São Paulo, Segunda-feira, 25 de Outubro de 1999
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ENTREVISTA DA 2ª
Garotinho tem mais chances que Ciro, afirma cientista político FERNANDO DE BARROS E SILVA
enviado especial a Caxambu (MG)

Ciro Gomes não passa hoje de um factóide, o governador do Rio, Anthony Garotinho, é um nome com grandes chances de ganhar a eleição presidencial em 2002, e Marta Suplicy, virtual candidata do PT à prefeitura de São Paulo, seria um nome mais viável eleitoralmente que o de Lula para a Presidência. São "impressões" do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, autor de 13 livros, professor especial do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e coordenador do Laboratório de Estudos Experimentais da Universidade Cândido Mendes, no Rio.
Wanderley Guilherme, como é chamado, acaba de participar do 23º Encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Ciências Sociais), que terminou sábado em Caxambu (sul de Minas Gerais).
Na entrevista que segue, realizada na sexta-feira, ele analisa a "apatia" dos colegas que verificou durante o encontro, diz que a geração de FHC está obsoleta intelectualmente e defende, atemorizado, que "a população brasileira é absolutamente dispensável para o capitalismo brasileiro", cujo dinamismo é garantido por uma minoria ridícula em termos relativos, mas que em termos absolutos é do tamanho do mercado interno inglês.

Folha - Esperava-se dessa Anpocs, um encontro nacional de cientistas sociais, onde estiveram reunidos representantes da nata da intelectualidade brasileira, alguma discussão mais acirrada sobre o governo FHC e a conjuntura do país, como se sabe nada boa. A sensação geral, porém, é a de que todos estão prostrados, ou anestesiados. Por outro lado, parece que o conservadorismo e a defesa de FHC se tornaram mais desinibidos. O que está acontecendo com os intelectuais?
Wanderley Guilherme dos Santos -
A Anpocs refletiu o clima político do país todo. A população, particularmente o público atento, interessado, me parece mais apática do que contra. Eu tenho dúvida de que essas pesquisas de opinião sobre o governo estejam refletindo a realidade.
Tenho dúvida de que aquilo que aparece como rejeição ao governo seja isso mesmo. Acho que é porque não há no questionário a alternativa da indiferença. Essas pesquisas, a meu ver, expressam muito mais apatia e indiferença do que objeção. É apenas uma suspeita, e, se assim for, a Anpocs está sintonizada com o clima do país. Há falta de curiosidade para saber o que está acontecendo, quase nenhum dos meus colegas busca o jornal. Em relação às discussões da Anpocs, em parte elas foram afetadas por conta disso que acabo de dizer, em parte por conta da organização do evento.
Nunca houve um nível tão baixo de mesas discutindo política da ordem do dia. A reunião está muito mais acadêmica, no sentido convencional da palavra, do que em outras oportunidades. Há falta de mobilização, falta de envolvimento mais apaixonado, que é necessário em política.

Folha - O governo tem responsabilidade sobre essa falta de envolvimento dos intelectuais?
Wanderley Guilherme -
Em parte, essa desmobilização se deve ao sucesso excessivo e demasiado da política oficial, desde que FHC era ministro da Fazenda, de desqualificar, desmoralizar e levar ao silêncio qualquer movimento de oposição. Isso foi muito bem-sucedido, com a cumplicidade dos meios de comunicação. Depois de mais de quatro anos dessa prática sistemática, isso provoca um sentimento de impotência mesmo. Percebeu-se, depois de três ou quatro anos, que a capacidade de afetar ou influir era apenas residual. Exceto, é bom dizer, em relação ao MST, aí o governo presta atenção. O governo exerceu o poder com tanta radicalidade pelas vias institucionais que a novidade da oposição surgiu por vias extra-institucionais.

Folha - Como o sr. analisa a atuação do MST?
Wanderley Guilherme -
Eu acho extremamente importante. Cria uma novidade na estrutura convencional de fazer política, reintroduz uma taxa de incerteza na política que é necessária para que ela seja tolerante. Se não houver incerteza, não há tolerância. É preciso haver incertezas quanto aos resultados, aí você tem que negociar, conversar, ouvir.

