São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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BRASIL PROFUNDO

Professora, que trabalhou oito anos com a etnia que matou 29 garimpeiros, propõe exploração de outros produtos

Para antropóloga, diamante prejudica o índio cinta-larga

JOÃO CARLOS BOTELHO
DA REDAÇÃO

A antropóloga Carmen Junqueira, especialista em etnologia indígena e professora titular da PUC de São Paulo, diz que os cintas-largas não deveriam receber o direito de explorar os diamantes que são abundantes em suas terras. As pedras foram o motivo de 29 garimpeiros terem invadido área da etnia em Rondônia e acabado sendo mortos pelos índios.
"Eles se envolvem com garimpeiro, começa a entrar álcool, droga, as dissensões crescem", afirma Carmen, que trabalhou de 1978 a 1986 com os cintas-largas e tem obras no Brasil e no exterior sobre o grupo. "Se colocam a mão no diamante, caem num consumismo." Ela sugere um projeto de economia auto-sustentável para a etnia, com a exploração de outros produtos de suas terras, como a castanha, as essências e o mel.

Folha - Como é o cinta-larga?
Carmen Junqueira -
Eles têm duas características. Eles se queixavam logo nas primeiras viagens: "Vocês já mataram muitos dos nossos". Buscavam uma forma de expressar a falta de paz, porque, ou era invadida sua área, ou eles sofriam massacre, como em 1962. A segunda característica é o refinamento estético. Eles são índios com coisas lindas, festas muito bonitas. E tinham uma vida de trabalho. Eles têm agricultura, pescam, colhem mel e castanha, mas a paixão deles é caça. Não existe de fato um índio cinta-larga. Esse nome nós é que demos, por causa dos cinto que eles usavam, mas são vários subgrupos. Os que eu trabalhava se chamam kabã. Os da terra Roosevelt chamam-se mã. E brigam entre si, porque fazem troca de mulheres.

Folha - Como foram as experiências da senhora com eles?
Carmen -
É uma sociedade que, de início, você julga que não colabora. É assim: você escorrega, que nem uma vez, levei um escorregão. Eles riem, não ajudam. Aí, depois, eu percebi. Eles valorizam a auto-suficiência. Se você pedir ajuda, eles dão na hora, mas ninguém oferece, porque é ofensivo. Eu dormia em maloca, comia como eles, tomava banho no rio, coletava mel e ficava coberta de abelha, mas das que picam de leve.

Folha - Qual foi o primeiro contato deles com outras pessoas?
Carmen -
Vão aparecer registros nos anos 20 de que eram acossados por castanheiros e pessoas à procura da borracha. Depois, há comentários já na década de 1960, quando começou de fato o boom de garimpagem em Rondônia. Aí, passam a aparecer os atritos.

Folha - Hoje, os cintas-largas são bem integrados à sociedade?
Carmen -
Não, eles nunca se assalariaram, a não ser um ou outro, mas, como povo, não. Mas eles já estão falando português, vão às cidades. Já estão bem mais familiarizados com nosso estilo de vida.

Folha - Que problemas eles têm?
Carmen -
O principal problema deles é compartilhado com todos os povos indígenas. Quando a sociedade entra em contato com eles, conseguimos desorganizar a economia deles, ou porque nós poluímos os rios, ou porque nós desmatamos. E começa a sedução da mercadoria. Nós levamos também doenças. Então, quais as necessidades? Atendimento de saúde. Escola. Eles querem falar bem português, participar. Defesa das terras. E uma forma de obter rendimento, porque não adianta viverem só de caça, pesca, coleta.

Folha - Regularizar a exploração de diamantes é uma solução?
Carmen -
Não, porque eles acabam se envolvendo com garimpeiro, começa a entrar álcool, droga, as dissensões aumentam. Porque esses índios cintas-largas são antipatizados por uma boa parte do povo de Rondônia e de Mato Grosso porque eles não têm uma atitude servil. Eles são arrebitados. Esse contato com garimpeiro daria eternamente confusão. Mesmo que fosse mineradora, daria confusão, porque eles não querem ser mandados. E exploração de diamantes, só se fosse pelo governo, mas é problemático, porque não sei se o governo conseguiria esse grau de eficiência nesta onda de Estado mínimo.

