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Nosso rumo é um outro Brasil
VICENTE PAULO DA SILVA
especial para a Folha
Já estamos em Brasília. Chegamos de vários Estados, da roça e
da cidade, das vielas, das favelas,
das grandes avenidas, dos locais
de trabalho, das escolas e faculdades, dos sindicatos, dos partidos
políticos. Somos empregados e desempregados. Somos donas-de-casa e aposentados. Pequenos empresários e pequenos agricultores.
De todas as raças, de todos os credos, de todos os cantos. Somos de
todo o Brasil. Temos nome, família e sonhos.
Temos dignidade. Temos vergonha na cara e esperança no coração. Temos, sobretudo, amor à pátria. Viemos abraçados e emocionados. Viemos dar um grande grito, para que nos ouçam os que governam de costas para o povo.
Chega de desemprego, de miséria,
de crianças abandonadas pelas
ruas. Chega de corrupção e impunidade. Chega de ajuda a banqueiros falidos, saúde e educação
precárias.
Viemos protestar energicamente
e pacificamente. E viemos apresentar propostas concretas, tantas
vezes desconsideradas pelo descompromisso e pela arrogância do
governo.
Mas por que a marcha a Brasília
provocou tanta ira e esdrúxulas
reações do presidente da República e seus aliados?
O presidente errou e continua errando. Na verdade, demonstra
medo do povo. Com a sua ausência de política econômica e social,
deixa à margem a maioria do povo brasileiro. E chama de "sem rumo" os que reagem em defesa de
seus direitos. Eis uma característica do presidente da República:
usar uma retórica provocativa,
pobre e inconsistente, como "nhenhenhém, neobobos, eles não têm
propostas e vagabundos". E agora
qualifica de "golpistas" os que
exercem o direito democrático de
reação, reivindicação, mobilização e principalmente proposição.
Golpismo é a farsa do julgamento dos assassinos dos sem-terra no
Pará. No dia seguinte ao massacre, em meio a poças de sangue e
lágrimas, o general Cardoso me
garantiu que a impunidade não
prevaleceria. Isso me foi confirmado pelo presidente da República,
dois dias depois.
Golpismo é a imposição da
CPMF. É o Banco Central derramar rios de dinheiro nos bolsos dos
banqueiros. É governar por meio
de medidas provisórias, é colocar
nos servidores públicos a culpa de
sua própria incapacidade. É precarizar as condições de trabalho
em nome da "geração de empregos". É comprometer a soberania
nacional com privatizações entreguistas e permitir que o FMI venha
revirar nossas contas. É mudar as
regras do jogo eleitoral. É tentar
aprovar uma Previdência que prejudica os trabalhadores, ferindo o
que havia sido debatido com as
centrais sindicais. Isso é golpismo.
Mas quem governa o governo? O
FMI? Certamente não são as nossas reivindicações sociais, embora
tenham sido bandeiras da campanha eleitoral.
"A fome é ontem", dizia a poeta
chilena Gabriela Mistral. O povo
brasileiro não pode ficar toda a vida esperando promessas, enquanto cresce a prostituição infantil e
juvenil, a violência assola nossas
comunidades, a droga "realiza" os
sonhos da juventude, o profissional é colocado na sarjeta e os aposentados são desrespeitados.
Mas não perdemos a esperança.
Acreditamos na nossa capacidade
de vencer desafios. Lutamos hoje
para poder nos alegrar com pão
na mesa, cultura no espírito, saúde
no corpo, trabalho e salário dignos, terra e moradia.
O Brasil está cansado. Doente e
endividado. Faminto e ameaçado.
O Brasil merece chegar aos 500
anos com algo melhor que essa situação vergonhosa. Não queremos
o Brasil com o infame título de
campeão mundial em desigualdade social. Nosso Brasil é outro.
Nosso Brasil é povo. Por isso estamos aqui. Por isso somos 100 mil.
Por enquanto...
Vicente Paulo da Silva, 43, metalúrgico, é
presidente da Central Única dos Trabalhadores e do Inspir (Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial). Presidiu o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (87-94).
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