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JANIO DE FREITAS
A invasão do jornalismo
Não há dúvida de que os diálogos seriam atos privados. Mas não significa que ocorressem em privacidade
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A RELAÇÃO entre jornalismo e
invasão de privacidade é muito mais complexa do que aparenta na intensa discussão, desde
quinta-feira, a partir do diálogo de e-mails publicado pelo "Globo", que os
captou fotografando os computadores de dois ministros em sessão do
Supremo Tribunal Federal.
Onde haja liberdade de imprensa,
não consta que jamais se tenha ao
menos esboçado solução satisfatória, em teoria ou na prática, para o
conflito entre jornalismo/interesse
público, de uma parte, e sigilo/interesse estrito, de outra. A dubiedade
domina essa fronteira. Os casos de
nitidez indiscutível de invasão, antes escassos, com a permissividade
da internet às inserções mais levianas, ou criminosas mesmo, na "rede" tornaram-se tão vulgares quanto impunes.
As reações condenatórias referem-se, portanto, ao jornalismo impresso. E, no caso, nem elas guardam nitidez conceitual, jurídica ou
intelectual. As fotografias dos computadores, feitas à distância dos dois
ministros, e a publicação dos diálogos foram definidas por Nelson Jobim como "interceptação de comunicação" e "intromissão anticonstitucional a um Poder da República".
Interceptação não foi. Como a todo ministro da Defesa conviria saber, interceptar é interferir em um
percurso pretendido, seja de um
avião, de uma tropa, de uma mensagem, de carga, entre inúmeros possíveis. Houve constatação e documentação do constatado. Sem intervenção alguma na livre troca de mensagens entre os dois ministros.
Já a eloqüente "intromissão anticonstitucional a um Poder da República", lembra logo alguma coisa, antes de sujeitar-se ao reparo de que as
fotos e a publicação, tanto não se
"intrometeram" de forma alguma
em Poder nenhum, que o próprio
Supremo Tribunal Federal as considerou referentes a mensagens apenas pessoais, desprovidas de conotação oficial, e por isso dispensou-se
de toda manifestação a respeito. A
"intromissão anticonstitucional" de
Nelson Jobim lembra logo que se
trata do autor, valendo-se da tarefa
de revisor gráfico, da intromissão no
texto da atual Constituição de artigos não aprovados, e nem ao menos
conhecidos, pela Constituinte de
1988. O que não impediu o autor da
autêntica "intromissão anticonstitucional" de chegar a presidente o
STF -fato que, se não o define, porque já se definira, pode definir o país.
Em nota, o presidente da Ordem
dos Advogados do Brasil (nome historicamente tomado como sinônimo de defesa da liberdade de informação) pôs o assunto sob uma comparação que não sei se mais surpreendente ou mais insultuosa para
o jornalismo: "O Brasil não pode virar um "Big Brother'". Seja o daqui
ou a matriz plagiada, o "Big Brother"
faz parte do processo de imbecilização imposto pelo método de nivelamento por baixo, muito adotado em
meios de comunicação, para mais
faturar em publicidade com o maior
número de telespectadores/ouvintes/leitores. É impossível que Cezar
Britto não se tenha inquietado com
a evidência, proporcionada pelas fotos e publicação dos diálogos, de que
a aposentadoria precipitada do hoje
ex-ministro Sepúlveda Pertence e a
escolha de seu substituto têm, até
agora, injunções políticas e partidárias que se sobrepõem aos critérios
apropriados para o Supremo.
Estar próximo de quem fala ao telefone e, notado o interesse público
do que é dito, noticiá-lo; ou ouvir, de
fora de um gabinete, um diálogo de
interesse público e noticiá-lo -são
atos de invasão de privacidade ou de
função do jornalismo? Essas e situações semelhantes ocorrem todos os
dias, aqui e pelo mundo afora, desde
que o jornalismo é jornalismo. E haverá diferença essencial, para a função do jornalismo e para o interesse público, entre o que é ouvido sem
uso de interferência física e o que é
lido em computadores de tela voltada para o público?
Em certa medida, não há dúvida
de que os diálogos de tais situações
seriam atos privados. Mas, embora a
contribuição de uma palavra para a
outra, por serem privados não significa que ocorressem em privacidade.
Foram deixados por seus autores ao
alcance de terceiros. E não importa
quantos terceiros.
Os ministros Cármen Lúcia Rocha e Ricardo Lewandowski nada
escreveram, nos diálogos fotografados e publicados, que os comprometesse, moralmente, como pessoas ou
como magistrados. Se foram desavisados, o foram por conta própria. O
que torna injusto atribuir ao repórter-fotográfico Roberto Stuckert e
ao seu jornal menos do que a alta
qualidade do jornalismo que praticaram. Ou seja, da função pública
que têm e exerceram.
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