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ENTREVISTA DA 2ª
Escritor defende que Bush precisa do conflito para consolidar "projeto imperial e neo-colonial"
Guerra só interessa aos EUA, diz Saramago
ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
"O único país a quem a guerra
hoje realmente interessa é os Estados Unidos. O seu projeto imperial e neo-colonial precisa dela para se consolidar." As palavras são
do escritor português José Saramago, 80, Prêmio Nobel de Literatura de 1998, um homem que
não costuma se refugiar no silêncio quando as situações políticas
agravam a incompreensão entre
os homens e proliferam a injustiça social.
Há uma semana, na ilha espanhola de Lanzarote, onde vive Saramago, foi realizado um encontro entre o primeiro-ministro espanhol José Maria Aznar e o
chanceler alemão Gerhard
Schröeder, dois líderes que se
opõem radicalmente a respeito da
intervenção militar no Iraque. A
Espanha está próxima dos Estados Unidos, pregando uma ação
preventiva, e a Alemanha recusava todo tipo de ataque, até que
aceitou na última cúpula da
União Européia a ação militar como "último recurso".
Com uma crise desse tamanho
batendo quase à porta de Saramago, na calma ilha no arquipélago
das Canárias, a Folha resolveu
propor ao escritor uma entrevista
sobre a crise iraquiana. Ele aceitou fazê-la por escrito. As suas
respostas seguem abaixo.
"O Iraque, diga o que diga o sr.
Bush, não representa neste momento um perigo para a segurança mundial, e isto não quer dizer
que eu considere Saddam Hussein um cordeirinho inocente",
diz Saramago.
Folha - O sr. assinou recentemente um manifesto contra a intervenção militar no Iraque. O sr. é absolutamente contra a guerra ou admite que possa haver uma ação
contra o país caso seja essa ação
aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU?
José Saramago - Sou contra as
guerras como qualquer pessoa
normal... Quanto a admitir que
possa haver, segundo as suas palavras, uma ação contra Iraque se
for aprovada pelo Conselho de
Segurança da ONU, necessitaria
saber primeiro se dessa maneira
ficaria autorizada para o futuro
qualquer "guerra preventiva". Se
assim for, o Conselho de Segurança ter-se-á tornado numa espécie
de carimbo automático que aprovará toda e qualquer guerra em
que esteja interessado um país suficientemente poderoso para controlar as suas decisões. Iraque, diga o que diga o sr. Bush, não representa neste momento um perigo para a segurança mundial, e isto não quer dizer que eu considere Saddam Hussein um cordeirinho inocente. Saddam Hussein é
um ditador, e dos piores, mas o
maior problema de Iraque é estar
onde está e ser o segundo produtor mundial de petróleo. Tendo
mantido ao longo de todos estes
uma cabeça de ponte no Próximo
Oriente, isto é, em Israel (que não
cumpriu até hoje nenhuma das
resoluções da ONU e não foi castigado por isso...), os Estados Unidos precisam de controlar agora o
Oriente Médio, por causa do petróleo, mas também como a porta
para a Ásia. O Afeganistão (não
esqueçamos que por ali passará o
pipe-line do gás natural) já está
sob o seu controle, as simpatias
do Uzbequistão vão todas para os
norte-americanos... A estratégia
dos Estados Unidos é clara: pôr as
suas "fronteiras" o mais longe
possível de Washington. Não é
possível entender doutra maneira, por exemplo, duas guerras anteriores, a do Vietnã e a da Coréia.
Folha - Como o sr. vê a divisão instalada no seio da comunidade européia por causa da questão iraquiana? O sr. pensa que uma guerra contra o Iraque pode colocar em
crise a União Européia?
Saramago - Em rigor, a "União"
Européia ainda não existe. Cometeu-se o erro de pensar que os factores económicos resolveriam tudo, que a economia acabaria por
integrar harmoniosamente os diferentes países, e agora descobre-se que é necessário voltar à política e repensar tudo desde o princípio. Não é de estranhar, portanto,
que a crise tenha estalado. Do
meu ponto de vista, é um bom sinal. A União Européia tem de nascer outra vez, e isso não acontecerá sem crises. Esta e as mais que
hão de vir.
Folha - A própria Otan encontra-se em crise depois que França e Bélgica se opuseram ao envio de ajuda
militar à Turquia. O sr. teme que
outras instituições internacionais e
multilaterais, como a ONU, possam
cair no descrédito, com o desenrolar dos fatos, rumo a uma guerra?
Saramago - O maior responsável
pelo descrédito em que caiu a
ONU chama-se Estados Unidos, e
isto ninguém o poderá negar.
Quanto ao alinhamento militar
da Europa pelos Estados Unidos,
melhor seria chamar-lhe submetimento. São muitos os países onde os norte-americanos têm bases
militares, mas não me consta que
qualquer desses países tenha bases nos Estados Unidos... As bases
na Europa tiveram como razão de
ser o que se denominou "perigo
soviético". Esse perigo desapareceu, e as bases continuam onde
estavam. E não vale a pena lançar
poeira aos olhos: o único país a
quem a guerra hoje realmente interessa é os Estados Unidos. O seu
projeto imperial e neo-colonial
precisa dela para se consolidar.
