São Paulo, terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

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Sertanista pediu demissões em telegramas confidenciais

DO ENVIADO A BRASÍLIA

Filho do sertanista Francisco Meirelles (1908-1973), referência no indigenismo, Apoena Meirelles (1949-2004) tornou-se também um inspirador das novas gerações de sertanistas. Nascido numa aldeia xavante, passou toda a vida adulta no trabalho indigenista. Em 2004, teve um fim trágico, ao ser baleado e morto numa suposta tentativa de assalto a um banco em Porto Velho (RO).
Antes de integrar o SPI (Serviço de Proteção ao Índio), o pai de Apoena foi filiado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) e acabou preso em 1935 por envolvimento no levante comunista em Recife (PE). Apoena carregou do pai a imagem de "esquerdista" e teve atritos com os militares. Contava ter sido preso na passeata dos Cem Mil, no Rio, em 1968. Segundo seus ex-colegas na Funai, Apoena, que viria depois a presidir o órgão, foi demitido na gestão do coronel Paulo Moreira Leal (1981-1983).
O passado político de Apoena não impediu que ele ocupasse um cargo de confiança na Funai entre final dos anos 70 e início dos 80, o de delegado da 8ª Regional (RO e AC).
Os documentos da ASI (Assessoria de Segurança e Informações) da Funai, agora revelados, contudo, indicam que Apoena concordou diversas vezes com a ditadura em pelo menos dois pontos: detestavam o trabalho dos missionários religiosos em aldeias indígenas e os funcionários supostamente "insubordinados".
Num telegrama confidencial de junho de 1980, Apoena pediu à direção da Funai que demitisse sumariamente, por suposta "insubordinação", o antropólogo Terri Valle de Aquino, o sertanista José Carlos dos Reis Meirelles Júnior e o auxiliar artífice Antonio Luiz Batista de Macedo. Eles foram de fato demitidos dias depois.
Quase 30 anos depois, Aquino, que foi reconduzido à Funai na década de 90, só soube por um telefonema da Folha, há duas semanas, que seu superior havia pedido aos militares sua demissão. "Nunca discuti com Apoena. É uma completa surpresa para mim."
Aquino contou que na época da demissão estava ajudando os índios caxinauás a se organizarem e pedirem ao governo a demarcação de terras. "Eu não tinha problemas com Apoena, os índio que tinham."
Por telegramas, Apoena também pediu da Funai, em Brasília, que tomasse medidas enérgicas contra o Cimi e outras missões religiosas. Em 1980, despachou mensagem confidencial: "Encontrei índios revoltados com a ausência da Funai na região, completamente sob domínio do Cimi e de outras organizações religiosas".
Talvez o mais duro ataque de Apoena ao Cimi tenha sido o telegrama de 21 de março de 1982. Diz que os "elementos" do Cimi estimulavam "o ressurgimento de focos de tensão, causado pelo sectarismo e pela visão unilateral do problema do índio". Termina pedindo sinal verde para "vetar o ingresso do Cimi nas áreas indígenas".
O papel desempenhado por Apoena na Funai era de conhecimento dos indigenistas críticos do governo, conforme indica outro documento do acervo da ASI. O texto da peça de teatro "A Grilagem do Cabeça", que seria exibida no Amazonas e acabou censurada pela ditadura, trazia um personagem chamado Apoena, que, ao conversar com índios apurinãs, procura sempre defender a Funai. "Estou aqui enviado pelo presidente da Funai para resolver de uma vez por todas a situação", dizia o personagem. A ASI não gostou: "A peça é uma crítica sarcástica, falando sobre terra. (...) Fala do Apoena Meirelles. Percebe-se o veneno nas entrelinhas". (RV)


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