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ARTIGOS
A marcha e a democracia
JOSÉ CARLOS DIAS
Especial para a Folha
Anistia! Há 20 anos iniciou-se
com esse grito a reconstrução da
ordem jurídica, devastada durante o período em que muitos creram, equivocadamente, no uso da
força a serviço da democracia. Como advertia Alceu Amoroso Lima, o recurso à força requer sempre mais e mais força para sustentar-se, até o ponto de tornar impossível a vida social.
A nação não poderia permanecer dividida. A anistia veio para
fazer esquecer, em parte e no
mundo do Direito, os agravos, as
injustiças.
Ao longo desses últimos 20 anos,
a harmonia jurídica vem sendo
restabelecida entre os brasileiros.
Inegavelmente, já existe liberdade
política, submetido o exercício da
força aos civilizados valores da cidadania.
A injustiça social, não há como
negar, persiste, porém agravada
pelas restrições econômicas de caráter internacional, a exigir dos
espíritos solidários cada dia maior
empenho na luta política.
Mas o rumo da ação política
não há de ser o do radicalismo,
com feição de força, que essa nós,
militantes da democracia, temos
de rejeitar. Pelo contrário, havemos de tender para o debate convergente, para a articulação que
favoreça o progredir contra a injustiça social, sem o perigo do retrocesso.
Particularmente se espera, dos
que até 20 anos atrás estiveram
envolvidos pessoalmente, irmanados, na luta contra a ditadura
-políticos cassados, presos políticos, defensores dos perseguidos
políticos- que não se confundam
neste agudo momento, não tolerem que individuais pretensões de
mando político se misturem com
as mais que justas reivindicações
populares por emprego, por desenvolvimento econômico, por paz
social.
As propostas de mudança, de
correção de diretrizes, devem ser
manifestadas com liberdade, reforçados os argumentos, aprimoradas as fórmulas, bem-vindos até
os protestos enfáticos, que isso tudo são usos democráticos.
Deve-se, no entanto, condenar a
exploração demagógica, diga-se
mesmo, a covardia demagógica,
que é empunhar irresponsavelmente, em momento crítico, a velha bandeira dos trabalhadores,
com olhos voltados, na verdade,
para menores e individuais aspirações políticas, cínica usurpação
da chamada "Marcha dos 100
Mil".
Essa marcha coloca em discussão as importantes lições desses 20
anos de construção da democracia: a necessidade da convivência
entres os diversos segmentos e
agentes políticos, todos perseverando no exercício da responsabilidade.
O que se espera dos antigos aliados das refregas contra a ditadura, em favor da democracia, é que
se articulem em torno de propostas para solução dos problemas,
em verdadeira convivência democrática. Que tenham a sensatez de
não aderir aos fáceis insultos ao
governo, quase um infantil processo de transferência de responsabilidade.
O barulho feito pelos chamados
"sem-rumo", imiscuídos entre
idealistas lideranças e cidadãos
caminhantes, sufoca muita gente
séria e bem intencionada, que poderia colaborar com o diálogo
construtivo entre oposição e governo. Tristemente para nosso
país, muitas pessoas fundamentais para a construção do debate
democrático acabam relegadas ao
coadjuvante papel de engrossar o
coro ou a marcha.
O que se espera dos governantes? Que saibamos celebrar a anistia, garantindo o direito de reunião e livre manifestação do pensamento, o respeito ao poder legitimamente constituído pelo povo.
Dos opositores, que sejam consequentes, zeladores da democracia,
demonstrando, como expectantes
do poder, a responsabilidade para
o seu virtual exercício.
José Carlos Dias, 60, advogado criminalista,
é ministro da Justiça. Foi presidente da Comissão Justiça e Paz de São Paulo (1979 a
1982) e secretário da Justiça do Estado de
São Paulo (governo Franco Montoro).
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