São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004

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ELIO GASPARI

José Dirceu diz mas não faz

Fiel ao seu estilo de comandante de cargas da brigada de cavalaria ligeira, o comissário José Dirceu resolveu encrencar com os procuradores da República. Disse o seguinte:
- A violação do sigilo de justiça virou uma coisa normal, sistemática, e toma conta de setores do Ministério Público, articulado com facções políticas e alguns setores da imprensa. O Congresso precisa se debruçar sobre essa situação de extrema gravidade.
Para que as coisas fiquem no seu lugar, vale esclarecer que se a área de notícias plantadas na imprensa pelos procuradores for anexada à extensão das terras cultivadas pela lavoura nacional, o Brasil transforma-se no maior país agrícola do mundo. Da mesma forma, se a área plantada pelo comissário José Dirceu for considerada uma propriedade rural (improdutivo), ele se torna um dos maiores latifundários do país.
Com a ajuda do livro "Notícias do Planalto", publicado em 1999 pelo jornalista Mário Sérgio Conti, pode-se reconstituir um caso exemplar das malfeitorias que o comissário denuncia. Nesse episódio, um procurador e uma publicação (a revista "Veja") tiveram a proteção de um deputado (José Dirceu ) para violar o sigilo de Justiça. O comissário ajudou a legalizar um ato originalmente ilícito e, ao final, saiu bem na fotografia.
Em agosto de 1991, o repórter Kaíke Nanni convenceu um jovem procurador a passar-lhe uma parte da documentação de um processo que estava em suas mãos: as declarações de renda de Paulo César Farias, o tesoureiro do então presidente Fernando Collor de Mello. Como diria José Dirceu, um vazamento de "extrema gravidade" pois as informações que os cidadãos prestam à Receita Federal são protegidas por sacrossanto sigilo. (Já se viram milhares de documentos relacionados com a morte do presidente John Kennedy. O episódio é a obsessão de muitos malucos, mas nenhum deles ousou pedir a declaração de imposto de renda de Lee Oswald.)
O promotor permitiu que Kaíke copiasse 214 folhas com cinco declarações de renda de PC Farias. O repórter assumiu o compromisso de não revelar seu nome. Do cartapácio, resultava que Farias era um veterano sonegador. Quando o material chegou à redação, em São Paulo, a direção da revista foi alertada de que a publicação dos documentos era crime. Buscou-se uma saída e ela foi sugerida pelo jurista Francisco Rezek, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal. Tratava-se de criar um "fato legislativo". Traduzindo: se um parlamentar tivesse uma cópia das declarações e as anexasse a um requerimento qualquer, elas estariam lavadas. Faltava achar o deputado. José Dirceu aceitou representar o papel. Ele foi à redação de Veja e, nas palavras de Conti, "combinamos que escreveríamos na Carta ao Leitor que as declarações de renda de PC foram encaminhadas anonimamente ao deputado e ele sustentaria a mesma versão. Assim foi feito".
No domingo, quando "Veja" chegou às bancas, o deputado estava bem na fotografia. Com a ajuda de um anônimo defensor da moralidade, teria ajudado a cravar mais uma estaca no vampiro do collorato: "José Dirceu recebeu o pacote na sexta-feira" e "o passou a "Veja'". Dera-se o oposto. O comissário debruçara-se numa transação onde "setores do Ministério Público" e da imprensa articularam-se com um representante de "facções políticas" para ferrar um adversário.

Reforma trabalhista no Banco do Brasil

O comissário Luiz Gushiken já foi dirigente sindical dos bancários. Ele pode ajudar a reparar uma tunga trabalhista em curso no Banco do Brasil. O doutor Cássio Casseb, presidente do Banco da Viúva mandou contratar temporariamente até mil bípedes nas regiões Sul e no Sudeste do país.
Oito empresas disputaram o fornecimento de trabalhadores e venceu a Trevisan Locação de Mão de Obra, sediada em Maxaranguape, no Rio Grande do Norte. (Nada a ver com a Trevisan Consultores, de São Paulo.) Ela ofereceu brasileiros ao preço de R$ 1.315,00 mensais. (As locadoras cobram aos trabalhadores cerca de 10% sobre os salários pelos seus serviços.)
O acordo trabalhista firmado pelo Banco do Brasil no ano passado dá aos seus funcionários um piso salarial de R$ 719 ao qual se somam R$ 288 decorrentes de concessões laterais. Os encargos sociais vão a R$ 595. Ou seja: um bancário não pode custar menos de R$ 1.602,61.
Nenhuma das outras sete empresas que disputaram o leilão ofereceu salários inferiores a essa cifra.
O Banco do Brasil esclarece que não se aplica aos trabalhadores temporários o pagamento da gratificação de R$ 288 devidos aos concursados.
Os companheiros sindicalistas que batalharam no combate à degradação das relações trabalhistas podem tentar impedir a tunga da patuléia provisória do doutor Casseb. Se nada há a fazer, podem mandar-lhes uns desses charutos que fumam nas noites de Brasília e São Paulo.

