UOL

São Paulo, segunda-feira, 27 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª

Para economista Ricardo Henriques, existe no país um consenso de que a "desigualdade é natural"

"É preciso desnaturalizar desigualdade"

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Ricardo Henriques, 42, economista e secretário-executivo do Ministério da Assistência e Promoção Social, tem em seu passado acadêmico trabalhos sobre a pobreza e a discriminação econômica por motivos étnicos.
Mas o negro discriminado e o pobre não são problemas autônomos. Derivam, diz, da desigualdade e de um certo consenso segundo o qual essa desigualdade é "natural". "A intenção da ministra Benedita [da Silva] é criar programas que tenham como princípio a ação afirmativa. Não podemos esquecer que no país a pobreza tem cor. Ela é negra. E se sobrepõe à cor um predomínio regional, que é nordestino", afirma.
Henriques diz acreditar que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva poderá "desnaturalizar" a desigualdade, por meio de ações e pelos efeitos que essas ações terão na mentalidade dos brasileiros.
"O programa Fome Zero, prioridade do conjunto dos ministérios da área social, pretende reduzir a fome por meio de mecanismos não assistencialistas. Queremos romper com a tradição assistencialista das políticas sociais brasileiras."
Leia a seguir a entrevista, concedida na sexta-feira, por telefone, no Rio de Janeiro.
 

Folha - Segundo o Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 1999, feito pelo IBGE, para acabar com a pobreza seriam precisos R$ 32,7 bilhões. O Ministério da Assistência e Promoção Social gastará este ano em programas só um décimo desse valor. Como sair do buraco?
Ricardo Henriques -
Seria este o valor para se retirar da linha de pobreza os 34% de brasileiros que nela se encontram, e seriam também necessários R$ 8 bilhões para que não existissem brasileiros abaixo da linha da miséria. Mas o governo não aplica em políticas sociais apenas o que foi alocado à ministra Benedita da Silva. Os gastos sociais têm sido nos últimos seis anos de R$ 150 bilhões por ano. Se não avançamos mais, é porque essas políticas têm o enorme problema de não conseguirem atingir os mais pobres. Há uma questão de focalização, que pode estar no desenho das políticos, na implementação ou no impacto que elas provocam.

Folha - Não haveriam lições suficientes de erros e acertos desde o governo Itamar Franco (1992 a 1994), quando entrou em vigor a Loas (Lei de Orientação da Assistência Social)? O que haveria ainda para aprender e inovar?
Henriques -
Um dos grandes desafios do governo Lula é desenvolver um modelo de avaliação das políticas sociais que nos permita identificar as origens do desperdício da alocação de recursos públicos nessa área. Uma das atribuições do Ministério de Assistência e Promoção Social será desenvolver um sistema de avaliação que seja capaz de manter um diálogo com todos os demais programas desenvolvidos dentro do governo.

Folha - O sr. citou o impacto. A sociedade sabe difusamente que algo diferente pode acontecer. Mas, se não acontecer nada, ela se desmobiliza e se desaponta com rapidez.
Henriques -
Quando o presidente deu prioridade ao combate à fome, ele conseguiu mudar o eixo de gravitação da intervenção tradicional do governo. Não se está mais na esfera dos ajustes macroeconômicos e dos dilemas que eles geram. A prioridade está na área social. Mas os esforços concentrados para a redução da fome compõem um conjunto mais amplo de intervenção. É preciso que, além da nutrição, se dê sustentabilidade para que o indivíduo saia da condição de pobreza.

Folha - Ou seja, Fome Zero não é só fome. É metáfora para a pobreza. Mas isso não gera uma demanda muito difusa e a dificuldade política de respondê-la à altura?
Henriques -
A expectativa dos indivíduos vai ser proporcional à ousadia do projeto do governo Lula. Se a prioridade está na questão social, a população pedirá resultados. Mas isso tudo é um processo em construção. Um processo que durará um tempo. Não se pode supor que estejamos diante de uma imediata redenção histórica que em curtíssimo prazo dê conta de todas as demandas.

Folha - É realista esperar que em quatro anos saiam da linha de miséria os 14 milhões de brasileiros que nela se encontram?
Henriques -
É viável um grande avanço no período de quatro anos, desde que haja uma forte engenharia e a interação com a sociedade civil organizada e com o setor privado. Precisamos desse conjunto de agentes, do envolvimento desse "espaço público não estatal". Disso ainda deriva a possibilidade de estabelecer uma mudança por maior solidariedade.

Folha - Foram dois os momentos de diminuição brusca da pobreza no Brasil: no Plano Cruzado, quando ela caiu de 43% para 28%, e no Plano Real, quando a queda foi de 42% para 34%. A área social do governo Lula aceita apertar os cintos para que a área econômica evite a volta da inflação?
Henriques -
O governo está muito coordenado nessa questão. A prioridade é a manutenção da inflação em baixos patamares, os respeitos aos fundamentos que garantam uma economia saudável. Isso é fundamental para reduzir a pobreza. Os mais pobres são sempre os mais punidos pela inflação alta. Numa estratégia que prioriza o social a inflação não pode ser tolerada.

Folha - Entre os economistas, o sr. foi há alguns anos talvez o primeiro a falar da necessidade de "desnaturalizar as desigualdades". Ou seja, quebrar o conformismo que julga a desigualdade "natural". Isso está longe de ser consensual.
Henriques -
O maior desafio estratégico da sociedade brasileira é conseguir avançar no sentido de conseguir desnaturalizar as desigualdades. A principal razão do tamanho excepcional e inadmissível de nossa pobreza está no acordo excludente que esse país gerou, ao considerar a desigualdade natural. Só se erradicará a miséria e se diminuirá a pobreza com o combate à desigualdade.

