São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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ELIO GASPARI

Conde perdeu uma oportunidade de ficar calado

Governo que decide, funciona. FFHH abateu a tiros a proposta tola, demagógica e mistificadora do prefeito do Rio, Luiz Paulo Conde, que pretendia botar o Exército na segurança pública da cidade. Como Conde não é tolo, nem demagogo comum, estava apenas mistificando a opinião pública.
O truque é fácil. Havendo um problema, inventa-se uma solução impossível, cria-se um debate e vai-se levando a ilusão de que se pretende resolvê-lo. Exemplo: uma empresa vai mal vendendo camisolas. O diretor de vendas propõe que se passe a vender camisinhas. O diretor industrial mostra que fábrica de camisolas não produz camisinhas, mas o homem de vendas insiste. Quem vê a cena, pensa que ele quer melhorar o faturamento da empresa. O prefeito Conde sabe que o Exército não é solução adequada para a segurança do Rio.
Não é a solução adequada porque falta à tropa do Exército o treinamento para funções de vigilância, investigação e repressão policial. Ela é adestrada para combater, matando o maior número possível de pessoas que usam a farda da tropa inimiga. Na Segunda Guerra, por exemplo, era fácil. Protegia-se quem estivesse com roupa verde e atirava-se em quem tinha roupa cinza (os alemães). O general Leônidas Pires Gonçalves, ex-ministro do Exército, ensinou, há tempo, que "nós não somos treinados para colocar algemas". Quem visita um quartel não acha depósito de algemas. Acha pavilhão de tiro.
O Exército também não pode ser usado, em missões de patrulhamento. Isso porque as patrulhas podem ser de duas naturezas. Numa, são teatrais, e, nesse caso, sua eficácia dura o tempo suficiente para que a bandidagem perceba. Noutra são efetivas. Nesse caso, o traficante atira, o sargento responde e, ao fim do tiroteio, resulta que morreram um soldado, dois bandidos e uma senhora aposentada que via televisão em casa. No dia seguinte, os pais do soldado vão à Justiça pedir indenização pela morte do garoto. Ele fora obrigado por lei a servir ao Exército em missões de defesa nacional. Morreu num tiroteio que nada tinha a ver com a origem de sua convocação. Isso para não mencionar a notícia, mais do que correta, que sairá na imprensa: "Patrulha do Exército mata velhinha em tiroteio com traficantes". (Numa guerra, a velhinha está numa zona de operações e não há do que reclamar.)
O que há por baixo dessa história é um sonho secreto de parte da elite branca brasileira. Numa sexta-feira, quando a família está indo para o sítio, a tropa entra na favela. Durante o sábado e o domingo matam-se umas 200 pessoas (dois Carandirus), os favelados fogem e os barracos são queimados. Na segunda-feira a família chega, alivia-se como sumiço da ralé e escandaliza-se com o número de mortos. No dia seguinte, vai para a passeata de protesto contra a violência militar. (Dois anos depois vende o apartamento por 50% mais do que pagou.)
Foi isso que o andar de cima fez com os oficiais que se meteram na repressão política dos anos 70. Na hora da onça beber água, a alta hierarquia militar foi em frente e a nobiliarquia civil assinou manifestos contra a ditadura. A conta foi para algumas dúzias de oficiais que cumpriram ordens. (Todos os grandes torturadores, inclusive sargentos, haviam recebido a Medalha do Pacificador).
Felizmente, o Exército é hoje uma corporação amargurada com o papel que lhe sobrou no caso da repressão política.
Luiz Paulo Conde sabe tudo isso. Quis apenas dar a impressão de que a segurança o preocupa.
Faria melhor se ajudasse a procurar o funcionário público Marco Antonio Rufino da Cruz. Ele trabalhava na Biblioteca Nacional e tinha 34 anos quando desapareceu, no dia 26 de novembro 1994. Foi preso pela Polícia do Exército nas cercanias do morro do Fubá e foi visto pela última vez na carceragem da Polinter.
No final de 1994, o Exército teve a ilusão de que devia atender aos pedidos dos mandarins civis, lançando-se sobre os morros cariocas. Para o bem de todos e felicidade geral da nação, saiu em menos de um mês.

