São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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NO PLANALTO

Exército diz que queimou arquivos, mas não prova

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Normas internas de contra-espionagem do Exército estabelecem regras estritas para a queima de papéis. Vigoram desde o início da década de 70. Constam de um manual que, atualizado ao longo dos anos, mantém a mesma política quanto aos arquivos secretos.
A última versão é de 1994. Traz na capa a seguinte inscrição: "Instruções Gerais de Contra-Inteligência para o Exército Brasileiro". Dedica um tópico à "segurança na destruição". Estipula que "a destruição de documentos sigilosos deve ser centralizada, de forma a evitar desvios".
Meticuloso, o texto recomenda que "os documentos sejam triturados e depois queimados". Anota ainda que a queima deve ser precedida da "lavratura de um termo de destruição".
O ministro José Viegas (Defesa) afirma que os arquivos militares sobre a guerrilha do Araguaia foram ao fogo. Ele é providencialmente vago quanto às datas: "Imagino que isso tenha ocorrido nos anos 70 ou nos anos 80".
Sugere-se ao ministro que exiba um "termo de destruição". Antes, convém certificar-se da idade do documento. Não ficaria bem divulgar um texto que, submetido às modernas técnicas de análise tipográfica, desmoronasse.
A Folha revelou em agosto de 2001 papéis secretos cujo teor desafia a retórica oficial. Contém detalhes das operações de combate à guerrilha. Informam, por exemplo, que, ao desembarcar no sul do Pará, a soldadesca sabia o que fazer com os corpos inimigos.
Os cadáveres não poderiam ser desovados a esmo na selva. Depois de identificados, deveriam ser depositados em covas previamente selecionadas. Em resposta a questionamentos do repórter, o Exército expediu quatro anos atrás uma nota oficial curiosa.
O texto sustentava a pantomima da ausência de informações sobre o destino dos corpos da turma do PC do B. Mas admitia a existência dos arquivos que Viegas tenta fazer crer que estão queimados "há mais de 20 anos".
Dizia a nota oficial de 7 de agosto de 2001: "Quanto aos desaparecidos nos combates travados naquela região, é importante salientar o que o Exército tem reiterado exaustivamente quando consultado a respeito do assunto: NOS ARQUIVOS EXISTENTES, nada foi encontrado que pudesse indicar a localização de seus corpos".
Na década de 90, a cúpula militar concluiu que, submetidas ao ambiente de abertura política, as estratégias de "inteligência" precisavam mudar. O resultado do debate interno foi expresso em textos sigilosos. Uma parte, redigida sob Fernando Henrique Cardoso, foi obtida pelo repórter.
Os papéis não fazem referência direta ao Araguaia. Mas admitem o óbvio: a história da repressão política pós-64 permanece guardada nos cofres das Forças Armadas. Reconhecem também que os arquivos secretos guardam muito "lixo".
O processo de "reformulação" da inteligência militar começou em 92. Caminha a passos de tartaruga manca. Sob FHC, houve mera atualização vocabular. Lula, o PT e seus aliados históricos -MST e CUT, por exemplo- passaram da categoria de "subversivos" à de "forças adversas". De resto, manteve-se em inalterada a usina de processamento de "lixo".
Uma semana antes da eleição de Lula, produziu-se em São Paulo um informe alertando para o "risco" do triunfo do PT. Previa para 2003 uma onda de "conturbação social". Organizações ligadas ao PT ateariam fogo à conjuntura.
O caos, como se sabe, não veio. Era lixo. Mas as urnas de 2002 injetaram no submundo da "inteligência" uma perturbadora novidade. O velho "inimigo" virou comandante-em-chefe. De espionado, Lula converteu-se em cliente da máquina de espionagem.
As coisas logo se acomodariam. A maleabilidade do ex-PT, também nessa área, foi notável. Mantiveram-se as operações de infiltração no MST. Preservou-se a tática de espionar sindicatos. Inclusive os petistas.
Aqui se noticiou, há quatro meses, que espias da Abin produziram o "relatório de inteligência número 0119/8140". Traz detalhes de um encontro de professores em Salvador. Reproduz declarações da líder sindical Ronalda Barreto, uma petista de mostruário, contra a política educacional do governo.
Em novembro do ano passado, a Abin de Lula já havia inserido em seu "Boletim de Serviço Confidencial" rasgados elogios a um coronel do Exército que se aposentou. O festejado militar condescendera, em 72, com a tortura e morte de um estudante em quartel de Goiás. O cadáver trazia um olho vazado e as palmas das mãos lanhadas. Inventou-se que cometera suicídio. Enforcara-se com um fio de persiana.
Num ambiente assim, gerido por um ex-PT tão concessivo, não espanta que o Exército tenha se animado a divulgar a nota oficial em que defende a "legitimidade" da tortura e da eliminação de presos políticos. Descobriu-se que o Vladimir Herzog das fotos que motivaram a nota disparatada é falso. Mas a balbúrdia que se instalou na área militar é real.
O caso produziu três personagens inacreditáveis: o general Francisco Albuquerque, um "comandante" de Exército que não comanda nem redação de nota; José Viegas, um ministro da Defesa indefeso e indefensável; e Luiz Inácio Lula da Silva, um presidente que ainda não logrou presidir os subterrâneos da Segunda Seção das Forças Armadas.
É certo que governos não podem prescindir de um serviço de "inteligência". Mas a sobrevivência de uma espionagem tosca e enviesada ofende o contribuinte. De resto, passa da hora de o ex-PT brindar o país com uma legislação de acesso ao papelório da repressão. O brasileiro tem direito à sua história. E não é justo impor a Viegas o constrangimento de ter de inventar uma nova fogueira a cada novo vazamento.


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