Folha - Mas a desigualdade é um bicho de sete fôlegos. O coeficiente Gini (que mede a concentração de renda) do Brasil em 1977 era de 0,62. Em 1999 estava em 0,60. Não adiantou a sociedade se organizar e o país se redemocratizar. De onde agora o PT vai tirar o gás para mudar tudo isso?
Henriques -
Com certeza é possível mudar. Estamos ainda pisando num terreno contaminado, no qual se acreditou que a forma fundamental de enfrentar o problema da pobreza era o crescimento econômico. O que agora nós discutimos é, frente à alternativa do "crescimentismo", se é possível substituir uma estratégia permanente e sustentável que crie um pacto real de inclusão social. Ou seja, uma mudança de matriz, uma mudança de cultura que fere a tradição na qual nasceram consensos com efeitos perversos.

Folha - Mas será que todo o governo pensa assim?
Henriques -
Isso é um projeto em construção, na medida em que efetivamente a desigualdade se naturalizou. Isso contagia a sociedade civil, contagia a tecnocracia e também contagia os gestores de políticas públicas voltadas para o social. Esse processo em construção é radical na medida em que rompe com esse consenso, surgido com uma visão de desenvolvimento econômico centrada no crescimento. Devem-se olhar o "desenvolvimento como liberdade", que é uma nova conceituação. Nossa herança é a do desenvolvimento como exclusão. Isso significa romper tradições, romper consensos.

Folha - Como acadêmico, o sr. disse que esse novo desenvolvimento deveria se basear no tripé terra, crédito e educação. Como governo, isso não seria ampliar demasiadamente o foco das prioridades?
Henriques -
Esse tripé é essencial para reduzir as desigualdades, para redistribuir os ativos fundamentais deste país. É preciso trabalhar com um crédito que seja o produto de reformas no sistema financeiro, que suponha a reforma tributária, a reforma da Previdência, para valorizar os microempreendimentos. Sem fazermos essa mudança, estaremos bloqueando o caminho que dará mais autonomia ao empreendedor individual. A terra é também fundamental, não por seu impacto produtivo, mas pelo acesso que uma reforma agrária nos daria a valores da modernidade.

Folha - E quanto à educação?
Henriques -
O ativo mais escasso deste país é a educação. Ela é mais escassa que energia elétrica em época de apagão. Precisamos pensar em acesso à educação com qualidade, algo que está associado à estrutura de gestão da escola, à capacidade de participação dos alunos e dos pais. Uma escola de qualidade maximamente distribuída permitiria, num tempo relativamente curto, redistribuir competências, cidadania.

Folha - A agenda não está muito grande? Ela não corre o risco de perder viabilidade desse jeito?
Henriques -
A agenda é grande. O esforço tem uma ousadia. Do ponto de vista de sua implementação, o presidente Lula tem dado todos os sinais. Há sinergia governamental em torno do Fome Zero. E há ao mesmo tempo um esforço de coordenação das políticas sociais para enfrentar os efeitos da fragmentação e da superposição de programas existentes. Temos ainda, acima disso as cinco grandes reformas, numa lista encabeçada pela tributária e pela previdenciária.

Folha - Outra questão presente eu seu trabalho acadêmico: os negros e pardos são no Brasil 45,3% da população. Mas eles representam 63% dos pobres e 68% dos indigentes. Haverá política específica para eles?
Henriques -
A intenção da ministra Benedita é criar programas que tenham como princípio a ação afirmativa. Não podemos esquecer que no país a pobreza tem cor. Ela é negra. E se sobrepõe à cor um predomínio regional, que é nordestino. Sem enfrentar a pobreza da população afrodescendente não alcançaríamos resultados. Só com políticas universais é muito difícil reduzir desigualdades. Políticas universais devem existir na educação, na saúde. Mas temos também que focar em segmentos da população tradicionalmente excluídos.

Folha - O que seria essa ação afirmativa? Algo como o previsto no Estado da Califórnia, onde microempresários negros têm preferência em concorrências públicas, ou em Michigan, com cota para matrícula de estudantes negros?
Henriques -
É um problema complexo que está sendo ainda discutido. Existem essas experiências de cotas em universidades que serão devidamente avaliadas. Há políticas de diversidade no interior das empresas. Mas esse modelo ainda não está desenhado. O exemplo de Michigan tem muitos problemas, mesmo se tenha produzido bons resultados há 20 anos.

Folha - Discute-se por enquanto o programa Fome Zero sob o ângulo de como chegar ao beneficiado, com mais ou com menos assistencialismo, dando cupom ou dando dinheiro. Qual sua posição?
Henriques -
O programa Fome Zero, prioridade do conjunto dos ministérios da área social, pretende reduzir a fome por meio de mecanismos não assistencialistas. Queremos romper com a tradição assistencialista das políticas sociais brasileiras. Isso é essencial para a mudança de patamar, para que possamos priorizar o combate à desigualdade. A meu ver, o desenho desejável de implementação do programa Fome Zero seria aquele que assegurasse o máximo de autonomia das pessoas no exercícios de suas escolhas.

Folha - No Ipea e na Universidade Federal Fluminense o sr. tinha a liberdade de teorizar sobre praticamente tudo. E agora, como governo? Há um ângulo mais estreito para ver a pobreza?
Henriques -
Eu diria que são ângulos complementares. Os esforços de pesquisa são fundamentais para o desenho de políticas públicas consistentes. Acho que trago à equipe do ministério, com minha tradição de pesquisa, um instrumento importante para aumentar a qualidade da gestão das políticas por que somos responsáveis.


Texto Anterior: Sociólogo brasileiro janta com escritor paquistanês Ali
Próximo Texto: Frases
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.