Explodiu o silêncio de Alcântara

Quando Lula foi a Alcântara para o velório dos 21 funcionários do programa espacial brasileiro incinerados na explosão da base de lançamento do foguete VLS, em agosto passado, disse que "há males que vêm para o bem". A tragédia revigoraria a iniciativa brasileira. Fez apenas uma frase. Os males vêm para mal.
Os 21 mortos de Alcântara foram discretamente passados ao limbo da burocracia. Felizmente o repórter Marcelo Leite estrilou.
Espera-se que, depois de cinco adiamentos, a comissão encarregada de investigar as causas do desastre tenha algo a dizer em fevereiro, quando se esgota o prazo de seus trabalhos. Tudo indica que se admitirá uma falha humana, dos mortos. Assim lança-se o caso ao espaço, para a jurisdição do Padre Eterno.
Felizmente entrou outro repórter no lance. Larry Rohter trabalhou quatro meses no assunto e entrevistou familiares das vítimas. Seu retrato da base de lançamento é tétrico. Viúvas dos técnicos mortos contam que seus maridos se queixaram de ter tomado choques elétricos quando tocaram no foguete. Além disso, Rohter constatou que os técnicos usavam seus telefones celulares dentro da unidade de lançamento. Daí para uma faísca a distância era pequena.
Os engenheiros queixavam-se do arrocho tecnológico a que estavam submetidos. Eram instados a usar peças obsoletas por falta de recursos. Reclamavam da militarização do projeto.
Lula sabe que a teoria do mal que vem para bem é parolagem. Seu governo podia fazer um painel reservado, sem publicidade. Chamaria a Brasília os brigadeiros da reserva, empresários de material bélico e técnicos nucleares que venderam serviços ao Iraque. Trata-se de levar aos petistas uma narrativa do desastre construído nos anos 70 e 80. Ele pode não saber o que dá errado no seu governo, mas pode aprender com os fracassos dos outros.
Na aventura dos 70 a única pessoa com bom senso acabou sendo Saddam Hussein, quando disse a um diplomata: "Ele não deve oferecer coisas que não tem como entregar". Era um industrial audacioso oferecendo tecnologia para fazer bomba atômica.

Na linha
Se o secretário do Tesouro, doutor Joaquim Levy, não aprender o tratamento que deve dar aos ministros durante as reuniões de que participa, corre o risco de ser posto para fora. Primeiro, da sala.
Se ele der o mau passo, terá do mercado a solidariedade que recebeu ex-presidente da Anatel, Luis Guilherme Schymura. Foi um caso raro: ninguém se solidarizou com ele, nem ele mesmo.

Vamos por partes
A reforma ministerial confirmou que Lula não frita seus colaboradores. Ele os esquarteja. Se Cristovam Buarque tivesse sido entregue aos seus piores inimigos, sofreria menos.

Coronéis do PT
O PT Federal está armando uma manobra de curral de coronel na política da cidade de São Paulo.
Se Marta Suplicy for reeleita, torna-se favorita para a disputa do governo do Estado em 2006. Diante disso, o comissariado de Brasília quer dar ao PMDB (ou ao PL) a vice-prefeitura na chapa que será servida aos eleitores em outubro.
Se a senhora Suplicy for reeleita e quiser disputar a sucessão de Geraldo Alckmin, deverá largar a prefeitura no meio do mandato. Com isso o PMDB (ou o PL) governa São Paulo por dois anos. Ou, numa versão menos maligna, Marta Suplicy fica com uma bola de ferro no tornozelo, impedida de disputar a candidatura ao governo com o senador Aloizio Mercadante ou com José Genoino, o petista derrotado de 2002.
Tendo sido eleita numa chapa puro-sangue com o procurador Hélio Bicudo, Marta Suplicy poderá ser obrigada a conviver com um acordo napoleônico. Os comissários darão a cidade de São Paulo ao PMDB (ou ao PL) como Napoleão dava os países da Europa aos seus vorazes familiares.

