São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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SEGURANÇA ALIMENTAR

Ajuda de governo americano ao Fome Zero carrega interesses do país e de companhias de biotecnologia

Múltis usam fome para lobby transgênico

MARCIO AITH
DE WASHINGTON

Existe uma agenda paralela sob a promessa do governo americano de colaborar com o programa Fome Zero do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Aos poucos, os EUA e companhias de biotecnologia americanas começam a utilizar o debate sobre a fome no Brasil para reintroduzir a polêmica sobre o uso de transgênicos no país.
Cercado de interesses poderosos -corporativos, sindicais e ambientais-, esse é um dos dilemas mais delicados que a administração petista herda de FHC.
Transgênicos são organismos que possuem em seu genoma um ou mais genes provenientes de outra espécie. Sementes transgênicas, usadas amplamente nos EUA e na Argentina, visam maior produtividade e um menor uso de pesticidas. Mas seus oponentes, concentrados na Europa e com forte presença no Brasil, dizem que elas podem causar danos à saúde e ao ambiente.
A comercialização de transgênicos no Brasil está suspensa por uma disputa judicial que já dura quatro anos e prejudica a expectativa de lucros de gigantes como Monsanto, Novartis e Aventis.
O Fome Zero defende a manutenção das restrições aos alimentos transgênicos até que sua segurança seja comprovada. Essa posição reflete a orientação consolidada de grupos ligados ou simpáticos ao partido, como os sindicatos de trabalhadores rurais e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
No entanto a moderação do discurso petista e o destaque da fome no programa de Lula motivaram os americanos a reintroduzir o assunto com outro apelo. E a testar os limites do novo governo.
A Monsanto, personagem da briga judicial no Brasil, promoveu, discretamente, várias conversas com o coordenador do Fome Zero, José Graziano, e convidou um grupo de técnicos "petistas" da Embrapa para visitar a sede da companhia nos EUA.
"Sim, conversei com eles e indiquei algumas pessoas para serem procuradas na Embrapa", disse Graziano, em Washington.
"Biotecnologia e transgênicos podem ajudar o Brasil a erradicar a fome", afirmou Harvey Glick, diretor de produtos globais da gigante Monsanto, que fatura cerca de US$ 5 bilhões por ano. "Eles não só garantem maior produtividade como também podem ajudar o país a desenvolver safras resistentes às secas do Nordeste."
Por meio de sua assessoria, o diretor de assuntos corporativos da Monsanto no Brasil, Rodrigo Almeida, confirmou as conversas, mas equiparou sua relevância aos contatos frequentes de Lula com bancos e outras companhias do setor privado na campanha.
Graziano disse que a posição do partido sobre o assunto continuará sendo a mesma, independentemente dos esforços da Monsanto ou do governo americano para fazê-lo mudar de idéia. Sustenta que as vantagens dos transgênicos não estão comprovadas e que alguns desses produtos tendem a cortar a mão-de-obra rural.

Diálogo
Mas admite que sua posição não é "dogmática" nem "ideológica", numa sinalização de que está aberto ao debate. "O que queremos é dar todo o apoio à pesquisa. Se eles dizem que os transgênicos não fazem mal à saúde, ao ambiente e nos ajudam a erradicar a fome, que nos provem. Estamos dispostos a ouvir", afirma.
Além disso, Graziano admite que, no uso de transgênicos para culturas não-alimentares, como a de algodão, a rejeição do governo pode, em tese, ser menor. Desde 98, a Monsanto tenta comercializar, sem sucesso, a soja transgênica no Brasil, um dos maiores produtores agrícolas do mundo.
Ao se encontrar com Lula na quinta passada, o secretário-assistente para a América Larina do Departamento de Estado, Otto Reich, disse que os EUA farão "tudo o que for possível" para colaborar com o Fome Zero. Nos últimos anos, o mesmo Departamento de Estado americano fez pressões enormes para que o governo FHC liberasse os transgênicos.
Um funcionário do governo americano ouvido pela Folha disse que, com o Fome Zero, as agendas brasileira e americana na questão dos transgênicos se aproximam. Ele afirmou que o assunto não foi debatido na visita de Reich a Lula, mas que será abordado num futuro próximo por meio dos canais adequados.
Negou, no entanto, que os EUA vão condicionar quaisquer ajuda ao Fome Zero à liberação de transgênicos no Brasil.
Para o Brasil, trata-se de um cálculo complexo. Se liberar o plantio de transgênicas na cultura da soja, por exemplo, o Brasil perde o status de país produtor não-transgênico e passa a concorrer com os produtos argentinos e norte-americanos, perdendo o apelo que hoje tem na Europa.
Os americanos dizem que o Brasil perdeu esse status porque a soja transgênica contrabandeada da Argentina já estaria sendo usada em 70% da produção no Sul e em 15% da do Paraná.
Graziano diz que os números são exagerados. "Levantamentos que obtive recentemente mostram que a área livre de transgênicos nos dois Estados é muito maior. Estamos em posição privilegiada para garantir a Europa como um mercado cativo para nós."


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