São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

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ELIO GASPARI

O futuro chegou: é a República Velha

Deu-se a humilhação intelectual dos sábios da ekipekonômica. Depois de terem estagnado a produção, arruinado a indústria e as contas nacionais, fizeram em 2002 o que os plutocratas paulistas não tiveram coragem de fazer em 1906, quando assinaram o Convênio de Taubaté. O doutor Pedro Malan (de Berkeley) termina o governo Fernando Henrique Cardoso cacifando com R$ 765 milhões da bolsa da Viúva Federal um preço de R$ 130 por saca para 6 milhões de sacas de café pelas quais o mercado está pagando R$ 110. Em 1906, a União ficou fora do negócio.
Na hora de desempregar perto de 1 milhão de pessoas na indústria paulista, os doutores falavam que o governo não tinha que se meter na política de emprego da iniciativa privada. Um barão de FFHH chegou a dizer que não havia desemprego, mas desqualificados desempregados. Quando o café de Minas Gerais roncou, felizmente os sábios abandonaram a teoria econômica e seguiram o velho manual do ano eleitoral: abriram as burras. Evitou-se a ruína da cafeicultura do sul de Minas e o abalo da economia da região do Triângulo. Se Malan tivesse o rigor que aparenta, ia-se embora do governo, mas não se associava a uma política de defesa do preço do café. Felizmente, ficou. Fez o certo, mas consumiu oito anos fazendo o contrário. No caminho, arruinou milhões de brasileiros. Pena que tenha esperado um ano, agravando a crise dos cafeicultores, levando milhares de pequenos produtores à lona.
Ao tempo do Convênio de Taubaté, os fazendeiros tiravam cinco sacas por hectare plantado, e o café representava mais de 60% das exportações nacionais. Hoje tiram 15 sacas, e o café representa 2,6% das exportações. O Brasil é outro, mas mesmo assim a atual safra foi a maior de todos os tempos, com 45 milhões de sacas.
Essa superprodução, anunciada e temida, veio numa época de preços baixos, com o mercado global em estado de anarquia. O Vietnã está vendendo seu café pela metade da cotação internacional. Os cafeicultores brasileiros estão com a corda no pescoço. Pode-se estimar que tenham vendido 10 milhões de sacas por menos de R$ 100 quando cada uma delas lhes custa R$ 130, pelas suas contas.
Pelo manual do doutor Malan, a solução seria simples: plantaste? Quebraste e dançaste. Era isso que Joaquim Murtinho (ancestral histórico da ekipekonômica) defendia na República Velha. Em 1906, o negócio foi outro. Diante de uma safra sem preço, o governo de São Paulo bancou a lavoura. Com que dinheiro? Empréstimo externo. O FMI da época, a Casa Rothschild disse que não emprestava, mas acabou-se conseguindo o financiamento alhures. Importa registrar que o Convênio de Taubaté, expressão do poder oligárquico, não tirou dinheiro do Tesouro. Agora vão tirar. Depois de conseguir um empréstimo do FMI, botaram algo como US$ 250 milhões na garantia do preço do café. No acerto de Taubaté, o governo de São Paulo comprou 8,2 milhões de sacas. No acerto de FFHH, cacifa-se o preço de 6 milhões, mas o guarda-chuva pode chegar a 10 milhões. Além disso, outros custos levarão a ajuda à lavoura do café a custar R$ 2,4 bilhões.

Burro furibundo?

A campanha já teve dois resultados práticos. Refrescou a memória de Ciro Gomes lembrando-lhe o tempo que estudou no Colégio Sobralense (particular) e ensinou-lhe que a confederação suíça é governada por um presidente e não tem primeiro-ministro. (Chama-se Kaspar Villiger, telefone: 41031-3226033.)
Vale relembrar a frase do candidato ao ouvinte da rádio Metrópole de Salvador:
"Lá [na Suíça] é parlamentarista. É só um aviso aí para esses petistas furibundos. Tem de fazer as perguntas com um pouco mais de cuidado para largar de ser burro".
O que vem a ser "um aviso"?
Por que o ouvinte era um "petista furibundo"?
Como são os "petistas furibundos"? Têm pata de bode?
Ciro Gomes acha justo que uma pessoa capaz de se enganar a respeito de um detalhe da forma de governo da Suíça seja humilhada em público, chamada de "burro" e "furibundo"?
Há dias Ciro se comparou a Juscelino Kubitschek. Pelos modos, está mais para João Figueiredo, o último (e o pior) dos generais-presidentes.