Folha - A opinião pública encontra-se majoritariamente em oposição à guerra, como provam as manifestações realizadas. Como o sr.
interpreta o contraste que se está
criando entre a posição de certos
governos, como Portugal, Espanha
e Inglaterra, eleitos democraticamente, e a opinião de seus países?
Por que o presidente francês Jacques Chirac teria resolvido afrontar os Estados Unidos?
Saramago - Democraticamente
podem ser eleitos bons e maus governos. O voto não purifica nem
absolve. Berlusconi foi eleito democraticamente, e quem é Berlusconi? As ditaduras impõem-se
à vontade dos povos, não é raro
que as democracias façam o mesmo. Aliás, esta conversa sobre a
democracia levar-nos-ia longe...
Como é que se pode falar de democracia quando o poder real
não é político, mas econômico?
Como se pode falar de democracia, quando o poder real não é político, mas militar? Quanto a Chirac, o que ele fez foi recordar-se de
De Gaulle, pensar que a França
deverá ser a cabeça política da Europa. É uma jogada arriscada. Veremos se os Estados Unidos estão
dispostos a admitir veleidades
"independentistas" por parte de
Europa...
Folha - O sr. comparou no ano
passado os ataques de Israel aos
palestinos com o assassinato dos
judeus pelos nazistas. Sua declaração gerou enorme polêmica. Como
o sr. se posiciona em relação aos
ataques, inclusive a civis, que os
próprios palestinos promovem
contra Israel? O sr. é pró-árabe? Como interpreta o crescimento do
sentimento antiamericano e anti-Israel na Europa?
Saramago - Não sou anti-semita
nem pró-árabe. Sou apenas um
dos muitos que pensam que o povo palestino tem direito a viver no
seu próprio país, sou apenas do
um dos muitos que perceberam
que no projeto de Grande Israel,
esse que habita a cabeça dos políticos israelitas e de uma grande
parte da população, os palestinos
não têm lugar. Em Cisjordânia e
Gaza há mais de 200 colonatos,
onde vivem cerca de 300 mil judeus. Esses colonatos, fortemente
militarizados, estão ligados por
uma rede de estradas por onde os
palestinos não podem circular. A
triste verdade é que Israel delapidou o capital de respeito e simpatia que a Europa lhe dedicava.
Não é culpa minha que Israel esteja a comportar-se todos os dias à
margem dos mais elementares
preceitos do direito internacional
e do simples respeito humano.
Folha - O sr. teme que a guerra ao
Iraque possa acentuar a crise no
Oriente Médio e possa também levar a ataques terroristas na Europa, como dizem alguns líderes?
Que mundo é este que passou a viver sob vigilância contínua em decorrência das suspeitas aventadas
de ataques sorrateiros e cruéis?
Que Estados Unidos são estes que
vivem agora em permanente
apreensão?
Saramago - Não posso prever as
consequências que terá a guerra
contra Iraque numa região desde
sempre instável como é o Oriente
Médio. Que o terrorismo continuará? É mais do que certo. Que
Europa poderá vir a ser vítima de
ações terroristas? É muito provável. A chamada civilização ocidental semeou ventos, agora colhe tempestades. É absolutamente
legítimo, de qualquer ângulo que
se examine a situação, lutar contra o terrorismo, mas eu aconselharia a que se estudassem as raízes profundas deste terrorismo e
as responsabilidades históricas do
próprio Ocidente na sua formação e eclosão. Dizer "Nós somos
inocentes do mal que eles sofreram e sofrem, estávamos tranquilos na nossa casa e vieram atacar-nos" é uma pura hipocrisia. Se
amanhã os índios da Amazônia
descerem em pé de guerra contra
São Paulo (permita-se-me esta hipótese fantástica), não se lembrem os paulistas de dizer que estavam inocentes, que não tinham
a culpa...
Folha - Na condição de escritor,
como o sr. descreveria o significado
para nosso mundo de um homem
como Bin Laden, este personagem
esquivo, que não se sabe se está vivo ou não, que passou a representar, sobretudo para os EUA, uma
espécie de antípoda e inimigo
maior da civilização ocidental?
Saramago - Bin Laden é inimigo
da civilização ocidental, mas o inimigo maior da civilização ocidental é ela própria. Geramos o
monstro que nos devorará. Esse
monstro chama-se soberba, insolência, egoísmo feroz. Aqueles a
quem espezinhamos cansaram-se
de ser espezinhados. E nós somos
incapazes de ouvir o gemido de
um mundo que está a extinguir-se
de fome, de doença, de miséria, de
ignorância, de injustiça. Que têm
que ver os Bin Laden com tudo isto? Essa é a pergunta, mas para ela
só temos uma resposta: acabar
com os Bin Laden. Claro que sim,
há que acabar com os Bin Laden,
mas talvez não fosse má ideia perguntar-nos também por que desceriam os índios da Amazônia
contra São Paulo...
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