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ENTREVISTA DA 2ª
Para economista Ricardo Henriques, existe no país um consenso de que a "desigualdade é natural"
"É preciso desnaturalizar desigualdade"
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
Ricardo Henriques, 42, economista e secretário-executivo do
Ministério da Assistência e Promoção Social, tem em seu passado acadêmico trabalhos sobre a pobreza e a discriminação econômica por motivos étnicos.
Mas o negro discriminado e o pobre não são problemas autônomos. Derivam, diz, da desigualdade e de um certo consenso segundo o qual essa desigualdade é "natural". "A intenção da ministra Benedita [da Silva] é criar programas que tenham como princípio
a ação afirmativa. Não podemos
esquecer que no país a pobreza
tem cor. Ela é negra. E se sobrepõe
à cor um predomínio regional,
que é nordestino", afirma.
Henriques diz acreditar que o
governo de Luiz Inácio Lula da
Silva poderá "desnaturalizar" a
desigualdade, por meio de ações e
pelos efeitos que essas ações terão
na mentalidade dos brasileiros.
"O programa Fome Zero, prioridade do conjunto dos ministérios da área social, pretende reduzir a fome por meio de mecanismos não assistencialistas. Queremos romper com a tradição assistencialista das políticas sociais
brasileiras."
Leia a seguir a entrevista, concedida na sexta-feira, por telefone,
no Rio de Janeiro.
Folha - Segundo o Pnad (Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios) de 1999, feito pelo IBGE, para
acabar com a pobreza seriam precisos R$ 32,7 bilhões. O Ministério da
Assistência e Promoção Social gastará este ano em programas só um
décimo desse valor. Como sair do
buraco?
Ricardo Henriques - Seria este o
valor para se retirar da linha de
pobreza os 34% de brasileiros que
nela se encontram, e seriam também necessários R$ 8 bilhões para
que não existissem brasileiros
abaixo da linha da miséria. Mas o
governo não aplica em políticas
sociais apenas o que foi alocado à
ministra Benedita da Silva. Os
gastos sociais têm sido nos últimos seis anos de R$ 150 bilhões
por ano. Se não avançamos mais,
é porque essas políticas têm o
enorme problema de não conseguirem atingir os mais pobres. Há
uma questão de focalização, que
pode estar no desenho das políticos, na implementação ou no impacto que elas provocam.
Folha - Não haveriam lições suficientes de erros e acertos desde o
governo Itamar Franco (1992 a
1994), quando entrou em vigor a
Loas (Lei de Orientação da Assistência Social)? O que haveria ainda
para aprender e inovar?
Henriques - Um dos grandes desafios do governo Lula é desenvolver um modelo de avaliação
das políticas sociais que nos permita identificar as origens do desperdício da alocação de recursos
públicos nessa área. Uma das atribuições do Ministério de Assistência e Promoção Social será desenvolver um sistema de avaliação que seja capaz de manter um
diálogo com todos os demais programas desenvolvidos dentro do
governo.
Folha - O sr. citou o impacto. A sociedade sabe difusamente que algo
diferente pode acontecer. Mas, se
não acontecer nada, ela se desmobiliza e se desaponta com rapidez.
Henriques - Quando o presidente deu prioridade ao combate à fome, ele conseguiu mudar o eixo
de gravitação da intervenção tradicional do governo. Não se está
mais na esfera dos ajustes macroeconômicos e dos dilemas que
eles geram. A prioridade está na
área social. Mas os esforços concentrados para a redução da fome
compõem um conjunto mais amplo de intervenção. É preciso que,
além da nutrição, se dê sustentabilidade para que o indivíduo saia
da condição de pobreza.
Folha - Ou seja, Fome Zero não é
só fome. É metáfora para a pobreza. Mas isso não gera uma demanda muito difusa e a dificuldade política de respondê-la à altura?
