São Paulo, terça-feira, 24 de agosto de 2004

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JANIO DE FREITAS

24 de agosto

Por mais corretas que algumas delas sejam, no que se refere à seqüência de fatos, às tantas narrativas dos antecedentes imediatos e do suicídio de Getúlio Vargas tem faltado o que a mim mais impressiona, ainda, naquele episódio. Foi o mais estarrecedor fenômeno de massa que presenciei, ou de que fui contemporâneo.
Quem viu, por exemplo, o movimento que levou à queda de Collor tem idéia do que, com certa generalização, chamamos de opinião unânime.
Foi algo assim, e maior, que se formou em 1954, sob a pressão ininterrupta da campanha conduzida por Carlos Lacerda, presente todas as noites na Rádio Globo, a qualquer e a nenhum pretexto; presente com freqüência em mais de uma TV, devastador na oratória, onipresente na imprensa diária mobilizada, toda ela, contra Getúlio, desde o atentado da rua Tonelero.
A unanimidade que se voltava contra Getúlio não agitava, porém, as ruas nem, em escala significativa, as organizações habitualmente mais ativas. Na falta mesma de ação em defesa de Getúlio, silenciosos até os sindicatos do trabalhismo e do comunismo, estava uma demonstração eloquente do efeito que o atentado e a campanha lacerdista disseminaram.
O getulismo era uma força popular oceânica -mas onde estava naqueles dias, desaparecida no turbilhão das expectativas atônitas e das perplexidades imobilizantes?
Getúlio era a solidão.
No dia 24 a cidade não despertou: explodiu. À notícia do suicídio de Getúlio, o Rio explodiu em emoção, em lágrimas, em fúria. Emoção de solidariedade a Getúlio, lágrimas de saudade ou culpa, fúria contra os que foram dados como responsáveis pelo tiro de Getúlio e pela comoção generalizada.
A redação do "Globo" foi atacada, os carros do jornal e o próprio jornal nas bancas era incendiado, jornalistas e funcionários da "Tribuna de Imprensa" precisaram fugir pelos telhados, o comércio foi forçado a fechar, os grupos caminhavam sem destino. O centro da cidade ardeu e ferveu.
Getúlio tinha outra vez a multidão.
Nem entre os portadores do mais enraizado antigetulismo encontrou-se alguém imune à comoção. Uma cena me ficou para sempre como resumo simbólico de toda a emoção testemunhada. Personificação do antigetulismo udenista e militar, ex-competidor de Getúlio na eleição presidencial, até poucas horas líder político dos oficiais da Aeronáutica que compunham a irada República do Galeão, foi o brigadeiro Eduardo Gomes que desceu de inesperado carro oficial diante da massa aglomerada em frente e dentro do Aeroporto Santos Dumont, para levar adeus e lágrimas à última saída de Getúlio do Rio.
Pasmada, a multidão não emitiu um som sequer, ninguém fez um gesto. Eduardo Gomes foi em direção à massa compacta, as pessoas começaram a lhe abrir o caminho com lentidão e silêncio, e assim foi até sua chegada junto ao caixão. Não foi só um ato de coragem incomum: a homenagem à grandeza de um inimigo é um gesto de grande beleza.
Getúlio não esperou entrar na história, voltou a viver no dia em que morreu. Em instantes, a multidão e sua cidade se transfiguraram, como nunca haviam feito, nem voltaram a fazer.


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