Folha - Falou-se muito nos últimos anos da existência de um "pensamento único", isso se tornou quase uma ladainha. Faltam de fato alternativas ou falta poder social para viabilizá-las politicamente?
Wanderley Guilherme -
Há um problema de formulação de alternativas, sim, e não apenas à oposição brasileira, mas também para o governo brasileiro e para os governos e as situações em qualquer país democrático hoje. O governo atual também não tem alternativa ao que está fazendo. Como também não teria a oposição, qualquer uma, durante três ou quatro anos. Esse é, portanto, um problema de qualquer governo, como administrar um mundo do jeito que está. Além disso, aconteceu no Brasil um movimento inédito de convencimento, de persuasão de uma porcentagem bastante significativa de quadros da academia que hoje deveria estar na oposição, mas que está no poder. Como se este governo estivesse implementando as teses que eles defendiam, o que não é verdade. Houve uma mudança de percepção deles, algo aconteceu, mas não foi a política que mudou. Quando pessoas que eram consultadas para se saber qual era a opinião da oposição se tornam porta-vozes de políticas governamentais se é inclinado a acreditar que há um pensamento único.

Folha - O cientista político José Luís Fiori, em entrevista recente à Folha, disse que a geração de pensadores a que pertence FHC acabou intelectualmente com o fracasso histórico desse governo. Disse também que FHC é vítima do que fez, não do que deixou de fazer, e que seu projeto de poder estaria esgotado. O sr. concorda com cada uma dessas análises?
Wanderley Guilherme -
Se não existisse o governo FHC aconteceria a mesma coisa com essa intelectualidade? Eu diria que sim. Essa geração está obsoleta, ela não se modernizou, não se atualizou, independentemente do fato de FHC estar no governo. Não vejo essas pessoas buscando se atualizar ou inovar em termos de pesquisa, conceito e reflexão. Estão desatualizados nas ciências sociais e inteiramente superados. Concordo, portanto, com o Fiori, mas por outras razões.
Em relação ao governo FHC, o que Fiori diz é parcialmente verdadeiro. Isso acontece com qualquer governo. Com Juscelino foi a mesma coisa. Ele também foi vítima de seu próprio sucesso, estava superado pelo país que criou. E isso por uma razão que qualquer cientista social bem informado sabe: os resultados de uma política que é implementada numa sociedade complexa vão muito além daquilo que se imagina. Nunca acontece só aquilo que se quer que aconteça. Ninguém controla o sistema de causalidades que opera na sociedade.

Folha - Mas em que o governo FHC é bem-sucedido?
Wanderley Guilherme -
Ainda não terminamos o primeiro ano do segundo mandato. Durante o primeiro mandato, ele governou como bem quis e exerceu esse poder com radicalidade. Ele não teve derrotas. Collor teve derrotas. FHC fez o que se propôs fazer, e nesse sentido não acredito que ele esteja superado por si mesmo.

Folha - Em que sentido a geração de FHC está desatualizada intelectualmente? Quais são as pesquisas de ponta ou mais interessantes nas ciências sociais brasileiras, se é que existem?
Wanderley Guilherme -
No último século e meio, o sistema de causalidades que operava nas sociedades era mais ou menos conhecido. Sabia-se razoavelmente bem como os partidos se criavam, como funcionavam, como se tomavam decisões dentro dos Executivos, como funcionava a política, como o eleitorado decidia, como se formava a opinião política etc. O funcionamento de uma democracia que não era de massa, na verdade era um sistema representativo oligárquico, foi muito bem mapeado. Nosso equívoco começou por chamar de democracia representativa o que não era senão uma representação oligárquica. A democracia não sabíamos como funcionava porque não existia ainda. É coisa dos últimos 20, 30 anos.

Folha - Democracias de massa são um fenômeno novo e ainda desconhecido, é isso?
Wanderley Guilherme -
Sim. Vou dar um exemplo. Margareth Tatcher, do ponto de vista da análise convencional, durante todo o período em que foi reacionária, antipopular, dura, a dama-de-ferro, durante esse período em que dizimou os sindicatos e liderou o desmonte de uma constelação de poderes que tinha uma dinâmica já conhecida e estudada, ela teve o apoio daqueles que sofreram muito com isso. Quando a Inglaterra começou a se recuperar, quando passou a ter voz outra vez na comunidade européia, enfim, quando o país passou a colher os frutos daquele governo, Tatcher perdeu o apoio popular. Que fenômeno é esse? Não sabemos explicar. A anatomia da sociedade contemporânea é distinta do que era até há pouco. Continuamos a chamar de fígado o que não é mais fígado. Essa é a agenda das ciências sociais contemporâneas, para a qual não estamos prestando muita atenção.