Henriques - A expectativa dos
indivíduos vai ser proporcional à
ousadia do projeto do governo
Lula. Se a prioridade está na questão social, a população pedirá resultados. Mas isso tudo é um processo em construção. Um processo que durará um tempo. Não se
pode supor que estejamos diante
de uma imediata redenção histórica que em curtíssimo prazo dê
conta de todas as demandas.
Folha - É realista esperar que em
quatro anos saiam da linha de miséria os 14 milhões de brasileiros
que nela se encontram?
Henriques - É viável um grande
avanço no período de quatro
anos, desde que haja uma forte
engenharia e a interação com a
sociedade civil organizada e com
o setor privado. Precisamos desse
conjunto de agentes, do envolvimento desse "espaço público não
estatal". Disso ainda deriva a possibilidade de estabelecer uma mudança por maior solidariedade.
Folha - Foram dois os momentos
de diminuição brusca da pobreza
no Brasil: no Plano Cruzado, quando ela caiu de 43% para 28%, e no
Plano Real, quando a queda foi de
42% para 34%. A área social do governo Lula aceita apertar os cintos
para que a área econômica evite a
volta da inflação?
Henriques - O governo está muito coordenado nessa questão. A
prioridade é a manutenção da inflação em baixos patamares, os
respeitos aos fundamentos que
garantam uma economia saudável. Isso é fundamental para reduzir a pobreza. Os mais pobres são
sempre os mais punidos pela inflação alta. Numa estratégia que
prioriza o social a inflação não pode ser tolerada.
Folha - Entre os economistas, o sr.
foi há alguns anos talvez o primeiro a falar da necessidade de "desnaturalizar as desigualdades". Ou
seja, quebrar o conformismo que
julga a desigualdade "natural". Isso está longe de ser consensual.
Henriques - O maior desafio estratégico da sociedade brasileira é
conseguir avançar no sentido de
conseguir desnaturalizar as desigualdades. A principal razão do
tamanho excepcional e inadmissível de nossa pobreza está no
acordo excludente que esse país
gerou, ao considerar a desigualdade natural. Só se erradicará a
miséria e se diminuirá a pobreza
com o combate à desigualdade.
Folha - Mas a desigualdade é um
bicho de sete fôlegos. O coeficiente
Gini (que mede a concentração de
renda) do Brasil em 1977 era de
0,62. Em 1999 estava em 0,60. Não
adiantou a sociedade se organizar
e o país se redemocratizar. De onde
agora o PT vai tirar o gás para mudar tudo isso?
Henriques - Com certeza é possível mudar. Estamos ainda pisando num terreno contaminado, no
qual se acreditou que a forma fundamental de enfrentar o problema da pobreza era o crescimento
econômico. O que agora nós discutimos é, frente à alternativa do
"crescimentismo", se é possível
substituir uma estratégia permanente e sustentável que crie um
pacto real de inclusão social. Ou
seja, uma mudança de matriz,
uma mudança de cultura que fere
a tradição na qual nasceram consensos com efeitos perversos.
Folha - Mas será que todo o governo pensa assim?
Henriques - Isso é um projeto em
construção, na medida em que
efetivamente a desigualdade se
naturalizou. Isso contagia a sociedade civil, contagia a tecnocracia
e também contagia os gestores de
políticas públicas voltadas para o
social. Esse processo em construção é radical na medida em que
rompe com esse consenso, surgido com uma visão de desenvolvimento econômico centrada no crescimento. Devem-se olhar o
"desenvolvimento como liberdade", que é uma nova conceituação. Nossa herança é a do desenvolvimento como exclusão. Isso significa romper tradições, romper consensos.
Folha - Como acadêmico, o sr. disse que esse novo desenvolvimento
deveria se basear no tripé terra,
crédito e educação. Como governo,
isso não seria ampliar demasiadamente o foco das prioridades?
