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São Paulo, quinta-feira, 23 de outubro de 2003

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JANIO DE FREITAS

Acima de tudo

Com a recomendação oficial que lhe fez o procurador-geral da República, de que respeite as determinações constitucionais quanto a verbas para a saúde e para o Fundo de Erradicação da Pobreza, Luiz Inácio Lula da Silva passa a dispor de uma advertência necessária contra uma inclinação do seu governo, pouco referida, mas real: a idéia de que a vontade do governante é mais forte do que a Constituição e as leis em geral.
A decisão incomum do procurador-geral Cláudio Fonteles, acolhendo representação do deputado petista Roberto Gouvea e do ex-petista Eduardo Jorge, diz respeito à manobra, defendida por Antonio Palocci Filho e, portanto, também por Lula, de retirar R$ 3,5 bilhões da verba obrigatória da saúde e disfarçar o rombo, contabilmente, com verbas de programas e atividades de outros ministérios. A manobra permitiria destinar mais R$ 3,5 bilhões às amortizações e juros da dívida.
Já no começo do ano foi feita por Lula a liberação da soja transgênica plantada no Sul. O plantio desrespeitou proibição legal e sentenças judiciais, sendo seus responsáveis, por isso, passíveis de processo criminal. A liberação premiou a transgressão e o fez em conflito com o art. 225 e outros da Constituição e em desconsideração a decisões judiciais que o governo não poder desconsiderar. Sem falar nos acordos internacionais da biodiversidade.
Ainda não está plenamente clara a motivação do governo Lula para o seu empenho pela soja que favorece a multinacional Monsanto. Os defensores das verbas para a saúde, nos termos estabelecidos pela Constituição, foram chamados por Lula de "lobbistas da saúde". Traduzindo, o insulto quer dizer "defensores da Constituição" contra um presidente que deveria fazer o mesmo. Sem tradução, deu direito a que já empatassem o confronto dizendo que, se Lula defende a soja transgênica, então é "lobbista da Monsanto". O fato é que o governo ainda não apresentou razões que os princípios restritivos da Constituição, como outros preceitos legais e judiciais, possam tolerar.
Uma das frases com que Antonio Palocci teria repreendido funcionários em choque na Receita Federal, semana passada, mostra que a idéia de autoridade acima da lei é difundida no núcleo do governo. O corregedor da Receita tem mandato e só pode ser demitido por falta grave comprovada. O que não impediu o superior Palocci, segundo a narrativa do encontro, de ameaçá-lo nesses termos: "Não posso demitir, mas demito". As delimitações da lei? Ora, a lei.
O episódio Benedita da Silva é ainda mais eloquente. Ainda antes das informações mais seguras sobre a original viagem de Benedita, Lula saiu em sua defesa, de um modo que reduziu a notícia a um ato de má-fé, maledicência.
Constatado que a hospedagem de Benedita foi paga pela entidade particular que a convidou, ficou comprovado que o álibi da reunião oficial em Buenos Aires foi inverídico. Assim como o valor de R$ 3.000, mencionado pela própria, para o gasto com as passagens pelo governo. Compelida agora a pagá-las, Benedita quitou uma fatura de R$ 4.636,08. Mais de 60% acima do que dissera ter gasto do governo.
E o que resulta disso? Uma decisão presidencial que passa ao largo da lei. Reembolsado o cofre do ministério, Benedita da Silva pode continuar ministra, como se reembolsada da sua probidade por vontade presidencial. Mas a devolução do gasto ilegal não anula a ocorrência de improbidade, a ser apurada, em condições normais, em inquérito administrativo e talvez penal.
Alguns daqueles que usaram aviões da FAB para viagens de fins pessoais, no governo Fernando Henrique, tornaram-se réus de inquéritos, entre eles o próprio procurador-geral da República de então, Geraldo Brindeiro.
Pelo visto, outras recomendações serão necessárias, sobre o dever do governo de se reconhecer sujeito, e não superior, à Constituição e à legislação.


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