São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 2000

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PERFIL DO CANDIDATO
Com biografia de pefelista que enfrentou problemas de saúde e resistências no próprio partido, Folha inicia série que, até 6ª-feira, mostrará quem são os concorrentes mais bem colocados na disputa
Sobrevivente, Tuma chega à reta final

MÁRIO MAGALHÃES
EM SÃO PAULO

Numa manhã recente, o candidato do PFL à Prefeitura de São Paulo, Romeu Tuma, resumiu numa frase o que considera sabotagem semeada por caciques pefelistas à sua campanha. Sorrindo marotamente, disse: ""Eles espalhavam que eu não iria comer castanha até o fim do ano". ""Como?", perguntou um interlocutor. ""Diziam que eu iria morrer", respondeu, sem eufemismos e com uma gargalhada.
Dessa vez, Tuma gracejou ao falar da morte. Na véspera, para uma platéia de empresários, chorara. Já chorou tantas vezes ao tocar no assunto que ninguém, nem ele, se arrisca a estimar quantas. Desde que sofreu um infarto em junho de 1998 e colocou quatro pontes, o tema da morte lhe é recorrente, beira a obsessão.
""Nos momentos difíceis, conversei com Deus, que atendeu o meu pedido. Eu queria viver, eu precisava viver. Só vim para a campanha eleitoral porque estou bem. Não sou um suicida."
Longe disso -a sobrevivência de Tuma, 68, não é apenas um fenômeno físico, mas uma amostra de longevidade política.
Delegado do Serviço de Inteligência do Dops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) de São Paulo nos anos mais sangrentos do regime militar, foi promovido a diretor em 1977, quando sopravam os ventos da abertura política do presidente Ernesto Geisel (1974-79).
Em 1983, pouco antes de o governador oposicionista Franco Montoro extinguir o Dops, o presidente João Baptista Figueiredo avocou para a PF os inquéritos políticos. E deu a Tuma a Superintendência de São Paulo.
Quando a eleição da chapa Tancredo-Sarney sinalizava a queda de Tuma, um ano depois, em 1986, o delegado deixou São Paulo para comandar a PF da Nova República em todo o Brasil, como seu diretor-geral.
A Polícia Federal era pouco: depois de condenar os anos Sarney (1985-90) como um circo dos horrores, Fernando Collor de Mello não só manteve Tuma pilotando a PF, mas o transformou simultaneamente, em 1990, em timoneiro da Receita Federal.
Só cairia no último ano do governo Collor, 1992, para renascer dois anos depois com os 5,5 milhões de votos que o levaram de volta a Brasília como senador.
Dos tempos da Superintendência em São Paulo à queda da secretaria da PF, Tuma conviveu com nove ministros da Justiça.

MEMÓRIA SELETIVA
Para coroar a carreira, com o trono de prefeito da capital paulista, ele recorre à memória dos seus bons combates. A memória, porém, é pendular: seleciona o que quer, despreza o que não quer. E, às vezes, pode lembrar episódios de modo bem diferente de outros que os viveram.
O lugar de Tuma no aparato repressivo do regime militar, o papel em operações policiais que teria protagonizado e o motivo dos mais de 90 telefonemas para o juiz foragido Nicolau dos Santos Neto de 1995 a 1999 são questões não-conclusivas, sombrias.
Dono de hábitos discretos, há mais de dois anos Tuma usa exclusivamente o mesmo sapato preto -""Botei e não tirei mais", brinca ele-, comprado por menos de R$ 40. Os ternos do senador são igualmente simples e são comprados por no máximo R$ 200.
Ele começou a trabalhar na loja de confecção de cama, mesa e banho da família, de origem síria, na rua 25 de Março, no centro.
Em 1951, ingressou na polícia. Passou a faltar tempo para a vida de congregado mariano, mas manteve a devoção a São Judas Tadeu, o santo dos desesperados, das causas impossíveis.
A despeito das glórias vividas sob os holofotes que lhe deram prestígio, a história de Tuma é marcada por discrição e movimentos atrás do pano.
Ele diz ter chegado ao Dops como agente, em 1954. A partir de 1969, a polícia política paulista, controlada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, tornou-se um dos principais centros de combate a grupos de oposição armada. Converteu-se também num dos templos da tortura contra presos políticos e fonte do desaparecimento de esquerdistas.

