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HERZOG - 30 ANOS
Ivo Herzog recorreu à psicanálise para superar trauma da morte do pai, vítima de tortura em 1975
Filho de Herzog revela depressão e revolta
Arquivo pessoal
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Vladimir Herzog durante viagem aos Andes peruanos, nos anos 70 |
RICARDO MELO
DA REPORTAGEM LOCAL
Durante muito tempo, Ivo Herzog amargou seqüelas provocadas pela morte do pai numa cela
do aparato repressivo do regime
militar. Ivo tinha, na época, nove
anos. Como qualquer criança,
não imaginava que o pai pudesse
partir tão cedo, com apenas 38
anos. Pior: nunca lhe passaria pela
cabeça que Vladimir Herzog viesse a ser torturado até a morte.
O choque emocional foi tão
grande que o filho começou a ter
dificuldades inclusive para comer. Ouviu vários diagnósticos,
nenhum conclusivo. Com a ajuda
da psicanálise, Ivo agora está convencido de que foi vítima de uma
depressão fortíssima, "que talvez
tenha durado trinta anos".
Hoje, aos 39 anos, engenheiro
naval formado pela USP e trabalhando na área de comércio exterior, Ivo parece querer recuperar
o tempo em que era arredio e
pouco falava para o mundo. Eleitor do PSDB, não descarta seguir
algum dia a carreira política.
Já o irmão, André, um ano e
meio mais novo, que trabalha como urbanista no Banco Mundial,
em Washington, vota no PT. Separado há seis meses, Ivo tem um
filho de 8 anos, Lucas. "Ele é muito curioso, já sabe muita coisa sobre o avô e quer até ler os livros
sobre aquela época", conta. A seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu à Folha
no seu apartamento, em Santos.
Folha - O que você lembra do momento da prisão de seu pai?
Ivo Herzog - Lembro que nós fomos para TV Cultura para pegar
meu pai. Eu ficava brincando na
máquina de telex e também lembro que dois policiais com roupa
de agente secreto estavam tentando fazer a prisão. Depois o que eu
lembro é no dia 26, quando minha mãe veio falar para nós o que
tinha acontecido. Eu e meu irmão
dormíamos no mesmo quarto.
Ela sentou na beirada da cama e
disse que houve um acidente.
Folha - Acidente de carro?
Ivo - Isso é o que ela conta que
disse para gente. Eu mesmo não
recordo.
Folha - Sua mãe disse que você falava que seu pai tinha morrido na
cadeira elétrica....
Ivo - Eu tinha um pouco dessa
imagem. Lembro do velório no
Einstein, da procissão de carros
indo para o cemitério. Quando vi
o filme do João Batista [de Andrade] e vi a imagem do caixão, muita coisa voltou à cabeça, parece
que recuperou. Lembro da praça
da Sé, da missa, de uma raiva dentro de mim crescendo e de muita
gente que conheci naquele dia,
como o d. Paulo, personagens que
eu aprendi a respeitar, mesmo
não sendo católico. Foi nosso primeiro contato também com o rabino Henry Sobel.
Folha - Que lembranças você tem
da convivência com o seu pai?
Ivo - Ele gostava de fotografar, tinha uma Asahi Pentax, uma máquina manual. Aprendi a fotografar com aquela máquina, tenho
ela até hoje. Ele também tinha um
telescópio e aprendi com ele a mexer no aparelho, mas nunca consegui achar uma estrela.
Só fui aprender 30 anos depois,
quando comprei um telescópio
computadorizado. A gente pescava em Ilhabela e no sítio em Bragança, uma coisa mais ligada ao
meu irmão, André. Meu pai gostava de bichos. Tinha pato, marreco, pombas no sítio. Lembro que
ele não dirigia. Minha mãe levava
a gente para cima e para baixo.
Folha - Quando você se deu conta
das circunstâncias da morte?
Ivo - Eu não sei precisar exatamente. Mas no velório, por exemplo, já deu para perceber que era
uma coisa conturbada, havia
muita gente, muita imprensa, dava para ver que não era um evento
normal. Eu estudava no Vera
Cruz. O filho do Paulo Egydio
Martins [governador de São Paulo na época] estudava lá também.
Eu lembro que ele falou uma besteira para mim, que meu pai tinha
se matado, uma coisa assim.
Folha - Você reagiu?
Ivo - Não sei dizer. Eu tive um
problema que não sei bem o que
foi, agora estou até fazendo análise. Parece que depois que meu pai
morreu eu entrei numa depressão
muito forte. Os médicos nunca fizeram um diagnóstico preciso,
mas hoje parece que tudo não
passou de uma grande depressão.
Perdi muito peso. Era muito introvertido, gostava de aquário, astronomia, comecei cedo a mexer
com computador. Umas coisas
assim que hoje a gente chama de
meio nerd. Nunca fui de ficar indo
em festas, preferia ficar meio
quieto no meu canto.
Folha - Quanto tempo durou a depressão?
Ivo - Estou descobrindo que talvez tenha durado 30 anos.
Folha - Em que momento você
soube que seu pai era do PCB?
Ivo - Faz muito pouco tempo,
talvez uns dois ou três anos.
Folha - Mas isso saiu em livros, reportagens...
Ivo - Sim, mas nunca esteve muito claro para mim. Muita gente falou que ele era, mas só teria certeza de que ele era num dia em que
minha mãe falasse, ou alguém
próximo. Não que seja relevante.