Doutor Cesar, não feche a creche

O prefeito do Rio, Cesar Maia, poderia fazer o que lhe está ao alcance: salvar a creche Jesus Bom Pastor, que atende 163 crianças de até seis anos nas favelas Novo Paraíso e Fazendinha, dentro do chamado complexo do Alemão, um dos maiores empórios do tráfico de drogas do país. No mínimo, deveria fazer isso para evitar que ficasse tão exposto um exemplo da incúria do poder público com o andar de baixo.
A instituição é uma iniciativa do padre Niraldo Lopes de Carvalho, que vive naquele pedaço dos morros de Deus há quatro dos seus 35 anos de vida. Ela funciona em dois prédios. Num ficam 95 crianças com menos de quatro anos. A prefeitura passa ao padre o equivalente a R$ 17 mensais por criança. As outras 68, mais velhas, estão fora das especificações da burocracia social do Rio de Janeiro.
O baronato pefelista do doutor Cesar só assina convênios quando as crianças têm até três anos e 11 meses. Fora daí, elas mudam de faixa e só podem ser atendidas em prédios públicos. Só se achou vaga em creche pública em Jacarepaguá, a uma distância de 20 quilômetros do Alemão. Ou as crianças conseguem um carro com motorista, ou ficam sem creche.
O padre Niraldo vendeu o carro da paróquia (um Gol 94, de R$ 4.000). Tenta salvar a obra e o emprego das cinco mulheres do bairro que ainda trabalham na creche.
A maluquice da social-burocracia foi comunicada à prefeitura e levada ao conhecimento dos presidentes da Firjan, da Fenaseg e da Associação Comercial. Aconteceu nada. Ou melhor, aconteceu uma oferta da prefeitura de R$ 2.000 por trimestre para as duas creches (R$ 13,3 mensais por criança).
Na área do Alemão e da Penha existem pelo menos 22 comunidades, com mais de 100 mil habitantes. Tudo gente pobre. O esforço da prefeitura pelas crianças com menos de quatro anos soma 810 vagas em creches. Já é pouco, não há por que destruir o trabalho de um padre que, sozinho, faz o equivalente a 20% desse esforço.
O prefeito Cesar Maia orgulha-se de ter R$ 2 bilhões em caixa, de ser um heróico cumpridor de contratos e homem de responsabilidade fiscal. Se quer fechar a creche, que o faça pessoalmente. Com R$ 60 mil por ano o padre Niraldo resolve o problema de suas crianças.
Esse dinheiro equivale a menos de 10% do que a prefeitura petista de São Paulo tirou das dotações destinadas a bibliotecas públicas e repassou ao governo petista do Rio para que se montasse a ópera Madame Butterfly no Teatro Municipal. O andar de cima pagou R$ 30 pelas cadeiras, sentando-se a uns 20 minutos de distância do Alemão, onde estão as crianças de R$ 17 mensais do padre Niraldo.

Queixe-se ao bispo

Chega de intermediários. Fale direto com o FMI. Oito cidadãos brasileiros, auditores da Receita Federal, recorreram ao doutor Horst Köhler, diretor-gerente do FMI, para pedir providências contra o estado de "penúria" em que vive a instituição e o processo de desqualificação profissional a que estão submetidos seus funcionários.
Numa carta, contaram-lhe que faltam até papel de expediente e cartuchos de impressoras. Queixam-se dos salários e lembram a Köhler que, de acordo com um trabalho do próprio FMI, se a máquina de arrecadação de uma nação é sucateada e seus funcionários são desestimulados, as metas que o FMI espera ver cumpridas acabam correndo riscos desnecessários.
Pode não dar em nada, mas, se o doutor Köhler der uma palavrinha ao doutor Pedro Parente, a turma da Receita talvez saia do regime de pão e água. A quem interessar possa, o endereço do FMI:
700 19th St. NW. Washington D.C. 20431. USA.