A força da calma
Quem quiser estudar o ritmo do ministro Patrus Ananias deve prestar atenção em duas características de sua atuação pública: não tem pressa e não acredita em coisas complicadas.
Como prefeito de Belo Horizonte, criou um sistema que vendia hortifrutigranjeiros a 1 milhão de pessoas. Ao contrário dos prefeitos cosmopolitas, incentivou as feiras de rua. Vendia a R$ 0,29 um sacolão com 25 alimentos que custava R$ 0,69 nos mercados.
Foi o primeiro prefeito a dar atenção aos catadores de papel. Alugou três galpões para que eles pudessem separar suas cargas em paz.
Em 1995 o aumento de preço dos alimentos da cesta básica em Belo Horizonte foi de 0,86%, o menor de todas as grandes cidades brasileiras. Parte desse êxito resultou da ação da prefeitura sobre os alimentos consumidos pelos pobres. Patrus Ananias fez isso sem brigar com ninguém.

Eremildo, o idiota
Por conta da reunião extraordinária do Congresso, Eremildo autoconvocou-se para não fazer nada. O idiota acha que consegue adiantar um dinheiro para suas despesas de Carnaval. Não quer o capilé de R$ 21 mil que a Viúva pagará a cada senador e deputado. Se conseguir R$ 2 mil, estará satisfeito.
Como Eremildo tem sido desqualificado, por idiota, decidiu argumentar com as palavras de alguns representantes da patuléia. A saber:

"Devolver o dinheiro é atitude demagógica, oportunista e malandra".
(Paulo Paim, PT-RS, vice-presidente do Senado.)

"Deputado nenhum gosta de receber esse dinheirinho extra. Mas precisamos respeitar a Constituição."
(Inocêncio de Oliveira, PFL-PE, vice-presidente da Câmara.)

"A imprensa brasileira trata a questão como se deputado fosse gatuno. Se o presidente Lula quis me dar R$ 21 mil, agradeço a Sua Excelência o gesto de generosidade e os recebo." (Deputado José Thomaz Nonô, PFL-AL.)

Coisa de pobre
Lula anunciou que vai comprar um Airbus europeu, capaz de levá-lo, sem escalas, a Paris. Pagará US$ 56 milhões pela peça. Quando ele assumiu a Presidência do Brasil, a renda per capita estava em U$ 2.850 anuais. Deve ter fechado 2003 um pouco abaixo disso.
Seu colega Theba Mbeki, da África do Sul, também quer comprar um Airbus. A renda per capita de seu povo é de US$ 2.820.
O rei Mswati III, da Suazilândia, não conseguiu comprar um jatão. A grita nativa e o FMI não deixaram. Seu povo soma 1 milhão de almas, com uma renda de US$ 1.290. De cada três súditos do jovem monarca, um deles está desnutrido.
Nesse mundo injusto e excludente, estão sem avião os seguintes deserdados:
Harald V, da Noruega, cuja patuléia tem uma renda de US$ 37.850 per capita.
Margarethe II da Dinamarca, ex-voluntária da Força Aérea. Seu marido, o príncipe Henry, é piloto (US$ 30.290 per capita).
Carlos XVI Gustavo, da Suécia (US$ 24.820 per capita).
O avião que serve à rainha Beatriz da Holanda não tem autonomia para voar da Europa ao Brasil. Ela veio a Pindorama num vôo da KLM. (A renda per capita de seus súditos é de US$ 23.960).
Desde JK, todos os presidentes brasileiros tiveram avião. Lula poderia ter sido o primeiro a comprar um jato mais modesto na Embraer. A companhia pega dinheiro emprestado no BNDES (US$ 4,15 bilhões em oito anos) e dá emprego a 12 mil brasileiros.

Memórias
Aos 90 anos, o professor Lincoln Gordon começou a escrever suas memórias. Pode ser que conte algo de novo sobre a deposição de João Goulart, em 1964. Ele foi embaixador no Rio de Janeiro do final de1961 a 1966. Sua memória de elefante (lembra que na segunda semana de março de 1964 viu "Volta ao Mundo em 80 Dias", com David Niven e Cantinflas) pode produzir boas surpresas.



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