São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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LANTERNA NA POPA

Confiteor

ROBERTO CAMPOS

Há muita gente boa neste mundo. A maior parte do tempo não prestamos muita atenção nisso. Tenho uma vida a viver, família e obrigações, além das demandas "técnicas" dessa nossa civilização complicada, acostumamo-nos a olhar com abstrato distanciamento tudo que está fora do nosso círculo imediato.
Confiteor. Creio que fui como a maioria daqueles que seguem uma carreira pública. Olhamos o mundo numa perspectiva das soluções globais e de regimes econômicos e políticos. Os economistas, em particular, partilhamos, no Brasil, um quase obsessivo interesse pelas grandes formulações macroeconômicas, com as quais esperamos resolver os problemas mais angustiantes, e conduzir a coisa pública para razoáveis patamares de bem-estar coletivo.
Não há nada de errado em se olhar para os aspectos macro. O mundo, afinal, é um complicadíssimo sistema, e temos de procurar identificar os fatores cuja ação afeta o maior número. Mas de tanto olhar fixo para a paisagem, a vista deixa se acomodar para ver o que está perto.
Digo isso pensando em uma situação dolorosa que foi noticiada em breve reportagem do "Correio Braziliense". Um jovem inglês, Craig Alden, tipo absolutamente normal, saudável, gostando de futebol, religioso sem fanatismo, impressionado com as crianças maltratadas que viu num lugarejo perto de Brasília, resolveu deixar seu país e o que fazia na vida para vir cuidar delas. Estamos acostumados à idéia de orfanatos, abrigos e outras organizações do gênero financiadas por dinheiros públicos, por instituições religiosas, ou contribuições beneficentes privadas. De modo geral, porém, não chegamos a ter noção de quantas pessoas se dedicam, em silêncio, a ajudar os outros. Não constituem notícia. Notícia é quando um homem morde um cachorro, não quando é o cachorro que morde o homem.
O voluntariado de Craig é de dar agonia a qualquer alma. Os casos são tristes, alguns terríveis: meninas estupradas pelos pais, crianças abandonadas em lugares fétidos, feridas fisicamente, subalimentadas, algumas incapazes de falar. Quando chegam pessoas para levar algum donativo, essas crianças se agarram a elas, como animalzinhos pedindo mudamente um carinho. O moço inglês, que toma conta das 43 crianças, não é um visionário. Apenas tendo sofrido, numa viagem, o choque de uma realidade que, na Europa, é muito menos ostensiva, achou que podia contribuir com sua parte. Arregaçou as mangas e começou. Imensas dificuldades. Falta tudo, a comida é escassa, professora, médico, dentista e psicólogo são incertos, embora pareça que voluntários começam a se animar. Aliás, lembrando desses estudantes desocupados da UNE, que ameaçam vir bloquear as estradas nas suas "marchas sobre Brasília", será que não lhes ocorre, num instante de vergonha, fazer o que fazem tantos estudantes europeus e americanos e dar algumas horas de seu tempo para ajudar necessitados: doentes, cegos, velhos, crianças asiladas? Isso não depende, afinal, de ideologia ou de credo religioso.
O tópico que levanto para a nossa comum reflexão é que o reconhecimento e o louvor dos atos de solidariedade praticados na esfera privada por pessoas conscientes das suas responsabilidades como entes humanos não esgotam a questão. Nossa realidade dá, de certo modo, a impressão de que somos antes um vasto amontoado esfarinhado de gente do que um tecido bem estruturado, com células e fibras definidas.
Pairando acima de tudo, um estranho ente abstrato, o governo, uma espécie de encarnação safada e, não raro, malévola, da Providência Divina. E entre a farinha informe e o monstrengo, um confuso bolo de intermediários, políticos e burocracias. Quando queremos dar um jeito em qualquer das inúmeras coisas que nos amolam, que fazemos? Pedimos que o governo resolva. Esperamos que alguém faça alguma lei, assine algum decreto, mande a polícia prender alguém, que o Banco do Brasil empreste uma grana. Sempre estamos à espera de que um sujeito abstrato, por princípio implícito, mais poderoso, faça por nós aquilo que achamos que deve ser feito. É uma espécie de alienação.
Um dos países politicamente mais bagunçados do mundo chama-se Itália. Cinquenta e tantos governos no último meio século, aquela famosa resposta de Mussolini, quando lhe perguntaram se era difícil governar o país: "Não, é fácil, só que inútil". Pois bem, a Itália funciona. É um punhadinho das maiores economias do mundo. Qual o mistério? Um pesquisador americano, R. Putnam, encontrou uma explicação interessante, num livro chamado "Fazendo a Democracia Funcionar: Tradições Cívicas na Itália Moderna", publicado por Princeton há uma meia dúzia de anos. A Itália funciona por causa da sua base de comunidades. É uma espécie de acordo tácito: os políticos cacarejam, mas quem manda no dia-a-dia são as comunas, as pessoas unidas entre si, que vivem junto dos alicerces da sociedade. É nessa base que se materializa a vontade real das pessoas, que se defendem os valores. Nossa situação lembra um pouco a da Rússia de antes de 1917 ou a da França de antes da Revolução Francesa: um governo pairando no planalto, e embaixo, um povo desestruturado. E entalado entre ambos, uma classe privilegiada já completamente alienada, e novos grupos subindo com apetite voraz, mas ainda sem uma direção definida.
Não é o governo nem a abstração "Estado" que nos fazem cidadãos. Temos de sê-lo por nossa própria conta, decidindo, arregaçando as mangas, e assumindo as responsabilidades. As nossas deficiências sociais só vão ser corrigidas quando nós mesmos começarmos a agir. Naturalmente, obrigando também os governos a funcionarem. Mas é muito bom que eles aprendam a ter mais medo de nós do que nós deles.


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).


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