Erro

Estava errada a informação aqui publicada segundo a qual 6.000 pessoas inscreveram-se no concurso que empregaria mil novos soldados na Polícia Militar de Sergipe. Os candidatos foram 9.000. Disputaram R$ 530 mensais.
Estava errada também a informação segundo a qual 20% das pessoas aprovadas cursavam ou tinham concluído o curso superior. As pessoas nessa situação eram oito em cada dez. Pelo andar do camburão, a modernidade tucana acabará produzindo uma situação inédita. Enquanto os cortes de verbas federais levam os cientistas a interromper suas pesquisas, surge a primeira Polícia Militar na qual todos os soldados são doutores. É um jeito novo de chegar ao Primeiro Mundo.

Clinton fala e faz. FFHH fala e falha

Dois exemplos. Um, de governo que trabalha pelo interesse público. O de Bill Clinton, nos Estados Unidos. Outro, de governo que não trabalha, mas finge. O de FFHH.
Acompanhando um sentimento da sociedade americana, Clinton está em guerra contra a indústria do fumo. É um trabalho que começou em 1964, quando o governo americano associou, pela primeira vez, o cigarro ao câncer de pulmão. (A indústria disse que essa acusação se baseava em "estatísticas espúrias".) Desde 1977, quando um professor de direito resolveu processar as companhias de cigarro pelos males que disseminavam, essa luta mudou de qualidade. No ano passado, a indústria propôs um acordo aos Estados, pelo qual ofereceu uma compensação de US$ 246 bilhões a ser paga até 2025. Como gastavam US$ 600 milhões por ano com os 530 escritórios de advocacia que contrataram, pareceu-lhes bom negócio.
Clinton acaba de anunciar que a União vai processar os fabricantes de cigarros. Acusa-os de lesar a saúde de 400 mil americanos que morrem a cada ano por conta do que fumaram na vida. As doenças dos fumantes, segundo o governo, custam US$ 20 bilhões por ano ao sistema de saúde pública. Ele quer esse dinheiro de volta.
Agora o exemplo do governo que finge. No gogó, FFHH se parece com Clinton. Obviamente, não abriu processo algum. Diz uma coisa e faz o contrário. Preside o único governo do mundo que tomou uma providência destinada a aumentar o consumo de cigarros, fazendo pontaria nas camadas mais baixas da população.
Fez assim: em janeiro, alterou o sistema de cobrança de impostos sobre os cigarros. Eles eram taxados linearmente, em 73,55% do preço de cada maço. Mudou-se o sistema e criaram-se alíquotas diferenciadas, que resultam num imposto médio de 62%. À primeira vista, parece que se baixou o imposto sobre os cigarros, o que já é maluquice. À segunda vista, baixou-se o imposto das marcas populares, para aumentar a arrecadação por meio da expansão da fumaça. Uma marca como Hollywood, por exemplo, teve o seu preço reduzido de R$ 1,40 para R$ 1,25. O governo alterou o sistema de tributação do cigarro para fazer com que as pessoas fumem mais, sobretudo no andar de baixo, aquele que cai na rede do SUS quando adoece. Para arrecadar mais, na busca do equilíbrio fiscal e do cumprimento das metas do FMI, o governo tornou-se facilitador do vício e da doença.
Quando FFHH permitiu isso tinha todas os meios para saber que, para cada real arrecadado num maço de cigarros, o sistema de saúde pública gasta R$ 1,70 com a doenças adquiridas pelos fumantes.

Quiromancia

Previsão de uma pessoa que jamais errou o resultado de uma sucessão presidencial. Acertou todas, desde a de Getúlio Vargas, em 1950, quando o ex-ditador ainda estava recluso em São Borja:
"Se o PT conseguir um candidato que não ponha medo nas pessoas, ganha."
Fulanizando:
"Lula amedronta. Se essa percepção é injusta, não adianta mais discutir. Amedrontou duas vezes e vai amedrontar na terceira. Caso o PT lance um candidato como Cristovam Buarque, leva. Posso lhe assegurar que será uma das mais bonitas campanhas que este país já assistiu."
Por maiores que sejam esses poderes astrológicos, Buarque carrega uma mandinga. Seria o segundo professor a pedir aos brasileiros que lhe dêem o voto.

