São Paulo, Domingo, 26 de Dezembro de 1999


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LANTERNA NA POPA

Uma fábula futura

ROBERTO CAMPOS

Seis bilhões de gentes pululam na Terra, 1,2 bilhão delas numa dieta de emagrecimento de menos de um dólar por dia para viver. Alarmado, o Banco Mundial propõe uma "grande coalizão" de ajuda internacional para evitar que dentro de um quarto de século 4 bilhões de pessoas tenham que sobreviver com menos de dois dólares por dia.
Nesse cenário dantesco, abundam fotografias de crianças angolanas esfaimadas, enquanto os adultos se dedicam com inabalável entusiasmo ideológico, aprendido com as não menos entusiásticas direitas e esquerdas mundiais, a destruir o que ainda resta do país.
Associe-se a isso as guerras étnicas ou religiosas entre tâmils e cingaleses, entre hindus e paquistaneses, entre russos e tchetchenos, a gente se pergunta: haverá esperança para a nossa capacidade criadora, ou será que a visão do inferno terreno de hoje terá de ser o baço espelho do futuro?
Não pretendo ser profeta. Espero, aliás, vir a ter, agora nesta minha idade mais ponderada, um pouco mais de instinto de autopreservação, porque as previsões certas que, no passado, andei fazendo a respeito da economia da pátria amada me custaram muitas pancadas. Mas está ficando difícil resistir às cócegas do otimismo tecnológico.
Nos Estados Unidos, ele anda especialmente na moda. Fala-se na morte da inflação e no fim dos ciclos econômicos da depressão. Nesses últimos 17 anos só houve uma recessão, quando tradicionalmente elas repontavam cada três ou quatro anos.
Esse otimismo não chega a ser uma novidade surpreendente no ambiente norte-americano, porque esse povo se desenvolveu ativo, criativo e crente no futuro. Hoje, porém, depois de perto de dez anos de prosperidade contínua, com a Bolsa de Valores quebrando sucessivamente os próprios recordes, com o índice Dow Jones, esse ícone do capitalismo mundial, furando tetos tidos como números mágicos (subindo de menos de 3.000 pontos entre o começo desta década para perto de 11 mil hoje) -e, tudo isso "mirabile dictu" com superávit fiscal-, é lícito perguntar: será que existe mesmo um Papai Noel tecnológico?
Certa vez mencionei aqui a "Ideologia Californiana", uma interessante combinação de extremo radicalismo tecnológico e inovacional, com um não menos radical individualismo libertário. Isso, no vocabulário pobre de alguns membros da "intelligentsia subnacional" tupiniquim, é traduzido como "conservadorismo" político.
O otimismo tecnológico tem muito a ver com o universo de informação. Algumas das cabeças mais radioativas do Silicon Valley e dos territórios em volta do MIT estão sonhando de olhos abertos com um Dow Jones de 30 mil (talvez em quatro anos) e com um cenário de ininterrupta expansão econômica a 4% ao ano, com baixa inflação, altíssimo emprego, firme confiança do consumidor, preços estáveis, juros baixos, salários crescentes e criminalidade cadente! "Excusez du peu..."
A maioria entretanto ainda olha desconfiada. Afinal, perto de meio século de hábitos de verdade científica, ceticismo da mídia e relativismo pós-moderno não passam à toa. A inflação e os ciclos econômicos estariam apenas anestesiados, porém não mortos. Argumentam muitos que ondas de otimismo já aconteceram antes.
O papel estimulante hoje exercido pela revolução da Internet foi desempenhado no começo do século 19 pelas ferrovias e no albor deste século, pelo automóvel. Mas há uma diferença. Essas inovações trouxeram saltos de produtividade, mas estes foram descontínuos e não disseminadores de conhecimento, enquanto a Internet parece uma fonte interminável de difusão tecnológica e multiplicação da produtividade individual.
A interessante revista "Wired", que é uma espécie de Bíblia da ideologia californiana, usa um novo termo: a "ultraprosperidade". Eis seus componentes: uma renda média familiar de 150 mil dólares em 2020, todas as pessoas atingindo um nível considerado até hoje privativo dos ricos, trabalhadores de macacão ganhando tanto quanto os de terno e gravata, emprego formal sendo substituído pela condição de "auto-empresário".
Quando se olha a nova realidade criada pelas tecnologias da informação, não é tão esdrúxulo assim. Existem hoje 8 milhões de milionários nos Estados Unidos, e estima-se que uns 250 mil se concentrem no Silicon Valley. E há quem calcule que uns 30 mil funcionários da Microsoft também se achem nessa situação, graças às "stock options".
O mais interessante, porém, é que toda essa riqueza nova está fazendo ferver a moda da filantropia. Os americanos sempre foram dados a um hábito que aqui não é dos mais disseminados: deixar fortunas para hospitais, fundações de amparo, obras sociais, universidades, instituições de pesquisas e museus. Mas, agora, a coisa se exacerbou.
O grande luxo da milionarada deixou de ser o consumo conspícuo e passou a ser a prática das doações em escala industrial. Os marxistas falavam muito na competição capitalista pela espoliação, mas agora está surgindo um animal novo: a competição pela filantropia. Já há até especialistas em achar a quem dar e como administrar o processo. Isso, pelo que se sabe, não é sopa.
Ganhar dinheiro, afinal, parece ser coisa que muita gente aprendeu a fazer na "nova economia". O problema é aprender como distribui-lo eficientemente. O profissionalismo está nisso: saber doar com a mesma eficiência com que se ganhou.
Do ponto de vista dos países emergentes, seria uma angústia gostosa preocupar-se com a maximização dos resultados da filantropia. Nosso problema imediato é o de reduzir o coeficiente de "pilantropia".
Para Bill Gates, que agora inicia sua carreira de filantropo, com doações na casa dos bilhões de dólares, o mercado de doações deve parecer exasperante.
Que será melhor para a África: investir na alfabetização ou em pesquisa da cura da Aids? Fará sentido auxiliar a Índia e o Paquistão com dinheiro novo, quando desperdiçam recursos num arsenal nuclear para se protegerem uns dos outros?
Que fazer para o Sri Lanka, onde tâmils e cingaleses se matam diariamente? Ou pela América Latina, onde o ensino fundamental é grotescamente inadequado e a elite se beneficia de universidades públicas gratuitas? O problema dos novos ricos é saber doar; o dos pobres perpétuos é saber usar.



Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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