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ARTIGO
A morte de um líder
MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Rio Grande do Sul sempre
foi considerado uma terra de
caudilhos, o que não é de admirar
quando se considera a origem do
Estado, conquistado a ferro e fogo
aos espanhóis. As terras foram então divididas entre os líderes vitoriosos, o que deu origem ao latifúndio gaúcho. O estancieiro era
uma figura destemida, mas também politizada (o positivismo foi
uma grande influência na região),
e ao mesmo tempo paternal, simples e até melancólica, bem diferente do clássico caudilho latino-americano, exuberante, extravagante. Os aposentos de Getúlio
Vargas no Palácio do Catete eram
de uma simplicidade monástica e
foram o cenário para aquela grande tragédia brasileira: seu suicídio,
em 24 de agosto de 1954.
É possível dizer que Leonel Brizola (1922-2004) foi um caudilho,
o último caudilho gaúcho, talvez?
Certamente essa expressão será
usada em relação a ele, mas não
corresponde à realidade. Para começar, Brizola era de origem humilde; filho de pequenos agricultores, trabalhou como jornaleiro,
engraxate, carregador. Com muito sacrifício formou-se em engenharia na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, mas de
imediato optou pela política, ingressando no PTB de Getúlio Vargas, que alavancou sua carreira.
Foi eleito deputado estadual, depois prefeito de Porto Alegre e, em
1958, governador do Estado. Mostrou-se um grande empreendedor, criando mais de 6 mil escolas
públicas, uma rede que ainda hoje
faz do Rio Grande do Sul um dos
Estados de maior nível de alfabetização.
Mas o grande momento de Brizola ainda estava por vir. Em agosto de 1961 Jânio Quadros subitamente renunciou à Presidência.
Deveria assumir o vice, João Goulart, que não havia sido eleito na
chapa de Jânio; naquela época o
que contava era o número de votos. Jango encontrava-se na China, mas a sua posse não seria aceita pacificamente; lideranças militares viam com suspeição suas ligações com o sindicalismo e com
a esquerda.
Um golpe começou a ser articulado e parecia inevitável, quando,
no Rio Grande do Sul, surgiu a resistência encabeçada por Brizola.
Esse movimento, conhecido como legalidade, marcou época na
história gaúcha, e disso posso dar
testemunho pessoal pois, estudante universitário, participei, como meus colegas, em todos os
momentos dessa jornada.
A mobilização popular foi, em
grande parte, espontânea, ainda
que amadorista; do Palácio Piratini, sede do governo, Brizola tentava organizar o movimento. Todos
os dias uma grande multidão se
reunia na Praça da Matriz, em
frente ao Palácio. E todos os dias
Brizola assomava a uma janela do
prédio para falar com as pessoas.
Impressionava sobretudo sua
tranqüilidade. Claramente, sabia
que estava enfrentando uma situação de grande risco, em que
desfechos trágicos eram possíveis,
coisa que ele procurava evitar.
"Armas para o povo, governador!" era o brado que mais se ouvia, mas ele não deixava se contagiar por esse fervor guerrilheiro.
A Brigada Militar, força pública
do Estado, não podia enfrentar as
tropas federais, se tal conflito
ocorresse. Houve um momento
de grande tensão, quando se
anunciou que os tanques do quartel da Serraria, bairro da zona sul,
vinham em direção ao centro para
bombardear o palácio. Em meio
ao nervosismo, começamos a
montar barricadas, usando os
bancos da praça, e ali ficamos, em
tensa expectativa.
Os tanques, porém, não apareceram. Mais que isso, o general
Machado Lopes, comandante do
poderoso 3º Exército, aderiu ao
movimento, o que mudou por
completo a situação: agora, a
ameaça era de uma guerra civil.
Entrou em cena a turma do deixa-disso. Políticos liderados por Tancredo Neves, ex-ministro da justiça de Getúlio Vargas, negociaram
uma solução: João Goulart assumiria, mas com um regime parlamentarista, capaz de limitar drasticamente o poder do presidente.
Durante todo esse tempo, Brizola continuava dirigindo-se à população, agora usando uma grande cadeia de rádios, a cadeia da legalidade. Seu típico e pitoresco
linguajar tornou-se conhecido em
todo o país. Lembro-me de uma
vez em que ele explicava o imperialismo. Usou para isso a metáfora de um tanque de água cujos donos enchiam com muito trabalho
e cujo conteúdo era implacavelmente sugado por "bombas,
bombinhas e bombículas".
Falava várias horas cada noite,
mas isso não diminuía sua audiência. Como disse um casal de
idosos gaúchos que então o visitou no Palácio: "É uma maravilha,
governador. O senhor fala, fala, a
gente adormece, depois a gente
acorda e o senhor continua falando... Maravilha".
A posse de João Goulart não
acalmou o país, pelo contrário. O
movimento da legalidade transformou-se no movimento pelas
reformas de base, das quais a principal seria a reforma agrária. Um
plebiscito fez retornar o regime
presidencialista e devolveu o poder a João Goulart, que agora parecia disposto a atender as reivindicações formuladas principalmente pela esquerda.
O golpe abortado em 1961 consumou-se em 1964. Disfarçado de
soldado da Brigada Militar, Brizola saiu do país e só retornou 15
anos depois. A partir de então vitórias e derrotas se alternaram em
sua carreira política. Perdeu a legenda do PTB para um grupo liderado por Ivete Vargas, mas fundou o PDT; perdeu as eleições para a Presidência, mas foi eleito governador do Rio. Ou seja: continuou brigando, até o fim. Como é
típico dos caudilhos, mas é típico
sobretudo dos líderes. Brizola foi,
indiscutivelmente, um líder. E,
para os que o conheceram, um ser
humano inesquecível.
Moacyr Scliar é escritor e colunista da
Folha. É médico especializado em saúde
pública e autor de "A Paixão Transformada - História da Medicina na Literatura" e
"Os Leopardos de Kafka", entre outros.
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