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São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

MÁRCIO THOMAZ BASTOS

Thomaz Bastos afirma que ministério tem "plano" e que resultados virão no final do governo Lula

"Não podemos legislar pela emergência", diz ministro

ANDRÉA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Defensor do controle externo da Justiça, mecanismo que incomoda a magistratura, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, 67, prevê para o final do governo Lula os primeiros resultados da reforma do Poder Judiciário -a qual chama de "gênero de primeira necessidade".
A idéia é buscar o consenso. No dissenso, a disputa será no voto, no Congresso, a instância na qual tramita há 12 anos uma proposta de mudar a estrutura e o funcionamento da Justiça.
Resultados? A população brasileira só os sentirá em 2006, no final do mandato de Lula.
Bastos é contra a redução da maioridade penal e o endurecimento da legislação relacionada à segurança pública. "Não podemos legislar pela emergência. Temos que ter um plano. E isso nós temos", disse o ministro.
Sobre a manifestação do último sábado, em São Paulo, contra a violência, organizada pelos pais de Liana Friendenbach e Felipe Caffé, assassinados no início do mês, ponderou: "É preciso ter cuidado com o impacto disso sobre uma legislação de pânico".
Entre goles de chá de camomila, em um fim de tarde, Bastos evitou falar sobre a reforma ministerial. "Sabe que eu nunca conversei com ele [Lula] a esse respeito?"

 

Folha - Quais os pontos prioritários da reforma do Judiciário?
Márcio Thomaz Bastos
- O controle externo parece muito importante. A federalização dos crimes contra direitos humanos, que hoje, como regra, estão na esfera estadual. A quarentena, tanto na entrada quanto na saída do Judiciário. Esses são os pontos constitucionais, mas essa reforma tem outros níveis também -infraconstitucional, extralegal, além de mudanças pontuais na legislação processual civil e penal. A Secretaria de Reforma do Judiciário [órgão que pertence à estrutura do Ministério da Justiça] está estudando, pontualmente, questões referentes à modificação dos ritos processuais, de modo a acelerar o andamento. E, fora das modificações legais, vamos premiar as melhores práticas. Em São Paulo, por exemplo, há um fórum chamado "Social", da Justiça Federal, que é uma experiência maravilhosa, um juiz e um tribunal sem papel, tudo no computador.

Folha - Em quanto tempo o Brasil sentirá os resultados da reforma?
Bastos -
Levando em conta os diferentes níveis em que estamos trabalhando, acredito que até o fim do mandato do presidente Lula já tenhamos os primeiros resultados.

Folha - Qual o grande nó do Judiciário?
Bastos -
Está na primeira instância, que precisa ser reequipada, informatizada, sofrer um processo de gestão e ganhar mais eficiência.

Folha - Em meio à reforma, existe a possibilidade de ter recursos da iniciativa privada. Não pode haver aí um conflito de interesses?
Bastos -
Não acredito. Esse dinheiro será somente para financiar prêmios para as melhores práticas, que vamos estabelecer como incentivo para a mudança de gestão.

Folha - A reforma está apenas começando. Como está o clima entre o Executivo e o Judiciário?
Bastos -
Isso tem que ser feito da maneira mais civilizada possível. Vamos identificar os pontos de consenso e, naqueles pontos onde não for possível vencer o dissenso, vamos para o foro disso, que é o Congresso Nacional. Cada um defende sua posição, e o Congresso decide.

Folha - Mas as relações estão civilizadas?
Bastos -
Absolutamente civilizadas. O presidente do Supremo [Tribunal Federal, ministro Maurício Corrêa] e o presidente da República são agentes políticos, são homens que se conhecem há muito tempo. Trabalharam juntos na Constituinte.

Folha - A Operação Anaconda dá força à reforma?
Bastos -
Eu não gosto de achar que tenha alguma relação. A reforma do Judiciário é um gênero de primeira necessidade independentemente disso. A Operação Anaconda, muito bem feita pela Polícia Federal, é brilhante. É importante que a gente mantenha sempre presente que as pessoas são acusadas. Elas não estão condenadas ainda, têm presunção de inocência, direito a uma defesa ampla. Isso é muito importante situar, pois vivemos em um Estado democrático de Direito.

Folha - Mas o governo poderia usar a Operação Anaconda para pressionar o Judiciário.
Bastos -
Nosso discurso não é esse. Nosso discurso é o da necessidade indeclinável da reforma do Judiciário. Pregamos isso desde a Constituinte. Não pretendemos usar nenhum acontecimento, evento, enfim, para induzir, jogar a população ou tentar incluir no Congresso a reforma do Poder Judiciário. A reforma que se pretende é a favor do Judiciário, não contra ele. É para beneficiá-lo, redefinindo um modelo que produza uma Justiça rápida, acessível, mais perto do povo.

Folha - O que o governo fará para combater esse suposto esquema de corrupção na estrutura do Estado?
Bastos -
Não conheço os autos. Portanto, só posso falar em tese. Essa é uma luta que precisa ser travada por toda a sociedade, não só pelo Estado. Isso se faz com polícia científica, com inteligência, investigação paciente, que não se precipite, que não busque holofotes antes de buscar a verdade.

Folha - Mas para isso é preciso investir, e a PF está devendo R$ 36 milhões na praça.
Bastos -
Reconhecemos essa situação crônica, que vem lá de trás, e estamos reunindo todos os esforços para contorná-la. Mas vemos, por outro lado, os grandes êxitos que a PF vem tendo. Ao mesmo tempo em que há dificuldades, a PF está estimulada, tem orgulho de trabalhar. E isso explica os grandes resultados, a exemplo da Operação Anaconda.