TORTURA
Inexiste ativista com passagem pelo prédio do Dops, no largo General Osório, que conte ter sido torturado por Tuma. Há testemunhos, porém, que o apontam como conivente com maus-tratos e, no mínimo, negligente com o sumiço de corpos. Tuma diz que, na sua gestão à frente do Dops, não havia tortura. ""No meu tempo? Nunca. Eu não admitia."
Ainda hoje, afirma não saber se, quando dava expediente no Serviço de Inteligência, a truculência imperava no Dops. ""Nós éramos compartimentados, trabalhávamos fora. Era dentro do prédio, mas isolados no quinto andar."
O jornalista Ivan Seixas, ex-militante do Movimento Revolucionário Tiradentes, narra outra história: ""Tuma analisava as informações e instruía os interrogatórios, que nós sabíamos como eram. Sabia de todos os segredos. Na sala de torturas, no terceiro andar, se instalava o pau-de-arara. Não tinha revestimento acústico. Ouvia-se os gritos até no subsolo, onde estávamos".
Sobre os ""velhos tempos", os relatos do hoje candidato a prefeito são de um funcionário público cumprindo suas obrigações constitucionais, um burocrata coadjuvante na ribalta onde os choques da história se desenvolviam.
""Já em 1969 não era assim", diz Marta Nehring, 36, filha de um militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), Norberto Nehring, preso em 13 de janeiro de 1969. ""Lá, meu pai disse ao meu avô que Tuma era uma eminência parda do Dops, mandava muito."
Norberto Nehring fugiu, foi para Cuba, voltou ao Brasil e foi assassinado em abril de 1970, sob tortura. A morte, de acordo com a polícia, ocorreu por suicídio. A versão foi reafirmada dois meses depois num documento assinado por Romeu Tuma.
Até hoje, conta Marta Nehring, quando o ex-delegado aparece na TV, ela diz à filha de 9 anos: ""Esse homem ajudou a mascarar o assassinato do seu avô".
Norberto Nehring foi enterrado no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo. Com o nome falso de Nélson Bueno, o corpo de outro militante da ALN, Luiz Eurico Tejera Lisboa, foi para o cemitério Dom Bosco, em Perus, também na capital paulista. O relato oficial, de novo, era de suicídio, em setembro de 1972. O corpo só foi encontrado em 1979. À Justiça, Tuma disse, em 1980, nada saber sobre Bueno ou Lisboa. Em 1992, documentos descobertos no velho arquivo do Dops mostraram que, desde 1978, Tuma tinha conhecimento de que o guerrilheiro morrera em setembro de 1972.
A mesma lista de 1978, ""entregue em mãos" a Tuma pelo SNI (Serviço Nacional de Informações), segundo o relatório 5.999/ 78 da Agência São Paulo do órgão, registrava a morte de mais quatro desaparecidos.
Outro morto por tortura, Hélber José Goulart, foi, oficialmente, vítima de tiroteio. Atestado de óbito assinado pelo médico-legista Harry Shibata afirma que Goulart morreu às 16h de 16 de julho de 1973. De acordo com a polícia, ele fora baleado às 11h30.
Documento do IML-SP registra anotação de que o corpo de Goulart deu entrada no necrotério às 8h, antes do ""tiroteio". No laudo assinado por Shibata no dia 19, com o número 33.088 do Instituto Médico Legal de São Paulo, o médico informa que o exame foi requisitado pelo ""doutor Romeo (sic) Tuma -Del. Pol. Dops".
Na entrevista à Folha, Tuma disse não recordar o caso Goulart. Irritou-se com o tema: ""Você (o repórter) não disse que iria perguntar sobre isso. Iria fazer um perfil meu, mas não sobre a minha atividade".
Antes de ser indagado sobre os outros mortos, exclamou: ""Sobre essa fase eu acho que não preciso te responder nada".
O Doi-Codi de São Paulo foi o principal organismo militar da repressão e emérita central de torturas e assassinatos. Seu diretor, de setembro de 1970 a janeiro de 1974 foi o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido como o ""major Tibiriçá" dos porões por quem disse ter sido torturado por ele.
No livro ""Rompendo o Silêncio", Ustra escreveu: ""O doutor Tuma, a partir da gestão do coronel Sérvulo (da Mota Lima, secretário da Segurança), passara a ser o elemento de ligação entre o 2º Exército e a secretaria".
Os anos de Dops pontuam toda a trajetória do homem que afirma ter sido, até assumir a direção do órgão, um mero ""analista de informações". O SNI tinha em Tuma um informante privilegiado e um bom amigo. Quando o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva foi preso, em 1980, o delegado o levou para conversar com dois ""funcionários" da Secretaria da Segurança. Eram, na verdade, dois agentes do SNI, que gravaram o interrogatório.
Lula diz ter sido bem tratado. Foi liberado sigilosamente para visitar a mãe, em coma.
O salto do superintendente da PF de São Paulo para a direção-geral, em 1986, foi também consequência de lobby -ou imposição- de setores militares.

ESCUTA
Tuma sempre soube fazer amigos influentes. No começo da década de 80, o então ministro Delfim Neto, desconfiado de escuta em seu gabinete, em Brasília, pediu ajuda. O delegado descobriu um microfone dentro do mastro oco da bandeira do Brasil. Iria tirá-lo, Delfim impediu. Por uma semana, passou perto do mastro xingando quem pensava ser o artífice da bisbilhotagem, o então chefe do SNI, general Octávio Medeiros. Aí, o microfone sumiu.
Como senador, Tuma recebeu, de 1995 a 1999, 92 telefonemas do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, acusado de ser um dos principais responsáveis pelo desvio de R$ 169 milhões da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo.
Antigo colaborador do Dops, o ex-magistrado descreve uma amizade com Tuma com direito a visitas às respectivas casas. Na versão do pefelista, contudo, haveria apenas relações institucionais entre os dois, sem empenho para reforçar as finanças da obra.
Apesar do desgaste no caso do fórum, ele manteve a candidatura a prefeito. Os detratores lhe previram vida curta, sem castanhas até o fim do ano, mas o ""xerife" não se abateu. As castanhas do Pará, as suas favoritas no Natal, já estão reservadas. Romeu Tuma, afinal, é um sobrevivente.



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