|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LANTERNA NA POPA
As armadilhas da semântica
ROBERTO CAMPOS
George Orwell, o escritor inglês
que nos deu algumas das obras
que melhor iluminaram o ambiente dos difíceis anos que duraram da Depressão à Queda do
Muro de Berlim, entre elas as
duas terríveis sátiras "1984" e
"Animal Farm", foi antes de
mais nada um homem de excepcional integridade. Firme nas
suas convicções de esquerda, foi
voluntário contra os franquistas, na Guerra Civil espanhola.
Ferido em combate (numa campanha admiravelmente contada
em "Homenagem à Catalunha"), enfrentou com coragem
os comunistas, quando estes, na
tentativa de assumir o controle
do movimento, traíram seus outros camaradas de esquerda. Foi
depois objeto de um patrulhamento feroz que tentou transformá-lo numa "não-pessoa".
Morreu em 1950, aos 47 anos.
Águas políticas passadas, talvez. A União Soviética, a ex formidável pátria do socialismo,
não existe mais, esfarelada em
repúblicas conflituosas. Para felicidade do gênero humano, não
se realizaram as sombrias previsões orwellianas de "1984"
-uma sociedade hipertotalitária, metida em guerras intermináveis, impondo ao povo um
brutal controle do pensamento e
da expressão-, o "novopensar"
(newthink) e a "duplafala"
(doublespeak). A televisão não
se tornou um instrumento de
massificação ideológica em favor do Big Brother, sendo, ao
contrário, um instrumento de
denúncia, que dificulta o ocultamento de selvagerias ditatoriais.
As previsões de Orwell não se
realizaram ao pé da letra. Mas
os verdadeiros escritores têm o
dom de entrever formas da realidade que escapam facilmente
aos olhos da multidão. Porque
alguma coisa do "novopensar" e
do "duplofalar" se encontra em
nosso cotidiano. Raramente as
mensagens que a humanidade
troca entre si são meramente
descritivas. Em geral, atingem-nos mais pelas associações de
idéias e sentidos. Não haveria
poesia, nem literatura, nem
mesmo prece, sem adjetivos, metáforas e toda a ilimitada teia de
ligações que vão se estabelecendo entre as palavras, ao longo do
tempo. Mas o que faz prece ou
poesia pode fazer também intriga e malefício. Questão de intenção e de dose.
Parece que mesmo línguas robustas, como o inglês, vêm perdendo a velha simplicidade por
conta da "duplafala". Nos Estados Unidos, parece praga. Não
há muito, uma companhia que
estava mandando embora 500
empregados esclareceu: "Não
caracterizamos isto como dispensa de pessoal; estamos gerenciando nossos recursos administrativos". Há consultores que
trabalham especialmente no ramo de mandar gente embora e
apresentam seus serviços como
"consultoria para terminação e
colocação externa" ou "engenharia de reemprego". No Canadá, um acidente de helicóptero foi higienizado como "desvio
de um vôo normal". E os advogados do famoso jogador de futebol americano O. J. Simpson, o
tal que teria matado a mulher
(em quem dava surras) e o
amante dela, pintaram essa relação como mera "discórdia
marital". E consta que na Universidade da Califórnia, em Berkeley, a turma da educação física passou a chamar-se de "departamento de biodinâmica humana".
Exemplos inesgotáveis, alguns
engraçados, outros ridículos.
Mas embaçam a percepção da
realidade, embora hoje não tão
sinistros como no auge dos totalitarismos.
Uma ilustração recente tem
pegado por aí muita gente distraída. Temos ouvido muito a
expressão "excluídos" para designar grupos de pessoas de baixa renda ou supostamente marginalizadas. Há palavras apropriadas para as situações concretas: "pobre", "analfabeto",
"doente", "desempregado",
"drogado", por exemplo, designam situações em que determinadas pessoas objetivamente se
encontram num dado momento. No resto da sociedade, espíritos decentes certamente sentirão
um dever de solidariedade e,
sem dúvida, pensarão no que
possa ser feito para mudar esse
estado de coisas.
A exclusão, no entanto, supõe
uma ação deliberada contra o
excluído, no caso, essa gente pobre, desempregada etc. Portanto
subentende que alguém impeça
à força que ela tenha acesso a
bens que todos desejam. O "excludente" passa a ser indiciado
como "culpado" por essa situação penosa.
Essa generalização é safada,
porque sub-repticiamente legitima todas as demandas de supostos "excluídos", à custa dos
demais. Houve políticas deliberadas (e criminosas) de exclusão, como a nazista, contra os
não-arianos, e a comunista,
contra os não-proletários.
Mas há formas de "exclusão"
legítimas e até indispensáveis à
existência do indivíduo e da espécie. Os países costumam fechar suas fronteiras para não serem atropelados por massas de
imigrantes deslocados de outras
paragens. O abuso da palavra
"excluído" é particularmente
frequente nas conferências internacionais. Muitos países se
queixam de serem "excluídos"
pela globalização, pela revolução tecnológica ou pelo liberal-capitalismo. Ao mesmo tempo
praticam um nacionalismo excludente, que hostiliza capitais
estrangeiros, supridores de poupança e tecnologia. Ou se impõem automutilação tecnológica, como o Brasil, com sua política de nacionalismo informático. Para não falar de países recipientes de ajuda externa, que
gastam dinheiro em armamentos ou guerras tribais.
Essa confusão semântica atrapalha a compreensão do desenvolvimento econômico. Antes do
processo de acumulação que é a
civilização, os bandos dos nossos
primitivos tataravós viviam em
"equilíbrio" com a natureza
-quer dizer, em média, pouco
mais de 10 anos, chegando a em
torno de 20 anos ao tempo de
Roma, e só alcançando 40 anos
nas sociedades industrializadas,
no final do século passado. Fome, frio e doença eram a regra
geral. E permanente guerra de
pilhagem entre tribos e clãs. A
escassez universal era a regra
que gerava a violência.
A aquisição da racionalidade
tem sido um longo esforço humano de "inclusão" ao longo de
milênios. A globalização é um
fenômeno de "inclusão" e não o
contrário. Pelo menos usar as
palavras sem deformar a mensagem está nas nossas mãos. E é
parte da solução.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
Texto Anterior: Painel Próximo Texto: Janio de Freitas: Arremedo de país Índice
|