São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 2000


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ENTREVISTA DA SEGUNDA
Fundador do Grameen, de Bangladesh, defende expansão do microcrédito
"Banco dos pobres" se alia a mulheres para reduzir fome na Ásia

MARCELO DIEGO
EDITOR-ASSISTENTE DE DINHEIRO

Muhammad Yunus, 60, é o fundador de um banco com 12.628 funcionários e 1.105 agências, que já concedeu mais de US$ 3 bilhões em empréstimos desde 1976 e conta hoje com 2,4 milhões de clientes.
Dois fatos, porém, diferenciam o Grameen Bank de outras instituições e Muhammad Yunus de outros banqueiros. O primeiro: o banco fica em Bangladesh (Ásia), um dos países mais pobres do mundo. O segundo: são justamente os pobres os principais clientes do Grameen Bank ("banco da aldeia", no idioma local).
Yunus teve a idéia de fundar o banco em 1974, quando uma onda de fome particularmente violenta assolou o país. Ele lecionava economia na Universidade de Chitagong e ficou impressionado com as cenas de desespero vividas pela população mais pobre.
"Era muito difícil ensinar todas aquelas belas teorias econômicas enquanto as pessoas morriam de fome", diz Yunus.
Ele começou a pesquisar a origem da fome e descobriu que ela poderia ser evitada se as pessoas tivessem acesso a pequenas quantias de dinheiro -para comprar sementes, por exemplo. Mas justamente para os mais pobres o acesso ao dinheiro era quase impossível, já que não existiam garantias colaterais de que os empréstimos seriam pagos.
"As pessoas viviam em um nível tão baixo que não podiam poupar nem um centavo. Seus filhos estavam condenados a viver na penúria, sem nunca poder ter a menor reserva de dinheiro", diz Yunus.
Ele resolveu então fundar uma instituição que oferecesse microcrédito -pequenas quantias de dinheiro, suficientes para impulsionar a sobrevivência dos tomadores de empréstimos e tentar garantir uma melhoria de vida.
O banco começou com a concessão de US$ 27 para um grupo de 42 bengaleses. Em 1999, o total de dinheiro emprestado já ultrapassava a casa dos US$ 3 bilhões. A média de empréstimos é de US$ 25 por pessoa, com diferentes prazos de retorno. A taxa de inadimplência é de apenas 2%.
O professor-banqueiro diz não visar o lucro, embora sua instituição opere sempre no positivo (veja quadro abaixo). Para garantir o pagamento dos empréstimos, Yunus toma algumas providências.
Primeiro, ele busca conceder empréstimos às mulheres, não aos homens. "Elas são mais cuidadosas", justifica. Do total emprestado até 1997, 94,6% foram parar em mãos femininas.
Outro trunfo foi dividir o banco em ações, cotadas a US$ 2 e oferecidas aos próprios tomadores de capital. "Ao pegar um empréstimo, o cliente vira sócio do Grameen", diz.
Segundo pesquisas independentes realizadas em Bangladesh, a maior parte do dinheiro é utilizada na melhoria de pequenas propriedades rurais produtivas e na compra de comida.
Muhammad Yunus esteve no Brasil, na semana passada, para lançar o livro "O Banqueiro dos Pobres" (Ática, 362 páginas, R$ 29,90), em que conta sua experiência à frente do banco. Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida à Folha:

Folha - Como o sr. teve a idéia de fundar o Grameen Bank?
Muhammad Yunus -
Nunca tive a idéia definida de fundar um banco. O fato é que, em 1974, eu lecionava economia em Bangladesh e me peguei em uma situação muito peculiar. Ensinava aos estudantes todas aquelas belas teorias econômicas, tudo aquilo que eu gostaria de ver colocado em prática. Mas à minha volta havia muita miséria, sem nenhum tipo de socorro. Achei que deveria ajudar mais e percebi que uma grande contribuição seria proporcionar às pessoas o acesso a uma pequena quantidade de dinheiro. Mas não havia ninguém, nenhum banco que oferecesse isso.
Para ter acesso a crédito, as pessoas eram obrigadas a recorrer aos agiotas, que cobravam juros inacreditáveis. Então resolvi ajudar. Emprestei do meu bolso US$ 27 para um grupo de 42 pessoas. E percebi que poderia dar mais, fazer mais pelas pessoas. Comecei a buscar empreendedores para a instituição, fui às grandes instituições, viajei para as grandes cidades de Bangladesh.

Folha - E encontrou parceiros?
Yunus -
No início, eu pegava dinheiro emprestado como se fosse para mim e o cedia a terceiros. Quem garantia o capital era eu, por isso era extremamente importante evitar a inadimplência -ela quebraria a cadeia e haveria um colapso. A permissão para o banco entrar em funcionamento demorou, no total, dois anos.

