CPT,
que secunda e apóia o MST e lhe
deu origem.
Folha - O atendimento a essas reivindicações é social e politicamente possível no Brasil de hoje?
Martins - Aí há vários problemas.
As desapropriações devem, por
lei, obedecer a um percurso de segurança institucional, para que o
ato seja perfeito, a desapropriação, segura, e o assentamento,
promissor. Não há como ignorá-lo sem o risco de perder na Justiça
o que foi ganho na política.
Além disso, a desapropriação
depende de dinheiro e de títulos
da dívida agrária (uma outra forma do dinheiro). Num país que
castiga os frágeis sob pretexto de
que não tem dinheiro, seria no
mínimo espantoso que se cumprisse esse desígnio pela maciça
transferência de dinheiro público,
sob forma de renda da terra, aos
proprietários de latifúndios, numa escala que poderia, no limite,
pôr em risco a economia do país.
A pretexto de punir os grandes
proprietários de terra com as desapropriações maciças, que é o
pressuposto do MST, o governo
estaria fazendo o que os proprietários mais gostam: desimobilizando a renda territorial de maneira segura para eles e convertendo-a em capital, sem qualquer
mediação reguladora. Nesse caso,
o latifúndio teria valido a pena e
sua existência estaria sendo legitimada.
A reforma agrária, histórica e
teoricamente, tem sua justificativa fundamental no combate à
renda da terra, que estaria assim
sendo revigorada numa escala
anormal. Esse é certamente um
dos graves dilemas da reforma
agrária, que pode se agravar no
governo do PT por razões ideológicas, e não por razões práticas e
propriamente políticas.
Folha - Nessa conjugação heterogênea de forças num mesmo governo, MST e CPT têm condições de
fazer valer suas bandeiras?
Martins - Essa posição, que parece radical e revolucionária, mas
não é, foi enfraquecida desde que
o novo governo tomou posse. Sua
principal base de apoio político e
extrapartidário é a CPT e a Igreja.
Nas últimas eleições da CNBB, o
grupo que na Igreja ampara a
CPT e o MST saiu significativamente enfraquecido, o que indica
uma mudança de inclinação do
episcopado, que vem ocorrendo
lentamente já há um bom número de anos. No geral, os bispos
têm consciência da importância
da separação entre o Estado e a
Igreja, marca fundamental do Estado republicano no Brasil.
Um apoio pleno ao MST é problemático também porque sanciona a luta de classes numa perspectiva que não é a da doutrina
social da Igreja. Além disso, a
CNBB disciplinou recentemente a
função dos assessores dos bispos,
em geral leigos, de modo a revalorizar a palavra e a função pastoral
dos prelados. Isso enfraquece tanto a CPT quanto o MST na medida em que os assessores permanentes são elos fortes na sustentação das pastorais sociais, sobretudo na sua partidarização. O PT é
particularmente atingido por essa
decisão, pois a maioria dos assessores está ligada ao partido.
Folha - Como fica particularmente o MST nesse contexto?
Martins - O MST está internamente dividido e em crise. Perdeu
importância para a Contag -a
qual pretendeu desafiar-, entidade de classe que tem mais legitimidade e tem hoje a direção de
mais da metade das ocupações de
terras. Tem ainda que dividir o
campo da ação com mais de 30
outras organizações de sem-terra
que surgiram para questioná-lo.
O quadro, portanto, desfavorece o presidente do Incra, na medida em que enfraquece suas principais bases de apoio. No entanto, o
ministro não parece tirar proveito
de uma situação que o favorece
porque favorece o governo e a linha do que o presidente define
como "reforma agrária sem violência", baseada na prudência e
na negociação, sem impactos
traumatizantes no regime de propriedade e na economia agrícola.
Aparentemente o presidente reluta porque sabe que tem um
enorme débito para com o MST e
a CPT, por terem colocado o governo anterior na linha de fogo de
uma dura e agressiva reivindicação de reforma agrária e de um
formidável movimento de anulação da visibilidade da reforma e
da política agrária de Fernando
Henrique Cardoso.
Não obstante esse débito que virou um fardo, o presidente terá
que fazer grandes remanejamentos nessa área para pôr esse ministério em movimento. Ou convencer o ministro a enfrentar e contrariar os aliados de ontem. Não
será estranho se Graziano se tornar o ministro, livrando-se ao
mesmo tempo do abacaxi desse
programa mal parido que é o Fome Zero. Mas isso à custa de um
enfrentamento entre o governo e
o MST e parte da Igreja.
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