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PERFIL DO CANDIDATO
Com biografia de pefelista que enfrentou problemas de saúde e resistências no próprio partido, Folha inicia série que, até 6ª-feira, mostrará quem são os concorrentes mais bem colocados na disputa
Sobrevivente, Tuma chega à reta final
MÁRIO MAGALHÃES
EM SÃO PAULO
Numa manhã recente, o candidato do PFL à Prefeitura de São
Paulo, Romeu Tuma, resumiu
numa frase o que considera sabotagem semeada por caciques pefelistas à sua campanha. Sorrindo
marotamente, disse: ""Eles espalhavam que eu não iria comer castanha até o fim do ano". ""Como?", perguntou um interlocutor. ""Diziam que eu iria morrer",
respondeu, sem eufemismos e
com uma gargalhada.
Dessa vez, Tuma gracejou ao falar da morte. Na véspera, para
uma platéia de empresários, chorara. Já chorou tantas vezes ao tocar no assunto que ninguém, nem
ele, se arrisca a estimar quantas.
Desde que sofreu um infarto em
junho de 1998 e colocou quatro
pontes, o tema da morte lhe é recorrente, beira a obsessão.
""Nos momentos difíceis, conversei com Deus, que atendeu o
meu pedido. Eu queria viver, eu
precisava viver. Só vim para a
campanha eleitoral porque estou
bem. Não sou um suicida."
Longe disso -a sobrevivência
de Tuma, 68, não é apenas um fenômeno físico, mas uma amostra
de longevidade política.
Delegado do Serviço de Inteligência do Dops (Departamento
Estadual de Ordem Política e Social) de São Paulo nos anos mais
sangrentos do regime militar, foi
promovido a diretor em 1977,
quando sopravam os ventos da
abertura política do presidente
Ernesto Geisel (1974-79).
Em 1983, pouco antes de o governador oposicionista Franco
Montoro extinguir o Dops, o presidente João Baptista Figueiredo
avocou para a PF os inquéritos
políticos. E deu a Tuma a Superintendência de São Paulo.
Quando a eleição da chapa Tancredo-Sarney sinalizava a queda
de Tuma, um ano depois, em
1986, o delegado deixou São Paulo
para comandar a PF da Nova República em todo o Brasil, como
seu diretor-geral.
A Polícia Federal era pouco: depois de condenar os anos Sarney
(1985-90) como um circo dos horrores, Fernando Collor de Mello
não só manteve Tuma pilotando a
PF, mas o transformou simultaneamente, em 1990, em timoneiro
da Receita Federal.
Só cairia no último ano do governo Collor, 1992, para renascer
dois anos depois com os 5,5 milhões de votos que o levaram de
volta a Brasília como senador.
Dos tempos da Superintendência em São Paulo à queda da secretaria da PF, Tuma conviveu
com nove ministros da Justiça.
MEMÓRIA SELETIVA
Para coroar a carreira, com o trono de prefeito da capital paulista,
ele recorre à memória dos seus
bons combates. A memória, porém, é pendular: seleciona o que
quer, despreza o que não quer. E,
às vezes, pode lembrar episódios
de modo bem diferente de outros
que os viveram.
O lugar de Tuma no aparato repressivo do regime militar, o papel em operações policiais que teria protagonizado e o motivo dos
mais de 90 telefonemas para o juiz
foragido Nicolau dos Santos Neto
de 1995 a 1999 são questões não-conclusivas, sombrias.
Dono de hábitos discretos, há
mais de dois anos Tuma usa exclusivamente o mesmo sapato
preto -""Botei e não tirei mais",
brinca ele-, comprado por menos de R$ 40. Os ternos do senador são igualmente simples e são
comprados por no máximo R$
200.
Ele começou a trabalhar na loja
de confecção de cama, mesa e banho da família, de origem síria, na
rua 25 de Março, no centro.
Em 1951, ingressou na polícia.
Passou a faltar tempo para a vida
de congregado mariano, mas
manteve a devoção a São Judas
Tadeu, o santo dos desesperados,
das causas impossíveis.
A despeito das glórias vividas
sob os holofotes que lhe deram
prestígio, a história de Tuma é
marcada por discrição e movimentos atrás do pano.
Ele diz ter chegado ao Dops como agente, em 1954. A partir de
1969, a polícia política paulista,
controlada pelo delegado Sérgio
Paranhos Fleury, tornou-se um
dos principais centros de combate a grupos de oposição armada.
Converteu-se também num dos
templos da tortura contra presos
políticos e fonte do desaparecimento de esquerdistas.
TORTURA
Inexiste ativista com passagem
pelo prédio do Dops, no largo General Osório, que conte ter sido
torturado por Tuma. Há testemunhos, porém, que o apontam como conivente com maus-tratos e,
no mínimo, negligente com o sumiço de corpos. Tuma diz que, na
sua gestão à frente do Dops, não
havia tortura. ""No meu tempo?
Nunca. Eu não admitia."
Ainda hoje, afirma não saber se,
quando dava expediente no Serviço de Inteligência, a truculência
imperava no Dops. ""Nós éramos
compartimentados, trabalhávamos fora. Era dentro do prédio,
mas isolados no quinto andar."
O jornalista Ivan Seixas, ex-militante do Movimento Revolucionário Tiradentes, narra outra história: ""Tuma analisava as informações e instruía os interrogatórios, que nós sabíamos como
eram. Sabia de todos os segredos.
Na sala de torturas, no terceiro
andar, se instalava o pau-de-arara. Não tinha revestimento acústico. Ouvia-se os gritos até no subsolo, onde estávamos".