Henriques - Esse tripé é essencial
para reduzir as desigualdades, para redistribuir os ativos fundamentais deste país. É preciso trabalhar com um crédito que seja o
produto de reformas no sistema
financeiro, que suponha a reforma tributária, a reforma da Previdência, para valorizar os microempreendimentos. Sem fazermos essa mudança, estaremos
bloqueando o caminho que dará
mais autonomia ao empreendedor individual. A terra é também
fundamental, não por seu impacto produtivo, mas pelo acesso que
uma reforma agrária nos daria a
valores da modernidade.
Folha - E quanto à educação?
Henriques - O ativo mais escasso
deste país é a educação. Ela é mais
escassa que energia elétrica em
época de apagão. Precisamos
pensar em acesso à educação com
qualidade, algo que está associado
à estrutura de gestão da escola, à
capacidade de participação dos
alunos e dos pais. Uma escola de
qualidade maximamente distribuída permitiria, num tempo relativamente curto, redistribuir competências, cidadania.
Folha - A agenda não está muito
grande? Ela não corre o risco de
perder viabilidade desse jeito?
Henriques - A agenda é grande.
O esforço tem uma ousadia. Do
ponto de vista de sua implementação, o presidente Lula tem dado
todos os sinais. Há sinergia governamental em torno do Fome Zero. E há ao mesmo tempo um esforço de coordenação das políticas sociais para enfrentar os efeitos da fragmentação e da superposição de programas existentes.
Temos ainda, acima disso as cinco grandes reformas, numa lista
encabeçada pela tributária e pela previdenciária.
Folha - Outra questão presente
eu seu trabalho acadêmico: os negros e pardos são no Brasil 45,3%
da população. Mas eles representam 63% dos pobres e 68% dos indigentes. Haverá política específica para eles?
Henriques - A intenção da ministra Benedita é criar programas
que tenham como princípio a ação afirmativa. Não podemos esquecer que no país a pobreza tem cor. Ela é negra. E se sobrepõe à
cor um predomínio regional, que
é nordestino. Sem enfrentar a pobreza da população afrodescendente não alcançaríamos resultados. Só com políticas universais é
muito difícil reduzir desigualdades. Políticas universais devem
existir na educação, na saúde.
Mas temos também que focar em
segmentos da população tradicionalmente excluídos.
Folha - O que seria essa ação afirmativa? Algo como o previsto no
Estado da Califórnia, onde microempresários negros têm preferência em concorrências públicas,
ou em Michigan, com cota para matrícula de estudantes negros?
Henriques - É um problema
complexo que está sendo ainda
discutido. Existem essas experiências de cotas em universidades que serão devidamente avaliadas. Há políticas de diversidade
no interior das empresas. Mas esse modelo ainda não está desenhado. O exemplo de Michigan
tem muitos problemas, mesmo se
tenha produzido bons resultados
há 20 anos.
Folha - Discute-se por enquanto o
programa Fome Zero sob o ângulo
de como chegar ao beneficiado,
com mais ou com menos assistencialismo, dando cupom ou dando
dinheiro. Qual sua posição?
Henriques - O programa Fome
Zero, prioridade do conjunto dos
ministérios da área social, pretende reduzir a fome por meio de
mecanismos não assistencialistas.
Queremos romper com a tradição
assistencialista das políticas sociais brasileiras. Isso é essencial
para a mudança de patamar, para
que possamos priorizar o combate à desigualdade. A meu ver, o
desenho desejável de implementação do programa Fome Zero seria aquele que assegurasse o máximo de autonomia das pessoas
no exercícios de suas escolhas.
Folha - No Ipea e na Universidade
Federal Fluminense o sr. tinha a liberdade de teorizar sobre praticamente tudo. E agora, como governo? Há um ângulo mais estreito para ver a pobreza?
Henriques - Eu diria que são ângulos complementares. Os esforços de pesquisa são fundamentais
para o desenho de políticas públicas consistentes. Acho que trago à
equipe do ministério, com minha
tradição de pesquisa, um instrumento importante para aumentar
a qualidade da gestão das políticas
por que somos responsáveis.
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