Folha - Sua mãe, numa entrevista, falou sobre como ela soube que
o seu pai tinha entrado no PCB....
Ivo - É, mas essa história nunca
foi conversada comigo e meu irmão. Ou nem sei se havia algum
processo de proteção que me impediu de ouvir. A ficha sobre isso
só caiu há uns dois ou três anos.
Não que tivesse algum problema. Ser do PCB era motivo de orgulho naquela época, era a simbologia maior da esquerda. Nas eleições de 1978, eu votei no Alberto
Goldman, que era do MDB mas
todo mundo sabia que era do
PCB. E eu nem relacionava isso ao
fato de meu pai ter sido do PCB.
Na minha maneira de ver, para
lutar contra o regime daquela
época, existiam duas formas: ou a
Igreja Católica ou o PCB. Como o
meu pai era ateu, escolheu outra
via, mas não porque fosse a favor
do modelo soviético, do bolchevismo, da ditadura do proletariado, isso é besteira. Fundamentalmente ele queria promover a liberdade de opinião, a democracia, a ética.
Folha - Como você se sentiu sabendo que as pessoas que mataram seu pai acabaram impunes
com a anistia?
Ivo - É difícil, mas você tem que
levar em conta o bem maior, e no
caso a anistia era esse bem maior.
Outra coisa que temos que lembrar é que as pessoas que torturaram eram operários de uma linha
de produção, não eram os diretores da fábrica. O importante é entender por que aquelas coisas
aconteciam.
Folha - Qual sua relação com a política?
Ivo - Acho que política é uma
coisa séria. Por isso eu acho imperdoável o Rodolfo Konder [jornalista que foi preso na mesma
época de Herzog], uma figura importante, ter trabalhado com o
Maluf. O Maluf é um cara que, se
eu estiver numa cerimônia e ele
vier me cumprimentar, eu viro as
costas. Participei muito na época
da anistia, ia em eventos com a
minha mãe, manifestações no Tuca, fiz boca de urna em algumas
eleições, participei da campanha
do FHC contra o Jânio para a Prefeitura de São Paulo.
Folha - Você está em algum partido?
Ivo - Fiz muito voto útil na minha vida, votei no Lula contra o
Collor, votei na Erundina, no Suplicy, mas sou PSDB, embora
nunca tenha me filiado a nenhum
partido. O PT sempre olhou muito para o umbigo dele sem olhar o
todo, o FHC perdeu do Jânio muito por causa do PT.
Eu me considero de esquerda,
considerando esquerda alguém
que defende o social . Sou a favor
do capitalismo com melhor distribuição de renda. O Estado para
mim tem que dar saúde, educação, moradia e segurança. Se o Estado conseguir dar educação, haverá maior distribuição de renda.
Folha - Como você avalia o governo do PT?
Ivo - Lamentável. Não tenho nada contra um operário ser presidente da República. Só que o Lula
deveria ter sido um pouco mais
profissional. Eu acho que o Lula
está preso a um discurso que fazia
sentido vinte anos atrás e não se
importou em se atualizar.
O mundo mudou e ele não se
deu ao trabalho de discutir, se
acomodou. Tem gente que não
estuda porque não tem oportunidade. No caso dele, não. Poderia
ter participado de fóruns sobre
gestão, ideologias, conceitos sociais, mas não fez nada disso.
É como se ele tivesse pensado:
me elegi presidente, vou colocar
um cara para tocar, como o Zé
Dirceu, e vou viajar. Esse negócio
de dizer que os acusados do mensalão só fizeram caixa dois... É errado, foi bandidagem, tem que ser
punido. O triste é que tem gente
que acaba achando que o Roberto
Jefferson é herói...
Folha - Você pensa em fazer carreira política?
Ivo - Um dia talvez. Hoje a política que eu faço é num nível micro,
mas acho que a gente nunca pode
ficar indiferente. Depois tem essa
herança do meu pai, o fato de ele
ter morrido do jeito que ele morreu, o governo que fez aquilo de
um lado, e de outro um grupo de
pessoas que eu tinha que apoiar
porque lutava contra aquilo lá.
Mas, para ser político profissional, eu acho que preciso me informar mais, me preparar mais. Eu
vivi muito tempo à sombra da
atuação da minha mãe. Durante
muitos anos eu mais escutei, agora começo a falar um pouco.
Folha - Nem você nem seu irmão
pensaram em seguir a profissão do
seu pai?
Ivo - Eu bati na trave. Eu tenho
uma matrícula trancada no jornalismo da PUC. Quando eu não sabia direito o que eu ia fazer na vida, fiz um teste vocacional aos 18,
19 anos. Deu exatas e humanas. Aí
fiz vestibular para engenharia na
USP e jornalismo na PUC, mas
nunca assisti a uma aula de jornalismo.
E também pensei o seguinte: se
algum dia eu quiser ser jornalista,
não preciso fazer jornalismo, embora tenha esse negócio do diploma, que eu acho uma bobagem.
Meu pai era filósofo.
Folha - O que significa ser filho de
Vladimir Herzog?
Ivo - Eu acho que me dá um norte, é um ímã que me puxa numa
direção muito forte. Direção da
ética, da honestidade, da integridade, da indignação diante de injustiças.
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