São Paulo, Quinta-feira, 26 de Agosto de 1999
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Nosso rumo é um outro Brasil

VICENTE PAULO DA SILVA
especial para a Folha

Já estamos em Brasília. Chegamos de vários Estados, da roça e da cidade, das vielas, das favelas, das grandes avenidas, dos locais de trabalho, das escolas e faculdades, dos sindicatos, dos partidos políticos. Somos empregados e desempregados. Somos donas-de-casa e aposentados. Pequenos empresários e pequenos agricultores. De todas as raças, de todos os credos, de todos os cantos. Somos de todo o Brasil. Temos nome, família e sonhos.
Temos dignidade. Temos vergonha na cara e esperança no coração. Temos, sobretudo, amor à pátria. Viemos abraçados e emocionados. Viemos dar um grande grito, para que nos ouçam os que governam de costas para o povo. Chega de desemprego, de miséria, de crianças abandonadas pelas ruas. Chega de corrupção e impunidade. Chega de ajuda a banqueiros falidos, saúde e educação precárias.
Viemos protestar energicamente e pacificamente. E viemos apresentar propostas concretas, tantas vezes desconsideradas pelo descompromisso e pela arrogância do governo.
Mas por que a marcha a Brasília provocou tanta ira e esdrúxulas reações do presidente da República e seus aliados?
O presidente errou e continua errando. Na verdade, demonstra medo do povo. Com a sua ausência de política econômica e social, deixa à margem a maioria do povo brasileiro. E chama de "sem rumo" os que reagem em defesa de seus direitos. Eis uma característica do presidente da República: usar uma retórica provocativa, pobre e inconsistente, como "nhenhenhém, neobobos, eles não têm propostas e vagabundos". E agora qualifica de "golpistas" os que exercem o direito democrático de reação, reivindicação, mobilização e principalmente proposição.
Golpismo é a farsa do julgamento dos assassinos dos sem-terra no Pará. No dia seguinte ao massacre, em meio a poças de sangue e lágrimas, o general Cardoso me garantiu que a impunidade não prevaleceria. Isso me foi confirmado pelo presidente da República, dois dias depois.
Golpismo é a imposição da CPMF. É o Banco Central derramar rios de dinheiro nos bolsos dos banqueiros. É governar por meio de medidas provisórias, é colocar nos servidores públicos a culpa de sua própria incapacidade. É precarizar as condições de trabalho em nome da "geração de empregos". É comprometer a soberania nacional com privatizações entreguistas e permitir que o FMI venha revirar nossas contas. É mudar as regras do jogo eleitoral. É tentar aprovar uma Previdência que prejudica os trabalhadores, ferindo o que havia sido debatido com as centrais sindicais. Isso é golpismo.
Mas quem governa o governo? O FMI? Certamente não são as nossas reivindicações sociais, embora tenham sido bandeiras da campanha eleitoral.
"A fome é ontem", dizia a poeta chilena Gabriela Mistral. O povo brasileiro não pode ficar toda a vida esperando promessas, enquanto cresce a prostituição infantil e juvenil, a violência assola nossas comunidades, a droga "realiza" os sonhos da juventude, o profissional é colocado na sarjeta e os aposentados são desrespeitados.
Mas não perdemos a esperança. Acreditamos na nossa capacidade de vencer desafios. Lutamos hoje para poder nos alegrar com pão na mesa, cultura no espírito, saúde no corpo, trabalho e salário dignos, terra e moradia.
O Brasil está cansado. Doente e endividado. Faminto e ameaçado. O Brasil merece chegar aos 500 anos com algo melhor que essa situação vergonhosa. Não queremos o Brasil com o infame título de campeão mundial em desigualdade social. Nosso Brasil é outro. Nosso Brasil é povo. Por isso estamos aqui. Por isso somos 100 mil. Por enquanto...


Vicente Paulo da Silva, 43, metalúrgico, é presidente da Central Única dos Trabalhadores e do Inspir (Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial). Presidiu o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (87-94).


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