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Funai espionou missionários na ditadura
Liberados em janeiro para pesquisa, documentos de braço do SNI no órgão indigenista relatam 30 anos de vigilância
Militares acreditavam que o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) pretendia "subverter" o controle da fundação sobre os índios
DO ENVIADO A BRASÍLIA
Guardadas por mais de 30
anos numa sala da Funai (Fundação Nacional do Índio) em
Brasília, 92 caixas com documentos confidenciais produzidos por um braço do SNI (Serviço Nacional de Informações)
no órgão foram finalmente liberadas a pesquisadores em
meados de janeiro.
Os papéis demonstram a espionagem feita pelos órgãos de
segurança sobre o grupo de padres e bispos que, em abril de
1972, sob o governo do general
Emílio Garrastazu Médici
(1969-1974), fundou o Cimi
(Conselho Indigenista Missionário), ligado à Igreja Católica.
As centenas de telegramas,
ofícios, relatórios de missão,
análises e bilhetes manuscritos
foram produzidas ou recebidas
pela ASI (Assessoria de Segurança e Informações), que por
duas décadas funcionou na Funai. A coordenação regional do
Arquivo Nacional em Brasília,
ligado à Casa Civil, recolheu os
papéis em 2008.
O SNI montou uma extensa
rede de espionagem na máquina estatal. Cada ministério
contava com uma divisão de segurança e informações, enquanto fundações, autarquias,
universidades e estatais tinham uma ASI. As unidades se
relacionavam com a chefia central do SNI. O Arquivo Nacional
já contou pelo menos 248 órgãos diferentes vinculados ao
SNI. A Funai era um deles.
"Dossiê"
A partir de 1974, com o general Ernesto Geisel (1974-1979)
na Presidência, a entrada e a
atividade de missionários nas
áreas indígenas foram monitoradas por uma rede de informações que começava no alto escalão da Funai, passava por delegados regionais dos órgãos e
por capitães de postos indígenas e chegava aos índios, coagidos e interrogados sobre a presença dos padres, como indicam vários dos telegramas. Todos os documentos eram enviados à chefia da ASI em Brasília.
O "dossiê Cimi" compreende
cerca de 2.000 páginas, incluindo cadernos de formação e textos produzidos pelo Cimi e que
eram apreendidos pelos espiões tão logo distribuídos entre os índios.
Os militares acreditavam que
o Cimi pregava o comunismo
nas aldeias e queria "subverter"
o controle do órgão sobre os índios. Os informes -alguns intitulados "atuação da esquerda
clerical" ou "infiltração comunista e atuação de grupos religiosos"- serviram de base a
inúmeras medidas da presidência da Funai contrárias aos
missionários.
Na Funai, a figura relevante
do período foi o controvertido
general de Exército Ismarth de
Araújo Oliveira, que presidiu a
Funai entre 1974 e 1979 -o
mais longevo da história do órgão. Hoje descrito por parte de
antropólogos e indigenistas como defensor das causas indígenas, Ismarth aparece em telegramas e bilhetes ordenando
vigilância, proibindo o acesso a
terras indígenas e determinando medidas contra os padres.
Em 1978, Ismarth enviou
carta confidencial ao general-de-brigada Francisco Batista
Torres de Melo, comandante
da Brigada Mista de Corumbá
(MS), então responsável por
uma extensa faixa territorial
que ia de Goiás ao sul de Mato
Grosso e na qual viviam populosas etnias indígenas acossadas por posseiros e colonos.
"A Funai está seriamente
preocupada com o recrudescimento da atuação da ala esquerdista da igreja nas áreas indígenas de Mato Grosso, em
particular nas que estão sob o
controle das missões salesianas", escreveu Ismarth.
Citando os bispos Pedro Casaldáliga e Tomás Balduíno, cofundadores do Cimi, Ismarth
escreveu que a intenção "dessa
ala esquerdista da igreja [é]
usar o índio como instrumento,
criando agitação em áreas que
estão tranquilas".
Ismarth sugeriu que fosse
feita a "infiltração de um elemento da Brigada na área da
Missão Salesiana de São Marcos [MT]. Para não despertar
suspeitas, o mesmo portaria
uma carteira funcional de servidor da Funai".
Dias depois, o general respondeu que concordava com a
infiltração e encomendou a
missão secreta a uma seção do
Exército em Aragarças (GO).
Localizado pela Folha em
Fortaleza (CE), o general-de-divisão reformado Torres de
Melo, 84, disse não se lembrar
desses papéis. "Eu me dava
bem com a igreja. Não me lembro de nenhum problema na
época." Entre 1974 e 1977, Melo comandou a Polícia Militar
de São Paulo, na gestão do secretário de Segurança Pública
Erasmo Dias.
Às vezes o general Ismarth
usava seu poder de veto em
simples retaliação às críticas
públicas feitas pelos missionários contra o governo. Num bilhete de 1976, por exemplo, o
general despachou no canto de
um pedido de entrada de um
padre a uma aldeia do Amazonas: "As críticas que o Cimi, por
intermédio do padre Egydio
[Schwade], vem fazendo ao governo e à Funai não permitem
que o pedido seja atendido".
Em outro bilhete, respondeu
a um funcionário que queria
saber se a Funai fora chamada
para uma reunião com o Cimi:
"A Funai não foi comunicada e
mesmo que tivesse [sido], não
participaria de reunião do Cimi, face as características de
que as mesmas se revestem de
ataques ao governo".
Vigilância
Ismarth era sempre informado pela ASI sobre as ações do
Cimi. Em resposta, disparava
telegramas. Em março de 1978,
orientou: "Esta presidência tomou conhecimento de que o
padre [do Cimi] Dionísio Egon
Heck dirigiu-se a esse Estado a
fim de manter contatos com índios dessa região, seja para agitá-los, seja para participação
[informá-los] sobre problemas
no sul do país. Determinar a todos os PIs [postos indígenas]
estreita vigilância, impedindo
ingresso do mesmo a qualquer
área. Em caso de recalcitrância,
acionar autoridades".
As perseguições da Funai se
estendiam aos índios que aceitavam conversar com os missionários. Em 1976, ao ser informado de que a cúpula do Cimi estava reunida em Rio Branco (AC), Ismarth datilografou
carta confidencial ao chefe da
ASI. "A reunião está tendo caráter sigiloso e, apesar da vigilância da Funai, o Cimi conseguiu arrebanhar dois índios do
rio Purus (...). Os órgãos de segurança: Polícia Federal, SNI e
do próprio Estado estão atentos. (....) Ao término da reunião,
será tentado deter os índios e
conseguir que os mesmos informem os assuntos tratados e
a orientação dada pelo Cimi."
(RUBENS VALENTE)
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