Folha - Ser banqueiro está associado à idéia de ganhar dinheiro. O sr. ficou rico ou pensa em ficar com o Grameen Bank?
Yunus -
Fazer dinheiro nunca foi meu objetivo. Tanto que eu não possuo o banco. Ele pertence aos clientes. Eu não tenho nem uma ação do Grameen Bank, todas estão nas mãos dos clientes. Fixei em US$ 2 o valor de cada papel para que eles pudessem comprá-los. Eles se tornam sócios e não querem prejudicar algo de que fazem parte. É como um clube: quem se torna sócio não quer sair. E os pobres mostram que são muito bons pagadores. Bem melhores do que os ricos.

Folha - Pensando no futuro, se Bangladesh atingir um grau mais avançado de desenvolvimento, o banco mudará sua forma de atuar?
Yunus -
Eu espero sinceramente que esse dia chegue, mas é muito difícil. Somos uma das nações mais pobres do mundo. São mais de 120 milhões de pobres vivendo sem nenhum tipo de ajuda. E o mundo parece não se importar muito com isso. Grandes organismos gostam de fazer belos discursos a respeito de nossa situação, mas não agem com tanta ênfase.

Folha - Então o destino das pessoas é continuar a ser pobres?
Yunus -
Eu aprendi que a pobreza não é criada pelos pobres, mas pela impossibilidade de ascensão na sociedade. As pessoas viviam em um nível tão baixo que não podiam poupar nem um centavo. Seus filhos estavam condenados a viver na penúria, sem nunca poder ter a menor reserva de dinheiro. É o que tentamos mudar.

Folha - Em 98, o Prêmio Nobel de Economia foi concedido ao indiano Amartya Sen por suas teorias sobre a pobreza. Na época, ele disse que o prêmio seria importante para colocar os pobres nas discussões acadêmicas. O sr. acredita que isso esteja realmente acontecendo?
Yunus -
Ele teve um papel muito importante, pois não havia muitas discussões a respeito da pobreza, principalmente nos meios acadêmicos. Acho que isso está melhorando e mostrando que, quanto mais saudável é a economia de uma nação, menos pobres existem. É algo de que toda a sociedade se beneficia, embora as pessoas cresçam com a idéia de que a pobreza sempre existirá e nada pode ser feito a respeito.

Folha - Por que o sr. prefere emprestar dinheiro para as mulheres, e não para os homens? Não há um pouco de estereótipo nisso?
Yunus -
Nós não quisemos usar técnicas convencionais de outros bancos. Isso nos tornaria iguais a eles. E nós percebemos que era muito difícil para as mulheres conseguir empréstimos, principalmente em Bangladesh. Quando elas conseguiam, repassavam aos maridos. Nós quisemos valorizar o papel da mulher na sociedade. Levou seis anos, mas conseguimos inverter a tendência: passamos a ter as mulheres como principais clientes. Elas são também mais cuidadosas, pensam mais na família, prestam mais atenção no futuro e nas crianças. Os homens são muito nervosos e impacientes, parecem não se preocupar com o amanhã.

Folha - Em seu livro, o sr. diz que o dinheiro emprestado é usado em pequenas propriedades rurais ou na compra de alimentos. Como o sr. sabe ao certo qual é a destinação final do dinheiro?
Yunus -
Nosso banco tem cinco grupos, formados por 14 pessoas, escolhidas independentemente. Elas são responsáveis por fiscalizar as atividades em que o dinheiro está sendo empregado. Se você não transformar aquele dinheiro em um bem ou em lucro, não terá como pagá-lo de volta, não vai conseguir mais empréstimos. É um programa monetário muito simples, contudo bem supervisionado. Mas, em Bangladesh, o dinheiro se transforma, de alguma forma, em comida. Você tem de comer o capital. Não resta mais nada a fazer com o dinheiro.

Folha - A economia mundial presta muita atenção a fatos como a elevação ou não da taxa de juros nos EUA e o comportamento das Bolsas de Valores. São conceitos importantes para o sr. também?
Yunus -
Com a globalização das economias, são. Mas têm uma importância relativa, um pouco diferente. Eu não vou ganhar nem perder dinheiro se os juros subirem nos EUA. Só que, se as Bolsas caírem, provavelmente circulará menos dinheiro americano pelo mundo, e as pessoas de Bangladesh podem perder seus empregos. Essa influência é que me preocupa.

Folha - O Brasil também é um país com um grande contingente de pobres. O conceito de seu banco poderia ser utilizado aqui?
Yunus -
Obviamente. A idéia essencial é a seguinte: os bancos convencionais não emprestam dinheiro aos pobres, mas os pobres precisam de muito pouco. Qualquer um que ofereça crédito colocará uma grande quantidade de pessoas no sistema financeiro. É um passo muito pequeno, de resultados muito amplos.


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