São Paulo, Quinta-feira, 26 de Agosto de 1999
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ARTIGOS
A marcha e a democracia

JOSÉ CARLOS DIAS
Especial para a Folha

Anistia! Há 20 anos iniciou-se com esse grito a reconstrução da ordem jurídica, devastada durante o período em que muitos creram, equivocadamente, no uso da força a serviço da democracia. Como advertia Alceu Amoroso Lima, o recurso à força requer sempre mais e mais força para sustentar-se, até o ponto de tornar impossível a vida social.
A nação não poderia permanecer dividida. A anistia veio para fazer esquecer, em parte e no mundo do Direito, os agravos, as injustiças.
Ao longo desses últimos 20 anos, a harmonia jurídica vem sendo restabelecida entre os brasileiros. Inegavelmente, já existe liberdade política, submetido o exercício da força aos civilizados valores da cidadania.
A injustiça social, não há como negar, persiste, porém agravada pelas restrições econômicas de caráter internacional, a exigir dos espíritos solidários cada dia maior empenho na luta política.
Mas o rumo da ação política não há de ser o do radicalismo, com feição de força, que essa nós, militantes da democracia, temos de rejeitar. Pelo contrário, havemos de tender para o debate convergente, para a articulação que favoreça o progredir contra a injustiça social, sem o perigo do retrocesso.
Particularmente se espera, dos que até 20 anos atrás estiveram envolvidos pessoalmente, irmanados, na luta contra a ditadura -políticos cassados, presos políticos, defensores dos perseguidos políticos- que não se confundam neste agudo momento, não tolerem que individuais pretensões de mando político se misturem com as mais que justas reivindicações populares por emprego, por desenvolvimento econômico, por paz social.
As propostas de mudança, de correção de diretrizes, devem ser manifestadas com liberdade, reforçados os argumentos, aprimoradas as fórmulas, bem-vindos até os protestos enfáticos, que isso tudo são usos democráticos.
Deve-se, no entanto, condenar a exploração demagógica, diga-se mesmo, a covardia demagógica, que é empunhar irresponsavelmente, em momento crítico, a velha bandeira dos trabalhadores, com olhos voltados, na verdade, para menores e individuais aspirações políticas, cínica usurpação da chamada "Marcha dos 100 Mil".
Essa marcha coloca em discussão as importantes lições desses 20 anos de construção da democracia: a necessidade da convivência entres os diversos segmentos e agentes políticos, todos perseverando no exercício da responsabilidade.
O que se espera dos antigos aliados das refregas contra a ditadura, em favor da democracia, é que se articulem em torno de propostas para solução dos problemas, em verdadeira convivência democrática. Que tenham a sensatez de não aderir aos fáceis insultos ao governo, quase um infantil processo de transferência de responsabilidade.
O barulho feito pelos chamados "sem-rumo", imiscuídos entre idealistas lideranças e cidadãos caminhantes, sufoca muita gente séria e bem intencionada, que poderia colaborar com o diálogo construtivo entre oposição e governo. Tristemente para nosso país, muitas pessoas fundamentais para a construção do debate democrático acabam relegadas ao coadjuvante papel de engrossar o coro ou a marcha.
O que se espera dos governantes? Que saibamos celebrar a anistia, garantindo o direito de reunião e livre manifestação do pensamento, o respeito ao poder legitimamente constituído pelo povo. Dos opositores, que sejam consequentes, zeladores da democracia, demonstrando, como expectantes do poder, a responsabilidade para o seu virtual exercício.


José Carlos Dias, 60, advogado criminalista, é ministro da Justiça. Foi presidente da Comissão Justiça e Paz de São Paulo (1979 a 1982) e secretário da Justiça do Estado de São Paulo (governo Franco Montoro).


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