Entrevista

Cesar Belieny

(29 anos, baixista da banda Nocaute, de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, indicada para o prêmio Grammy Latino na categoria rap hip-hop)

-Quanto dinheiro vocês já conseguiram juntar para ir a Los Angeles assistir a entrega do Grammy, no próximo dia 18?
-Nada. Pintou gente prometendo, mas grana no bolso, nada. Na nossa banda só quem vive de música sou eu. A baterista, Andrea Wolff, faz dreadlocks, cabelo de negão. O Eddie MC, vocalista, vende roupas. Uma senhora bancou o custo dos nossos passaportes. No dia 7 e no dia 12, vamos fazer um show na Universidade do Chope, em Nova Iguaçu. Esse dinheiro vai pintar. A gente nunca pensou em ser indicado para o Grammy. A Andrea soube no metrô, na Pavuna. Um sujeito foi dar parabéns e ela disse que não era o dia do seu aniversário, mas tudo bem. Aí ele contou. Coisa estranha, fomos indicados para o Grammy dois meses depois de a Sony ter dito que não ia renovar o nosso contrato. Nosso disco foi bem de crítica e mal de venda no Rio e em São Paulo. No Norte e Nordeste, vamos bem. A banda tem dez anos e fizemos três discos. Devemos ter vendido umas 30 mil cópias. O último, que provocou a indicação, é o "CD Pirata". Ele tem uma faixa na novela "Malhação", é a música "Fim de Semana".
-A que o senhor atribui o desinteresse da Sony?
-O mercado funciona assim. Se você está numa gravadora, tem um tempo, uma grana, para acontecer. Eles investem. Deu, deu. Não deu, acabou. Partem para outro artista. Essas são as dificuldades da vida, mas nós tivemos outra, que foi o preconceito contra rap com banda. Não adianta ficar reclamando. Estamos sem grana, mas vamos a Los Angeles. Quem chegou até aqui não vai parar no meio do caminho. Ouve lá a nossa música: "Quando eu comecei a cantar rap
batia na panela.
Todo mundo era moleque,
mas tinha uma coisa em comum.
Quem fica de bobeira não vai a lugar nenhum.
Talvez eu já tivesse um emprego legal.
Eu completei o segundo grau
Mesmo assim, está difícil,
Sei lá, também podia virar marginal.
Tanto mano sangue bom se perdendo no vício.
-O senhor mora na rua 4, em Areia Branca (Belford Roxo), com seu pai serralheiro e sua mãe dona-de-casa . De onde saiu esse poderio da rua 4? Ela já produziu o Cidade Negra, o Negril e o Nocaute. Está produzindo o Cabeça de Nego, a Spank e o Fuzuê.
-A rua 4 é o "point", mas a origem, a causa desse som, dessa gente, foi o Centro Cultural Donana. Ele ficava na Piam, bairro vizinho de Areia Branca. Foi coisa da comunidade. Um mestre de capoeira, o Dida, teve a idéia e botou o nome da mãe dele. O Dida é o guitarrista do Negril. Foi lá que eu vi uma banda ao vivo pela primeira vez. Era um ensaio do Negril (KMD/5, na época). Eu pirei. Era gente com puro incentivo, jogando a turma pra frente. Foi o primeiro contato de uma geração com cultura, som, poesia, pintura, tudo. Organizavam-se oficinas de percussão, desenho para criançada, capoeira. O Dida, o Lauro Faria, do Rappa, o Reinaldo, do Fuzuê, davam aula de graça. Infelizmente, o Donana já acabou. Em quase dez anos, ajudou a fazer essa geração. O Cidade Negra, o Negril foram espelho para o Nocaute. O Nocaute é espelho para outras bandas.



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