Entrevista: Rubens Ricupero

(62 anos, secretário-geral da Unctad, neto de italianos vindos para o Brasil na última década do século 19)
Crédito: TV Globo
Legenda: Giuliana (Ana Paula Arósio) com os sem-terra do final do século 19

- A novela "Terra Nostra" trouxe de volta as figuras dos imigrantes que vieram para São Paulo depois da abolição. Eles acharam aquilo que buscavam nas fazendas de café de São Paulo?
- Achar, não acharam. Tiveram que lutar, e muito. Fugiam das hospedarias de imigrantes. Um deles, calabrês, acabou trabalhando em serviços de calçamento de ruas da prefeitura. Era o avô do Delfim Netto. Outros fugiam das fazendas. Muitos se rebelaram. Mitificou-se a imigração italiana com as figuras dos comendadores, dos condes papalinos e dos bem-sucedidos. A verdadeira história dessa gente está no heroismo anônimo de pessoas tão simples que nem sequer se vangloriavam. Cantavam composições napolitanas nas quais se consideravam "carne de açougue", lembrando "como é amargo este pão". Há mais histórias de luta do que de sucesso, e muito preconceito. A expressão carcamano, por exemplo, deriva da junção do "carca" (calcar) com mão. Sugeria que os comerciantes italianos calcavam a mão nas balanças que pesavam as mercadorias. São Paulo só veio a ter um governador que descendesse de imigrantes em 1982, o Franco Montoro. Eles progrediram na indústria, como os condes Matarazzo e Crespi, mas nunca ascenderam ao mundo da finança.
- O que faltou para que essa história (que na quinta-feira sussurou a "Internacional" na novela das oito) fosse mais alegre?
- Terra. Mais de um terço dos italianos vindos para o Brasil retornaram. Eles são os primeiros sem-terra da nossa história. Queriam terra para trabalhar e os fazendeiros não a queriam dar. A legislação brasileira dificultava, deliberadamente, o acesso dos imigrantes à terra. Isso no final do século 19, depois que os Estados Unidos tinham feito sua reforma agrária nos anos 70. Qualquer pessoa que fosse para o Oeste tinha direito a um lote de terra, desde que o cultivasse por dez anos. Em 1913, os italianos de Ribeirão Preto se recusaram a trabalhar na colheita porque os fazendeiros não permitiam que plantassem alimentos nas fileiras intercaladas dos cafeeiros. Era terra vazia. Os italianos e alemães que foram para o sul do Brasil conseguiram terras ruins e, mesmo assim, criaram o progresso da pequena propriedade. Quem veio para São Paulo, e foram perto de um milhão, não teve acesso à terra, nem para pequenas lavouras familiares. Eles formaram a base da nossa mão-de-obra industrial. Em 1901 havia 50 mil trabalhadores na indústria em São Paulo. Deles, 95% eram italianos. Estiveram na origem do movimento operário. Entre 1900 e 1920, 61% dos líderes sindicais eram italianos. Centenas deles foram expulsos do país. Um tio meu, dirigente do Partido Comunista, quase foi fuzilado em 1936, no massacre do presídio Maria Zélia. Meu avô morreu cego e pobre.
- Como teria ficado o Brasil se essa gente tivesse recebido terra?
- Seriamos um outro país, sem dúvida melhor. Sem exagero, teríamos reproduzido alguns dos mecanismos de desenvolvimento econômico que a imigração estrangeira levou ao oeste americano. Parece-me claro que não teríamos passado pela modorra da República Velha. A oligarquia cafeeira teria acabado exatamente na hora em que mais se impôs, no fim da primeira década deste século. Foi necessário tempo demais para que os descendentes dos sem-terra do século 19 se tornassem grandes proprietários. O destino acabou fazendo com que os Ometto, os Dedini e os Lunardelli se transformassem nos últimos grandes donos de cafezais. Passaram-se duas gerações até que eles substituíssem as oligarquias. Os brasileiros cujas origens estão na luta dos personagens de "Terra Nostra" chegam a 20 milhões. Tomara que essa seja a grande obra da história da luta desses imigrantes.


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