Folha - O sr. está atribuindo ao momento atual uma mutação de larga escala, civilizacional.
Wanderley Guilherme -
A mudança é enorme, estamos diante de algo muito inédito. Nos habituamos a chamar de democráticos países que tinham apenas sistemas representativos. Estavam excluídos dessa representação, que chamo de oligárquica, uma massa enorme, por barreiras de cor, de idade, de renda, de gênero, de estado civil, de religião. Ninguém participava, só os oligarcas, e para eles o sistema era universal. Na Inglaterra, por exemplo, só em 1918 os homens adultos adquirem a universalidade do voto, que até então tinha barreiras de renda; as mulheres só passam a votar em 1923. Na Suíça, as mulheres só passam a poder votar em 1971. Alguns intelectuais, como Samuel Huntington, acham que estamos vivendo a terceira onda democrática. Que terceira? Estamos começando a primeira ainda.

Folha - No caso brasileiro , a universalização da democracia precisa ser confrontada com uma exclusão social que é a maior do planeta. Como fica?
Wanderley Guilherme -
É verdade. Há um Muro de Berlim inconsútil no Brasil. O meu temor é o seguinte: nos países civilizados, num determinado momento da acumulação capitalista foi preciso alargar o mercado para continuar a haver essa acumulação. Isso significou salários mais altos, distribuição de renda, prestação de serviços etc. Pois bem, por alguns cálculos que é possível fazer, e eu mesmo já fiz, meio de brincadeira, hoje a população bem posta da sociedade brasileira é uma minoria desprezível em relação à população do país, mas, do ponto de vista absoluto, ela é do tamanho do mercado interno inglês. O que isso significa? Significa que, teoricamente, esse país pode ter um imenso dinamismo econômico com base estritamente na sua minoria relativa, que é o que esse governo está fazendo. Essa minoria é um baita mercado. Meu temor é que o país ingresse por esse caminho, do qual é muito difícil sair depois. O povo brasileiro é absolutamente dispensável para o capitalismo brasileiro.

Folha - O sr. publicou em 1994 um livrinho polêmico, chamado "Regresso - Máscaras Institucionais do Liberalismo Oligárquico", em que atacava o pendor do tucanato pelas reformas institucionais, como se fosse possível resolver os problemas do país a partir de uma reengenharia político-institucional com baixa temperatura democrática, sem muita participação social. Os tucanos continuam esfriando a política?
Wanderley Guilherme -
É a versão contemporânea do udenismo. A UDN acreditava nessa reificação institucional. Sempre ignorou a dinâmica real da sociedade. Isso está hoje no tucanismo, mas também no PFL e em parte do PT.

Folha - Como o sr. está vendo toda essa agitação em torno da candidatura Ciro Gomes?
Wanderley Guilherme -
Está muito cedo para isso tudo. Por enquanto, Ciro Gomes é um factóide, não corresponde a nada criado dentro de uma dinâmica política sólida. Achar que os partidos não existem no Brasil é uma bobagem. Se não tiver partido, não é eleito. Isso é assim desde 1945. O PPS não existe como estrutura partidária. Acreditar nisso é mais ou menos como acreditar que Jânio Quadros se elegeu em 1960 pelo PTN, quando foi eleito pela UDN e pelo PSD, que estrangulou a candidatura do general Lott. O Collor também não se elegeria pelo PRN se não tivesse o PFL e o PMDB, que deu um golpe no doutor Ulisses (Guimarães) em 89. O Ciro Gomes tira voto do PT, mas não acredito que chegue ao segundo turno. Os conservadores brasileiros estão maduros, não precisam apostar num candidato do tipo Jânio Quadros.

Folha - E Anthony Garotinho é um nome forte para 2002?
Wanderley Guilherme -
É muito mais provável uma candidatura desse tipo colar. Entre ele e Ciro, de longe Garotinho tem mais chances. Ele está comendo o Brizola, já levou uma parte do PT, do PMDB, não é brincadeira, não. Ele tem estrutura, tem trajetória, é um nome forte.

Folha - E o PT, tem alguma chance em 2002?
Wanderley Guilherme -
Acho muito difícil o Lula passar dos 30 milhões de votos. Já a Marta Suplicy é outra coisa. Na última eleição presidencial, achei que a chapa Sepúlveda Pertence e Marta Suplicy como vice tinha chance de ganhar. O Sepúlveda não foi candidato porque ficou esperando em casa para ser chamado, naquela postura de jurista. Se ele tivesse sido mais partidário talvez tivesse emplacado. E a Marta, acredito que ela incendeia este país. O povão gosta de rico, não tem muito jeito, não (risos).


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