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LANTERNA NA POPA
Confiteor
ROBERTO CAMPOS
Há muita gente boa neste
mundo. A maior parte do tempo
não prestamos muita atenção
nisso. Tenho uma vida a viver,
família e obrigações, além das
demandas "técnicas" dessa nossa civilização complicada, acostumamo-nos a olhar com abstrato distanciamento tudo que
está fora do nosso círculo imediato.
Confiteor. Creio que fui como
a maioria daqueles que seguem
uma carreira pública. Olhamos
o mundo numa perspectiva das
soluções globais e de regimes
econômicos e políticos. Os economistas, em particular, partilhamos, no Brasil, um quase obsessivo interesse pelas grandes
formulações macroeconômicas,
com as quais esperamos resolver
os problemas mais angustiantes,
e conduzir a coisa pública para
razoáveis patamares de bem-estar coletivo.
Não há nada de errado em se
olhar para os aspectos macro. O
mundo, afinal, é um complicadíssimo sistema, e temos de procurar identificar os fatores cuja
ação afeta o maior número. Mas
de tanto olhar fixo para a paisagem, a vista deixa se acomodar
para ver o que está perto.
Digo isso pensando em uma situação dolorosa que foi noticiada em breve reportagem do
"Correio Braziliense". Um jovem inglês, Craig Alden, tipo absolutamente normal, saudável,
gostando de futebol, religioso
sem fanatismo, impressionado
com as crianças maltratadas
que viu num lugarejo perto de
Brasília, resolveu deixar seu país
e o que fazia na vida para vir
cuidar delas. Estamos acostumados à idéia de orfanatos,
abrigos e outras organizações do
gênero financiadas por dinheiros públicos, por instituições religiosas, ou contribuições beneficentes privadas. De modo geral,
porém, não chegamos a ter noção de quantas pessoas se dedicam, em silêncio, a ajudar os outros. Não constituem notícia.
Notícia é quando um homem
morde um cachorro, não quando é o cachorro que morde o homem.
O voluntariado de Craig é de
dar agonia a qualquer alma. Os
casos são tristes, alguns terríveis:
meninas estupradas pelos pais,
crianças abandonadas em lugares fétidos, feridas fisicamente,
subalimentadas, algumas incapazes de falar. Quando chegam
pessoas para levar algum donativo, essas crianças se agarram a
elas, como animalzinhos pedindo mudamente um carinho. O
moço inglês, que toma conta das
43 crianças, não é um visionário. Apenas tendo sofrido, numa
viagem, o choque de uma realidade que, na Europa, é muito
menos ostensiva, achou que podia contribuir com sua parte.
Arregaçou as mangas e começou. Imensas dificuldades. Falta
tudo, a comida é escassa, professora, médico, dentista e psicólogo são incertos, embora pareça
que voluntários começam a se
animar. Aliás, lembrando desses
estudantes desocupados da
UNE, que ameaçam vir bloquear as estradas nas suas
"marchas sobre Brasília", será
que não lhes ocorre, num instante de vergonha, fazer o que
fazem tantos estudantes europeus e americanos e dar algumas horas de seu tempo para
ajudar necessitados: doentes, cegos, velhos, crianças asiladas? Isso não depende, afinal, de ideologia ou de credo religioso.
O tópico que levanto para a
nossa comum reflexão é que o
reconhecimento e o louvor dos
atos de solidariedade praticados
na esfera privada por pessoas
conscientes das suas responsabilidades como entes humanos
não esgotam a questão. Nossa
realidade dá, de certo modo, a
impressão de que somos antes
um vasto amontoado esfarinhado de gente do que um tecido
bem estruturado, com células e
fibras definidas.
Pairando acima de tudo, um
estranho ente abstrato, o governo, uma espécie de encarnação
safada e, não raro, malévola, da
Providência Divina. E entre a
farinha informe e o monstrengo,
um confuso bolo de intermediários, políticos e burocracias.
Quando queremos dar um jeito
em qualquer das inúmeras coisas que nos amolam, que fazemos? Pedimos que o governo resolva. Esperamos que alguém faça alguma lei, assine algum decreto, mande a polícia prender
alguém, que o Banco do Brasil
empreste uma grana. Sempre estamos à espera de que um sujeito abstrato, por princípio implícito, mais poderoso, faça por nós
aquilo que achamos que deve
ser feito. É uma espécie de alienação.
Um dos países politicamente
mais bagunçados do mundo
chama-se Itália. Cinquenta e
tantos governos no último meio
século, aquela famosa resposta
de Mussolini, quando lhe perguntaram se era difícil governar
o país: "Não, é fácil, só que inútil". Pois bem, a Itália funciona.
É um punhadinho das maiores
economias do mundo. Qual o
mistério? Um pesquisador americano, R. Putnam, encontrou
uma explicação interessante,
num livro chamado "Fazendo a
Democracia Funcionar: Tradições Cívicas na Itália Moderna",
publicado por Princeton há uma
meia dúzia de anos. A Itália
funciona por causa da sua base
de comunidades. É uma espécie
de acordo tácito: os políticos cacarejam, mas quem manda no
dia-a-dia são as comunas, as
pessoas unidas entre si, que vivem junto dos alicerces da sociedade. É nessa base que se materializa a vontade real das pessoas, que se defendem os valores.
Nossa situação lembra um pouco a da Rússia de antes de 1917
ou a da França de antes da Revolução Francesa: um governo
pairando no planalto, e embaixo, um povo desestruturado. E
entalado entre ambos, uma classe privilegiada já completamente alienada, e novos grupos subindo com apetite voraz, mas
ainda sem uma direção definida.
Não é o governo nem a abstração "Estado" que nos fazem cidadãos. Temos de sê-lo por nossa própria conta, decidindo, arregaçando as mangas, e assumindo as responsabilidades. As
nossas deficiências sociais só vão
ser corrigidas quando nós mesmos começarmos a agir. Naturalmente, obrigando também os
governos a funcionarem. Mas é
muito bom que eles aprendam a
ter mais medo de nós do que nós
deles.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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