Folha - O que muda na Secretaria Nacional de Segurança Pública com a posse do novo secretário, Luiz Fernando Corrêa?
Bastos -
Não queria olhar para o passado, eu queria separar. O novo secretário é um homem de planejamento, de execução, inteligência, de informação. Acredito que ele vá fazer um grande trabalho à frente da secretaria de Segurança.

Folha - Está em curso um processo de endurecimento da legislação relacionada à segurança pública. E também se discute, com certo eco na sociedade, a redução da maioridade penal.
Bastos -
Não sou a favor dessa redução nem do endurecimento da lei. Na quarta-feira, estarei com o pai [Ari] da Liana [Friedenbach, jovem de 16 anos que foi assassinada por um menor, segundo a polícia]. Vamos discutir essa questão. Não podemos legislar pela emergência. Temos que ter um plano. E isso nós temos. Mas acredito que, às vezes, é preciso apertar um pouco as pontas. Ao mesmo tempo, é necessário tirar da cadeia quem não deve estar lá. Temos um projeto importante no Senado, que deve ser votado ainda neste ano. É um projeto que, por um lado, acabando com o exame criminológico, facilita a saída da cadeia das pessoas que não precisam estar lá, que estão na cadeia só para se perverter, para se corromper. Esse mesmo projeto, por outro lado, endurece os procedimentos carcerários para os detentos fisicamente perigosos ou para os chefes de quadrilhas. Outra coisa que estamos fazendo com entusiasmo no ministério é a formulação de uma política de penas alternativas. Teremos um congresso sobre esse tema no início do próximo ano, com a participação de especialistas internacionais. No Brasil, menos de 10% dos processos criminais terminam em penas alternativas. Em outros países, como a Inglaterra, esse número é de 80%.

Folha - Qual a sua análise da manifestação de anteontem em São Paulo [o ato contra a violência foi organizado pelos pais de Liana e Felipe Caffé, 19, assassinados no início do mês].
Bastos -
É compreensível, até em solidariedade ao pai de Liana. Mas como já disse, é preciso ter cuidado com o impacto disso sobre uma legislação de pânico. Vamos conversar na quarta-feira e discutir este assunto com mais profundidade. Estamos todos do mesmo lado, só é preciso achar os melhores caminhos juntos.

Folha - Qual a diferença entre a gestão do ministério sob Lula e as administrações anteriores?
Bastos -
Em governos anteriores, não tivemos um plano. E também houve uma sucessão muito grande de ministros -nove em oito anos-, o que dificultava não só o planejamento, mas principalmente a execução do trabalho. Em um seminário de planejamento que fizemos há um mês, isso foi demonstrado com clareza em relação ao departamento penitenciário. Então vinha um ministro que era a favor de endurecimento, e aí se decidia planejar penitenciárias de segurança máxima. Depois, ele saía e entrava um defensor do direito penal mínimo, e aí determinava: "Não vamos mais fazer penitenciárias, faremos prisões-albergue". Um ano depois, vinha um outro e dizia: "Não, vamos parar com isso tudo". Então, as coisas nem chegavam a embalar, não chegavam a se construir e render frutos. Agora, não. Agora, nós temos um plano, que é anterior à vitória [na disputa presidencial do ano passado], que está sendo implantado e tem suas linhas básicas traçadas com muita clareza. E é isso que pretendemos fazer: uma segurança pública integrada. Sabemos que precisamos de um Poder Judiciário eficiente e de um sistema prisional diferente deste que está aí. É nisso que o Ministério da Justiça está investindo. Estamos fazendo um esforço muito grande -e não é só financeiro, é emocional, de articulação- para criar no Brasil uma cultura de combate à lavagem de dinheiro. Criamos o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, por meio do qual pretendemos fazer essa grande articulação.

Folha - E como será essa grande articulação?
Bastos -
Vou dar um exemplo. Pouca gente paga IR (Imposto de Renda) no Brasil -e o IR é um mapa da distribuição de renda. Antigamente, pagar IR era uma coisa facultativa. Depois, por vários mecanismos, foi sendo criada a consciência de que é preciso pagar Imposto de Renda. Hoje, todo mundo paga. Então, a idéia é criar uma cultura geral, com todos os órgão envolvidos, articulados com o sistema bancário brasileiro, que tem um padrão de informática incomparável. Precisamos criar no Brasil uma cultura de que não pode lavar dinheiro, não pode passar escritura por baixo, não pode fazer compra ou serviço com recibo ou sem recibo. Em resumo, queremos jogar essa lavagem de dinheiro só para atividades criminosas, e aí combatê-la fortemente. Lavagem de dinheiro -e eu estou cansado de dizer isso- é a causa final do crime organizado. As pessoas só correm os riscos de se organizar, de se associar em uma quadrilha, de levar tiro, ser fuzilado pela polícia, ser preso, quando sabem que podem lavar o dinheiro que ganham com o crime.

Folha - Pela confiança com que fala e pelos planos de médio e longo prazos que explana, o sr. fica na Esplanada depois da reforma ministerial, não?
Bastos -
O cargo é do presidente. Eu não sei se ele vai me manter aqui.

Folha - Além de ministro da Justiça, o sr. é amigo do presidente. Como têm sido suas conversas sobre esse tema?
Bastos -
Sabe que eu nunca conversei com ele a esse respeito? Ontem nós tivemos uma longa conversa -mais de três horas- sobre segurança, sobre vários temas, mas não falamos disso. Esse é um assunto que só o presidente Lula vai decidir.



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