Folha - Qual é a solução?
Carmen -
Eu acho que produtos da mata. Eles têm castanha, especiarias da mata. A mata deles é cheia de remédios, drogas, essências, que, seguramente, terão utilidade aqui. Eventualmente, mel, como estão fazendo no parque do Xingu. Vão técnicos lá, montam os apiários. Os cintas-largas têm mais de 30 espécies diferentes de mel. Nós conhecemos dois ou três. Agora, isso tudo precisa ser feito não artesanalmente. São trabalhos para você exportar, obter mercados, para que possam ter a vida que querem. Se quiserem continuar com o estilo deles, continuam. A tendência é mudar, mas vamos fazer com que mudem para uma vida mais calma.

Folha - Como é o temperamento dos cintas-largas?
Carmen -
Eles reagem prontamente à invasão de terra. Temem muito a invasão, os massacres, os assassinatos dos quais foram alvo.

Folha - Fora isso, como são?
Carmen -
São muito agradáveis, alegres. Gostam de farra, teatro.

Folha - Os cintas-largas já tiveram conflitos com que grupos?
Carmen -
Castanheiros, madeireiros, invasores, caçadores, garimpeiros de ouro e de diamante.

Folha - O que houve no último confronto com os garimpeiros?
Carmen -
Não creio que os garimpeiros tenham entrado de peito aberto. Teriam medo, ou só se são de outro Estado e não conhecem a fama do cinta-larga. Imagino que algum grupo tenha feito um trato com eles e que a maioria não topou por algum motivo.

Folha - Entre os cintas-largas, há assassinatos. Como eles vêem isso?
Carmen -
É muito grave. Mesmo entre eles, não é muito comum assassinatos. Quando eles têm essas incursões, é mais para assustar. Eu acho que assassinatos com esse volume [dos 29 garimpeiros] só se equivalem aos assassinatos de cintas-largas em 1962. Nunca ouvi falar de uma coisa tão violenta. É por isso que acho que os motivos não foram só de retirada dos invasores. É por isso que eu acho, não posso afirmar, que deve ter havido coisa grave, ou com mulheres, porque onde têm garimpeiros acaba havendo envolvimento com mulher, ou desacato às chefias cintas-largas, ou humilhações, porque esses garimpeiros, como também madeireiros, não têm respeito nenhum pelos índios. Eles acham que índio e bicho é mais ou menos parecido. Então, acho que deve ter havido uma falta muito grave, porque, dá para perceber, pelo o que eu vi, que eles mataram com ódio, e isso não é do estilo dos cintas-largas fazer.

Folha - Foi uma atitude extrema?
Carmen -
Extrema, em resposta a coisas muito graves que aconteceram na área e que não sabemos.

Folha - Para a senhora, os cintas-largas mataram porque as outras possibilidades não funcionaram?
Carmen -
É. Eles devem ter esgotado todas as possibilidades.

Folha - Há alguma solução viável para não continuarem as invasões?
Carmen -
Eu acho que o Estado brasileiro tem um papel fundamental aí, de realmente impedir isso, não só para os cintas-largas.

Folha - Para evitar isso, é necessária também a ajuda dos índios?
Carmen -
Eles fazem isso, mas precisaria, realmente, de alguma coisa, porque as áreas são extensas. Então, precisaria ter vários recursos. Ao primeiro sinal de invasão, ter um governo que dê uma resposta imediata, porque não adianta mandar um ofício, esperar a resposta do ofício. Agora, isso tudo também é fruto da desigualdade social no Brasil, porque esses pobres garimpeiros, tantos os mortos quantos os vivos, não estou falando dos mandantes deles, é a "peãozada" que entra. É muito triste que eles tenham morrido. Eles também vivem numa penúria. Eles resolvem arriscar para poder também ter uma vida melhor. Não são as elites que sofrem com a possibilidade de atrito com o índio. Esses coitados dos garimpeiros são praticamente pessoas paupérrimas. O problema da terra, com a reforma agrária e assentamentos bem equipados, nós não temos nada disso. O povo vive em desespero. Então, ele tenta atacar pelo lado do mais fraco, que é o lado do índio.


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