Sobre os ""velhos tempos", os relatos do hoje candidato a prefeito
são de um funcionário público
cumprindo suas obrigações constitucionais, um burocrata coadjuvante na ribalta onde os choques
da história se desenvolviam.
""Já em 1969 não era assim", diz
Marta Nehring, 36, filha de um
militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), Norberto Nehring, preso em 13 de janeiro de
1969. ""Lá, meu pai disse ao meu
avô que Tuma era uma eminência
parda do Dops, mandava muito."
Norberto Nehring fugiu, foi para Cuba, voltou ao Brasil e foi assassinado em abril de 1970, sob
tortura. A morte, de acordo com a
polícia, ocorreu por suicídio. A
versão foi reafirmada dois meses
depois num documento assinado
por Romeu Tuma.
Até hoje, conta Marta Nehring,
quando o ex-delegado aparece na
TV, ela diz à filha de 9 anos: ""Esse
homem ajudou a mascarar o assassinato do seu avô".
Norberto Nehring foi enterrado
no cemitério de Vila Formosa, em
São Paulo. Com o nome falso de
Nélson Bueno, o corpo de outro
militante da ALN, Luiz Eurico Tejera Lisboa, foi para o cemitério
Dom Bosco, em Perus, também
na capital paulista. O relato oficial,
de novo, era de suicídio, em setembro de 1972. O corpo só foi encontrado em 1979. À Justiça, Tuma disse, em 1980, nada saber sobre Bueno ou Lisboa. Em 1992,
documentos descobertos no velho arquivo do Dops mostraram
que, desde 1978, Tuma tinha conhecimento de que o guerrilheiro
morrera em setembro de 1972.
A mesma lista de 1978, ""entregue em mãos" a Tuma pelo SNI
(Serviço Nacional de Informações), segundo o relatório 5.999/
78 da Agência São Paulo do órgão,
registrava a morte de mais quatro
desaparecidos.
Outro morto por tortura, Hélber José Goulart, foi, oficialmente,
vítima de tiroteio. Atestado de
óbito assinado pelo médico-legista Harry Shibata afirma que Goulart morreu às 16h de 16 de julho
de 1973. De acordo com a polícia,
ele fora baleado às 11h30.
Documento do IML-SP registra
anotação de que o corpo de Goulart deu entrada no necrotério às
8h, antes do ""tiroteio". No laudo
assinado por Shibata no dia 19,
com o número 33.088 do Instituto
Médico Legal de São Paulo, o médico informa que o exame foi requisitado pelo ""doutor Romeo
(sic) Tuma -Del. Pol. Dops".
Na entrevista à Folha, Tuma
disse não recordar o caso Goulart.
Irritou-se com o tema: ""Você (o
repórter) não disse que iria perguntar sobre isso. Iria fazer um
perfil meu, mas não sobre a minha atividade".
Antes de ser indagado sobre os
outros mortos, exclamou: ""Sobre
essa fase eu acho que não preciso
te responder nada".
O Doi-Codi de São Paulo foi o
principal organismo militar da repressão e emérita central de torturas e assassinatos. Seu diretor, de
setembro de 1970 a janeiro de
1974 foi o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido como o ""major Tibiriçá" dos
porões por quem disse ter sido
torturado por ele.
No livro ""Rompendo o Silêncio", Ustra escreveu: ""O doutor
Tuma, a partir da gestão do coronel Sérvulo (da Mota Lima, secretário da Segurança), passara a ser
o elemento de ligação entre o 2º
Exército e a secretaria".
Os anos de Dops pontuam toda
a trajetória do homem que afirma
ter sido, até assumir a direção do
órgão, um mero ""analista de informações". O SNI tinha em Tuma um informante privilegiado e
um bom amigo. Quando o então
sindicalista Luiz Inácio Lula da
Silva foi preso, em 1980, o delegado o levou para conversar com
dois ""funcionários" da Secretaria
da Segurança. Eram, na verdade,
dois agentes do SNI, que gravaram o interrogatório.
Lula diz ter sido bem tratado.
Foi liberado sigilosamente para
visitar a mãe, em coma.
O salto do superintendente da
PF de São Paulo para a direção-geral, em 1986, foi também consequência de lobby -ou imposição- de setores militares.
ESCUTA
Tuma sempre soube fazer amigos
influentes. No começo da década
de 80, o então ministro Delfim
Neto, desconfiado de escuta em
seu gabinete, em Brasília, pediu
ajuda. O delegado descobriu um
microfone dentro do mastro oco
da bandeira do Brasil. Iria tirá-lo,
Delfim impediu. Por uma semana, passou perto do mastro xingando quem pensava ser o artífice
da bisbilhotagem, o então chefe
do SNI, general Octávio Medeiros. Aí, o microfone sumiu.
Como senador, Tuma recebeu,
de 1995 a 1999, 92 telefonemas do
ex-juiz Nicolau dos Santos Neto,
acusado de ser um dos principais
responsáveis pelo desvio de R$
169 milhões da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo.
Antigo colaborador do Dops, o
ex-magistrado descreve uma
amizade com Tuma com direito a
visitas às respectivas casas. Na
versão do pefelista, contudo, haveria apenas relações institucionais entre os dois, sem empenho
para reforçar as finanças da obra.
Apesar do desgaste no caso do
fórum, ele manteve a candidatura
a prefeito. Os detratores lhe previram vida curta, sem castanhas até
o fim do ano, mas o ""xerife" não
se abateu. As castanhas do Pará,
as suas favoritas no Natal, já estão
reservadas. Romeu Tuma, afinal,
é um sobrevivente.
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